Autor: Jefferson Carús Guedes e Thiago Aguiar de Pádua (*)
O Paraíso dos Conceitos Jurídicos, de Jhering, é texto fundamental na literatura jurídica. É inquestionável a importância de Rudolf von Jhering (1818-1892) para o Direito brasileiro, seja por causa da influência que exerceu sobre notáveis juristas pátrios como Tobias Barreto, Sílvio Romeiro e Clovis Bevilaqua, através dos quais também — e principalmente — inseriu suas ideias em nosso ordenamento jurídico.
Uma relevante pesquisa acadêmica sobre a Revista da Faculdade Livre de Direito da Cidade do Rio de Janeiro (1899-1919) dá conta de que Jhering foi a principal influência quantitativa e qualitativa — verdadeira fonte do direito — entre os juristas que escreveram na revista, sobretudo com as obras A Evolução do Direito e O Espírito do Direito Romano nas Diversas Fases de seu Desenvolvimento.
Em termos de influência (potencialmente) exercida, Jhering sabia da importância da comparação entre o direito interno e aquele direito existente (no presente ou no pretérito) em outros lugares para além dos jardins da cidade natal do intérprete, sendo por isso, igualmente, um importante pensador no que se refere ao desenvolvimento de métodos de contraste comparativo entre diferentes ordenamentos, como se colhe de seus escritos, selecionados como marcas de seu caráter comparatista:
“Eu possuo a lamentável peculiaridade de comparar tudo aquilo que chega em minhas mãos, o doméstico com o estrangeiro, ou o presente com o passado” (…) “Minha obsessão em comparar [prossegue] não está confinada, entretanto, àquilo que é de meu interesse pessoal, mas engloba tudo, e me acerta como uma pedrada; nada está à salvo de mim”.
É o próprio Jhering quem sugestiona a influência que exerceu, no prefácio de Die Jurisprudenz des taeglichen Labens (Jurisprudência da Vida Diária), ensaio que primeiro apareceu como um anexo em Civilrechtsfälle ohne Entscheidungen (1870) e depois com circulação autônoma, traduzido para o italiano por Vito Perugio, para o húngaro por Biermann, para o grego por Damaras, e para o português por um certo “De Menezes”, em Questões Vigentes de Philosophia e de Direito (p. 161 e ss).
Referia-se, como se sabe, a Tobias Barreto de Menezes que, se não traduziu o ensaio inteiro, fez uma breve síntese, permeada de análise crítica sobre o estado da arte do ensino do direito no Brasil. Escritor de uma obra assaz opulenta e prolífica, de fato. Também no processo civil, inclusive, se fez notar a influência de Jhering, como observou José Rogério Cruz e Tucci:
“Embora só nos estertores do século, com Mortara, é que a ‘ação judiciária civil’ viria definitivamente conceituada como ‘uma relação de direito público, decorrente do contraste entre sujeitos privados, tendo como objeto matéria de direito subjetivo e desenvolvendo-se no processo mediante a aplicação da norma legal por atuação e autoridade do magistrado’, é possível afirmar-se, sem qualquer exagero, que o germe desse posicionamento já se encontrava na construção científica do jurista ora homenageado [Jhering], para quem, em última análise, o processo deveria ser visualizado como ramo autônomo do direito público, assentado na jurisdição, como manifestação da soberania do Estado moderno…”.
Não fosse por isso, ainda deveria ser mencionada a influência que exerceu na teoria da posse (sobretudo com as obras Os Fundamentos dos Interditos Possessórios e A Vontade na Posse), e sua densa discussão doutrinária com Saviny, além de sua conhecida tradução para inúmeras línguas de A Luta Pelo Direito.
Conexão evidente – é certo – com sua grande obra, assim considerada por ele mesmo, em missiva escrita a um amigo em 30 de abril de 1883, se exprimindo sobre Der Zweck im Recht, (A Finalidade no Direito), de 1877:
“Esta obra (Der Zweck im Recht), e não “O Espírito do Direito Romano”, contém o resultado de toda a minha vida científica. Só a compreenderão quando estiver concluída. “O Espírito do Direito Romano” não passa, na minha mente, de uma preparação. Mas, “O Espírito do Direito Romano”, devia ser escrito para encetar este estudo, cuja elaboração encerra a minha suprema missão científica”.
A concepção da função do direito, para Jhering, se encontra bem discutida em O paraíso dos conceitos jurídicos, e, a propósito, não é demais recordar que, não raro, nas traduções de seus trabalhos para o idioma inglês, ele é mencionado como o “Bentham Alemão”:
“Para os juristas americanos, Jhering é conhecido como o Bentham germânico. As similaridades entre os dois juristas decorre do fato de terem pensado as mesmas linhas, e também porque que cada um pertenceu a um período de transição no pensamento jurídico em seu próprio país, tendo cada um deles sugerido correções similares para falácias jurídicas de seu tempo, mais do que a qualquer tipo de adaptação direta do utilitarismo inglês pelo jurista alemão”.
Este paralelo entre Jhering e Bentham ocorre também a partir de ilação feita por Herbert Hart, que não apenas chamou de “tragédia intelectual” a não tradução das obras do jurista alemão, como também reforçou as similaridades entre ele e Holmes, destacando que uma versão fragmentada do “paraíso” havia primeiro aparecido na década de 1950 no idioma inglês, numa edição organizada por Morris Cohen e Felix Cohen — este último, a propósito, tendo escrito um ensaio provocante em 1935 sobre o “non sense” no Direito, na Columbia Law Review, todo ele baseado no artigo de Jhering, e em cuja tradução para o espanhol, publicado na argentina pelo jurista Genaro Carrió, mencionou-se que seria de leitura obrigatória para todos os profissionais do direito.
As metáforas e a crítica satírica, utilizadas e realizadas por Jhering, no Paraíso dos Conceitos Jurídicos — entre elas “o pau de sebo dos problemas jurídicos”, a “máquina de partir cabelos”, a “máquina da ficção”, a “máquina de construir”, a “máquina de conciliar passagens contraditórias”, a “furadeira dialética”, e o “muro da vertigem” — bem poderiam ser vistas sob o ponto de vista das observações que Bentham urdiu, a partir de sua referência crítica sobre o uso das ficções jurídicas no direito, como na conhecida e ácida passagem sobre elas:
“Por fanatismo ou artifício de juristas, uma grande parte do ordenamento jurídico estava trancada em caracteres ilegíveis e em uma língua estrangeira. Ficções, tautologias, tecnicalidade, circularidade, irregularidade e inconsistência permanecem. Mas, acima de todas, encontramos a respiração pestilenta da ficção, que inocula veneno nos sentidos de cada instrumento do qual se aproxima. (…) Ladrão para pegar ladrão, fraude para combater fraude, mentira para combater mentira. Cada criminoso utiliza as armas com as quais é mais habilidoso; o touro usa seus chifres, o tigre as suas garras, a cascavel suas presas, o jurista técnico as suas mentiras. Bandidos não licenciados usam gazuas; os licenciados utilizam ficções”.
Contudo, seja conceitual ou funcionalmente, as “metáforas” de Jhering e a análise sobre as ficções de Bentham não são coincidentes. Guardam em comum, no entanto, a força e a importância da linguagem, elemento central que deve ser ressaltado no Paraíso dos Conceitos Jurídicos. As primeiras desnudam o agir de certos juristas na Alemanha do século XIX e que teriam influído no pensamento de correntes jurídicas norte-americanas e mesmo brasileiras, e que até hoje possuem enorme atualidade pela influência que causaram. As últimas se ligam, em algum sentido, a uma percepção sobre o utilitarismo do direito inglês do século XVIII, e cuja importância — de alguma maneira — pode ser localizada na crítica que MacCormick dirige contra Dworkin, chamando sua empreitada teórica de “pré-bentamita”.
Aliás, um raro e pouco recordado artigo de MacCormick, em uma resposta aos “Critical Legal Studies”, herdeiros da tradição do realismo jurídico daquele país, capitaneado por Holmes (que por sua vez parece ter alguma similaridade com Jhering), nos remete ao embate teórico ocorrido no “paraíso dos conceitos jurídicos”, especialmente se tivermos em mente a metáfora que descansa nas alegações de “reconstrução” depois da “desconstrução”: em especial a observação do autor sobre a “reconstrução racional” e o destaque sobre a importância do tipo de trabalho elaborado por Gaius, sobretudo porque é uma cena que poderá ser vista “n’o paraíso”.
Não fosse apenas pela forma mordaz e descontraída de tratar temas como a diferenciação entre “teóricos” e “práticos”, que refletia no embate entre as escolas do direito livre e da jurisprudência dos conceitos, já seria indicada a leitura de um texto fundante, presente na obra Graça e Seriedade na Jurisprudência, como o traduziu Cruz e Tucci, ou Gracejo e Seriedade na Jurisprudência, na tradução de Abelardo Saraiva da Cunha Lobo, a partir do original Scherz Und Ernst In Der Jurisprudenz, 1884 (e respectivas traduções Serio e faceto nella giurisprudenza, 1954, e Bromas y Veras en la jurisprudência,1974), mas, também pelas lúcidas e seminais palavras de Luís Prieto Sanchís:
“Seria de todo impossível descrever aqui os itinerários do que se vem a qualificar como antiformalismo, uma amplíssima e não de toda homogênea corrente de pensamento, que talvez se possa fazer a partir do segundo Jhering (Scherz und Ernst in der Jurisprudenz, 1884), e que passando pela ‘jurisprudência dos interesses’ de Heck, o pragmatismo de Duguit, o direito livre, ou Realismo norte-americano, alcança nossos dias com a ‘tópica’ e a ‘hermenêutica’, que em maior ou menor grau, nos distintos autores, supõe um ‘descolamento da lei’ em favor da ‘interpretação’: primeiro, o direito legal envelhece e não seria capaz de oferecer respostas para os novos problemas, o que provoca tanto a aparição de lacunas, como a manutenção de soluções obsoletas e insatisfatórias; segundo: o direito não possuiria – como pretende – um caráter sistemático ou corrente, o que novamente deixa nas mãos do juiz a produção de respostas para o caso concreto; terceiro: o direito não pode ficar exilado na lei do Estado, pois existem outras fontes sociais que competem com ela, e que também devem ser ponderadas pelo intérprete; quarto: a letra da lei se mostraria insuficiente, no sentido de que por detrás de seus enunciados há um fim ou interesse social que remete a uma constelação de valores, que mesmo assim irão fazer diferença na decisão judicial; por último: a compreensão dos enunciados jurídicos não é – em nenhum caso – uma tarefa receptiva, passiva ou mecânica, mas ao contrário, requer uma especial ‘atitude hermenêutica’, onde a sociedade e a cultura renovam e recriam o texto mudo da lei. Dito em poucas palavras, frente ao que imaginou a ‘ciência da legislação’, a lei não esgota a experiência jurídica; inclusive, para os mais radicais, será um obstáculo para ela’…” (Tradução livre).
É exatamente por este motivo, aliado ao atual estado da arte do Direito no Brasil, que o tripé indecomponível do Direito (lei, doutrina e jurisprudência) pode ser mais bem compreendido, aplicado e explicado através da notável contribuição de Jhering em suas seminais reflexões contidas no Paraíso dos Conceitos Jurídicos. Por tal razão, os autores deste artigo, juntamente com o pesquisador Eduardo Leite, estão a executar embrionário projeto de tradução desta riquíssima peça da literatura jurídica.
Autor: Jefferson Carús Guedes é mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, professor da graduação e do mestrado e doutorado da UniCEUB e advogado da União.
Thiago Aguiar de Pádua é doutorando e mestre em Direito, professor da graduação e da pós-graduação em Direito da UniCEUB e assessor de ministro do STF.