Contrariando o discurso político do Governo do Distrito Federal, pela instalação de uma Brasília legal, os pardais eletrônicos foram postos na vigilância do trânsito de Brasília com função punitiva, à revelia do povo, sem previsão em lei. O administrador público só deve realizar aquilo que a lei determina e, se não há lei regulando a vigilância punitiva dos pardais, o atuar administrativo, no caso, se afigura arbitrário e abusivo.
A observância do princípio da reserva legal se impõe, na espécie, como resultante de uma conquista histórica do cidadão, cristalizada nos direitos e garantias fundamentais dos povos livres, na força determinante do princípio nulla infratio, nulla poena, sine previa lege (CF, art. 5º, XXXIX).
Compete, privativamente, à União, mediante a ação legiferante do Congresso Nacional, legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes e sobre trânsito e transporte (CF, arts. 22, IX e XI 48, caput), sendo da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tão-somente, estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito (CF, art. 23, XII).
Nesse sentido, a Lei nº 5.108, de 21.9.66, ainda em vigor, e o Projeto de Lei nº 3.710-D, de 1993, determinam que o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação pública, reger-se-á pelas disposições do Código Nacional de Trânsito (CNT), sendo vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios legislar nessa matéria.
Os pardais eletrônicos e sua ação punitiva, no Distrito Federal, violam, sob diversos ângulos, os princípios da legalidade estrita, da tipicidade cerrada e da anterioridade da lei penal, de proporcionalidade e da pessoalidade da pena, da segurança jurídica e da publicidade e moralidade administrativas, que são os sustentáculos do Estado Democrático de Direito e de Justiça social.
Sem lei anterior que os previa e sem a prévia cominação de suas penalidades, os pardais eletrônicos disparam no abuso das multas aplicadas no trânsito de Brasília, movidos pela ganância neoliberal do faturamento fácil e tão ao gosto das empresas ligadas ao projeto de sua instalação, com propósitos visivelmente financeiros, desviando-se de sua função meramente instrumental-comprobatória das infrações de trânsito, como assim já é antevista, de lege ferenda, em disposição expressa do novo Código Nacional de Trânsito (Art. 280, § 2º).
O Código Nacional de Trânsito, que, ainda, vigorava até outro dia (Lei nº 5.108, de 21.9.66) embora cuide dos deveres, proibições, infrações e penalidades no trânsito (art. 83 a 111), não prevê a existência de barreiras e pardais eletrônicos.
O novo CNT (Projeto de Lei nº 3.710-D, de 1993), prevendo a atuação de aparelho eletrônico, de equipamento audiovisual de reações químicas ou de qualquer outro meio tecnologicamente disponível, previamente regulamentados pelo Contran, como instrumentos comprobatórios da prática de infrações e auxiliares da autoridade ou dos agentes da autoridade do trânsito, prestigia e garante a aplicação dos princípios constitucionais da transparência da atuação fiscal, do amplo contraditório e da segurança jurídica, na determinação de que ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, na presença do infrator, do qual constará: I tipificação da infração; II local, data e hora do cometimento da infração; III caracteres da placa de identificação do veículo, sua maca e espécie, e outros elementos julgados necessários para sua identificação; IV o prontuário do condutor sempre que possível; V identificação do órgão ou entidade e da autoridade ou agente autuador ou, equipamento (que comprovar a infração); VI assinatura do infrator, valendo esta como notificação do cometimento da infração.
O princípio da imediatidade do agente apurador da infração de trânsito afasta, assim, definitivamente, o arbítrio eletrônico dos pardais, exigindo-lhe a funcionalidade instrumental, nos ditames da lei, a possibilitar uma defesa ampla e consistente ao cidadão, com a garantia efetiva de que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV).
A exigência da tipificação da infração, como requisito de validade do auto infracional, afirma a aplicação, na espécie, dos princípios da legalidade estrita e da tipicidade penal, como, assim, já determina o parágrafo 2º do art. 100 do CNT, que agora é substituído, com a redação dada pela Lei nº 8.102, de 10 de dezembro de 1996, na dicção de que em qualquer caso, a notificação da multa de trânsito não poderá deixar de consignar, com clareza, o dispositivo de lei infringido.
Na aplicação das multas (penalidades) resultantes das infrações registradas pelas barreiras e pardais eletrônicos nas vias urbanas e de trânsito rápido de Brasília, não se tem observado a garantia constitucional da pessoalidade da pena, quando se notifica, tão-somente, o proprietário do veículo a pagar a multa aplicada, ainda quando a infração tenha sido praticada por condutor que não é proprietário.
Os princípios fundamentais de que nenhuma pena passará da pessoa do infrator (CF, art. 5º, XLV) e de que a lei regulará a individualização da pena (CF, art. 5º XLVI) estão consagrados nos arts. 100, § 1º 101 e 102, caput, do CNT etão vigente (Lei nº 5.108/86) e no art. 257, parágrafos 1º a 6º do CNT a viger, em que se define a responsabilidade infracional do condutor do veículo, do proprietário, do embarcador e do transportador.
Os responsáveis pelos pardais e barreiras eletrônicas de Brasília não respeitam, também, os princípios da proporcionalidade e da graduação da pena, na medida em que aplicam a mesma penalidade a pessoas que ultrapassam limites máximos de 50km/h, com velocidades diversas de 70km/h (uma) e 120km/h (outra), a merecer, cada qual, uma pena compatível com o grau de periculosidade de sua ação infratora.
Tais princípios já estão incorporados nas disposições do art. 258 do novo CNT, que classifica as infrações punidas com multa de acordo com sua gravidade, em gravíssima, grave, média e leve, favorecendo o exercício da ampla defesa, quando determina que, se o infrator oferecer defesa no prazo legal, o recolhimento da multa poderá ocorrer após o julgamento do recurso (art. 288, caput).
Resta ferido, também, na espécie, o princípio da segurança jurídica, a pretexto da segurança no trânsito de Brasília, com a implantação deliberada de vários limites de velocidade máxima, em nossas vias urbanas e adjacências, sob a vigilância carrasca e traiçoeira de pardais e barreiras eletrônicas, postos em locais que dispensam suas presenças punitivas, e que, ali, os justificam, apenas, no intuito de atender aos reclamos materialistas do capitalismo selvagem e antropófago-tupiniquim, neste final de século.
A defesa da vida, da liberdade e da segurança das pessoas há de ser feita nos limites transparentes da legalidade, para que todos possamos nos sentir construtores de um Brasil legal e constitucional, com vocação para ser um Estado Democrático de Direito.
Antônio de Souza Prudente
Juiz federal e professor da Universidade Católica de Brasília