Parece se disseminar uma interpretação autodestrutiva do Direito

Autor: Ziel Ferreira Lopes (*)

 

A Primeira Guerra Mundial tinha acabado e, junto com ela, o clima de prosperidade burguesa que embalara os primeiros escritos de Freud. Até então, o principal desafio às suas ideias vinha da moral vitoriana da época, facilmente escandalizável. Depois da guerra, o pai da psicanálise passa a viver numa Europa assombrada com a própria bestialidade, tendo vindo subitamente à tona tudo aquilo que se julgava superado pelas conquistas civilizatórias. Além disso, um crescente mal-estar preparava a eclosão de um conflito ainda mais violento, a Segunda Guerra Mundial, cujo desfecho nuclear em Hiroshima anunciaria a capacidade humana de auto-aniquilação.

Com tudo isso, foi crescendo na obra freudiana a importância de uma categoria independente para se referir aos instintos destrutivos, antes vistos apenas como casos peculiares em que o “princípio do prazer” se expressava de maneira sádica/masoquista.

Assim, ao lado da “pulsão de vida”, a ideia de uma “pulsão de morte” surgiu em Além do princípio do prazer (1920), inicialmente postulada em termos biológicos. Como resumiu depois: “concluí que deveria haver, além do instinto para preservar a substância vivente e para juntá-la em unidades cada vez maiores, um outro, a ele contrário, que busca dissolver essas unidades e conduzi-las ao estado primordial inorgânico”. Já naquela época cogitava a existência de “instintos componentes cuja função é garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo”.

A categoria se desenvolveu psicanaliticamente em O Ego e o Id (1923), explicando uma parte inexplorada da dinâmica mental do indivíduo. Como observam Paulo Endo e Edson Souza: “uma das principais consequências dessa reviravolta é a segunda teoria pulsional, que pode ser reencontrada na nova teoria do aparelho psíquico”. Assim, a questão se liga ao surgimento do superego, instância que “ao mesmo tempo em que possibilita uma aliança psíquica com a cultura, a civilização, os pactos sociais, as leis, as regras, é também responsável pela culpa, pelas frustrações e pelas exigências que o sujeito impõe a si mesmo, muitas delas inalcançáveis. Daí o mal-estar que acompanha todo sujeito e que não pode ser inteiramente superado”.

Por fim, a pulsão de morte ganhou alcance social em Mal-estar na civilização(1930), texto produzido nesse contexto sombrio que comentamos acima. Nesse âmbito, trata-se de uma espécie de culpa pela repressão dos desejos individuais que possibilitaram gerar a civilização, uma vontade primitiva de destruí-la, dissolvendo suas estruturas em conflitos violentos e voltando ao útero de um estado de natureza. O próprio autor confessa desconforto ante essas constatações.

Freud veria o Direito moderno assombrado por essa tendência interna à autodestruição e, pode-se dizer, sem o apelo sobrenatural dos tabus característicos das sociedades simples (totêmicas) para se amparar. Conclui o texto de uma maneira melancólica, sem saber o que poderia garantir a prevalência dos instintos de vida nas futuras civilizações.

Eis aí um dos diagnósticos mais preocupantes sobre nossa área, com o qual as Ciências Sociais contemporâneas vêm tentando lidar. Uma estratégia geral para manter o projeto civilizatório passou a ser: procurar algo que já funciona na sociedade, e dá sentido à sua existência, para desenharmos nossas instituições a partir daí.

Nesse sentido, consideremos brevemente a famosa Teoria do Direito de Ronald Dworkin. Sua visão do Direito como integridade parte da fenomenologia das práticas jurídicas cotidianas, tenta achar os princípios que as justificam e desenvolvê-los sob sua melhor luz.

Assim, Dworkin liga a hermenêutica jurídica a uma interpretação construtiva, que contempla uma dimensão de ajuste institucional ao Direito que está sendo interpretado e uma dimensão de valor/justificação deste. Sua famosa metáfora do “romance em cadeia“ mostra como isso se estende num empreendimento coletivo. Cada juiz figura como o coautor de uma obra literária, tentando manter o fio narrativo do que vem sendo escrito e, ao mesmo tempo, desenvolver a história da melhor maneira possível em seu capítulo.

Há um certo “otimismo” interpretativo do jusfilósofo americano que nos parece indispensável para que sigamos com o empreendimento coletivo do Direito. Só assim a jurisprudência, a legislação, a prática jurídica como um todo faz sentido. Contudo, à sombra do Império do Direito parece crescer um mal-estar. Como exemplo máximo disso, veja-se as afirmações sobre a possibilidade de uma “intervenção militar” no Brasil, com base no artigo 142 da Constituição.

Os juristas Lenio StreckMarcelo Cattoni, Thomas Bustamante, Emilio PelusoDeborah Duprat e Marlon Weichert não deixam dúvidas sobre a inconstitucionalidade dessas interpretações, que forçam o sentido do artigo citado, esquecem do seu parágrafo único, do título V em que se encontra, da Lei Complementar 97 de 1999, além da coerência e integridade do Direito. Remeto o leitor às suas análises pormenorizadas, para focar aqui em outra questão. Nos debates analisados, chama atenção que nem todos os que veem a possibilidade de uma “intervenção” são militares, nem mesmo civis obcecados por governos militares. Alguns acreditam estar apenas denunciando a existência de uma “bomba-relógio” na Constituição, um dispositivo constitucional de autodestruição (que não existe, repita-se), diante do qual deveríamos nos preparar para a resistência à tirania.

Há quem nem entre no mérito dessa constitucionalidade, apenas querendo saber o que a opinião pública acharia de uma intervenção militar. Excetuado o âmbito das pesquisas de opinião, seria importante que as duas questões aparecessem sempre juntas no debate público. Isso é ainda mais importante nas interações públicas de autoridades que ocupam lugares institucionais destacados, ligados à defesa da legalidade e da Constituição, pois estas interações são sempre revestidas de um poder simbólico. E aí a (óbvia) negativa da constitucionalidade da intervenção militar deveria encerrar a questão, no que lhes diz respeito. Mesmo com as melhores intenções, nesses casos e nesses cargos, perguntar ofende. Ainda mais se tomarmos a Constituição como herdeira dos tabus no Direito contemporâneo. Diante do horror que ela “interdita”, certas questões deviam se tornar, no mínimo, sensíveis.

Não queremos pessoalizar o problema, mas apenas atentar para o caráter sintomático desses discursos. O problema é maior, como mostram as redes sociais. Também o mostram institutos de pesquisa de opinião, espaços mais apropriados para esse tipo de enquete.

Parece se disseminar no país uma estranha hermenêutica que interpreta o Direito sob a luz mais catastrófica, que busca uma perspectiva em que o próprio Direito seja dos seus supostos adversários, precisando ser descartado – ou, ao menos, considera hipoteticamente seu descarte. Isso relaxaria a interdição civilizatória, para que a sociedade pudesse se entregar às fantasias violentas de cada um. É a interpretação destrutiva. Ou pior: autodestrutiva. Aqui o modelo de juiz não é o Hércules dworkiniano, mas Tânatos. E o romance em cadeia é substituído pela irracionalidade de redes sociais, em que cada post visa a esculhambar mais a discussão.

Talvez não seja por acaso que, desde a Constituição de 1988, representantes de todas as tendências ideológicas possíveis tenham falado na convocação de uma nova Assembleia Constituinte, esperneado contra as cláusulas pétreas e incentivado Emendas Constitucionais para além dos limites do Poder Reformador. Fora de limites institucionais não há Direito, mas imposição violenta dos desejos de cada um aos demais.

Assim, um mínimo “pé no chão” freudiano cairia bem para aqueles dispostos a deixar de lado suas expectativas infantis: a civilização não elimina os conflitos, não estabelece um paraíso na Terra (revolucionário ou de comercial de margarina), mas os organiza de uma maneira não destrutiva. Podemos aprender a viver com isso e fazer de uma gestão democrática dos desacordos a base do nosso Direito, como Dworkin e outros propõem. Ou podemos continuar gestando uma nova ditadura. Você é o juiz!

 

 

 

Autor: Ziel Ferreira Lopes é doutorando em Direito pela Unisinos, bolsista CNPq-BR.


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