PEC 241 tenta apenas executar a estrutura jurídica prevista na LRF

Autora: Vera Lúcia Chemim (*)

 

A atual polêmica em torno da futura aprovação ou não da PEC 241, que pretende limitar o teto dos gastos públicos, envolve diferentes aspectos que valem a pena ser expostos e minimamente analisados no contexto do presente artigo.

Tais aspectos dizem respeito, em primeiro lugar, ao caráter macroeconômico do tema, mais precisamente às questões sensíveis inseridas nos objetivos de política econômica governamental: a promoção do crescimento econômico e da distribuição de renda, pari passu com a preocupação de estabilizar, isto é, equilibrar os fundamentos da economia, quais sejam: o combate à inflação e ao desemprego, sem prejudicar sobremaneira as relações comerciais do país com o resto do mundo, assim como a adoção de estratégias fiscais e monetárias adequadas à atual conjuntura econômica brasileira.

Em segundo lugar, e não menos importante, há que se remeter à natureza jurídico-política da PEC, quanto à sua legalidade constitucional e ao seu significado político institucional no longo prazo.

Essas questões levam inevitavelmente ao debate sobre a independência e harmonia entre os poderes públicos, à problemática da obrigatoriedade de se atender à Lei Orçamentária Anual, que, por sua vez, conduz imediatamente ao contexto da Lei de Responsabilidade Fiscal e ao infinito trade-off entre a satisfação dos direitos sociais constitucionais e ao objetivo de equilíbrio fiscal e financeiro da União e, por consequência, dos estados-membros, do Distrito Federal e dos municípios, visto que vivemos em uma república federativa.

Trata-se de um tema complexo, razão pela qual o debate no presente artigo pretende apenas provocar a reflexão acadêmica.

A limitação dos gastos públicos por meio de uma emenda constitucional visa restabelecer o frágil equilíbrio do orçamento público (LOA), tendo em vista a significativa presença de um déficit fiscal, ou seja: G – T: a receita corrente é menor do que a despesa corrente, daí aquela expressão algébrica, em que G representa os gastos públicos, e T, a receita pública, isto é, a arrecadação em forma de tributos, os quais representam a sua quase totalidade (cerca de 90% da receita corrente do Estado).

Constatado o déficit público referente aos exercícios anteriores recentes, bem como aos futuros, é necessário estabelecer metas para neutralizá-lo, especialmente no curto prazo, com o fim de viabilizar a operacionalização de políticas públicas por meio de investimentos diretos da União, dando ênfase às políticas de caráter afirmativo, como a execução de gastos voltados para a educação, saúde, segurança e transportes coletivos.

Para tal, os recursos do Estado precisam ser devidamente saneados.

Do ponto de vista da política monetária, há algumas opções de financiamento desse déficit, tais como a própria emissão de moeda ou a venda de títulos da dívida pública, além da manipulação da taxa Selic (Serviço de Liquidação e Custódia de Títulos da Dívida Pública) — a taxa de juros que serve de referência ao mercado monetário e financeiro.

É, contudo, de notório saber que a primeira alternativa é inviável num contexto inflacionário, até porque, historicamente, o país já tem uma dolorosa experiência nesse sentido, principalmente a dos anos 1980, em que se viveu uma inflação inercial que conseguiu abater todas as teorias econômicas neoliberais, desafiando os economistas do mundo inteiro, quando se constatou ao mesmo tempo, o desemprego dos fatores de produção, levando à chamada “estagflação”: estagnação do PIB num cenário de inflação galopante, em que todas as políticas convencionais adotadas fracassaram sucessivamente, cujos exemplos podem ser aqui lembrados: Plano Verão, Bresser, Cruzado I e II, Collor I e II… até chegar finalmente ao Plano Real, o qual adotou estratégias inéditas de início (o equilíbrio dos preços relativos da economia), para posteriormente repetir as antigas políticas monetárias, fiscais e cambiais clássicas para efetivar o seu sucesso de forma definitiva sobre aquela inflação.

Quanto à segunda alternativa, embora se caracterize como um tradicional instrumento de política monetária, é preciso ter prudência na atual conjuntura econômica, para não agravar ainda mais a situação das contas públicas, por meio de um excesso de pagamento de juros e serviço da dívida pública, decorrente da venda de tais títulos, os quais só fazem aumentar ainda mais a dívida pública total do Estado[1] (interna e externa).

Por último, resta a administração da Selic, pelo Banco Central, como uma forma relativamente eficiente no combate à inflação de natureza clássica, isto é, de demanda, embora se tenha restrições quanto a essa questão no atual contexto, visto que o mercado está constatando o mesmo fenômeno dos anos 1980: uma estagflação com natureza e razões diferentes daquela.

No atual momento brasileiro, o que está em evidência é uma crise obviamente fiscal (como a dos anos 1980), cuja origem decorre de uma grave crise político-institucional, com reflexos diretos sobre o comportamento da sociedade civil.

Nesse sentido, a falta de confiança dos agentes econômicos nos poderes públicos, especialmente no Poder Executivo e no Legislativo como um todo, levou a uma diminuição da oferta, a qual provocou proporcionalmente um aumento de preços que prejudicou a demanda, desembocando inevitavelmente na inflação com desemprego.

Portanto, nos anos 1980, a origem da crise fiscal era exclusivamente econômica, proveniente dos empréstimos externos pari passu com a crise do petróleo de 1973 e 1979, que provocou o aumento internacional de preços e de juros, levando à grave crise brasileira, a despeito da existência de dois fatores causais de natureza endógena, conforme Roberto Campos observara de forma perfeitamente correta: a péssima administração e o superado modelo de substituição de importações.

Hoje, a crise política institucional provocou a crise econômica.

Quanto à política fiscal propriamente dita, há dois possíveis caminhos: o aumento da receita pública por meio do aumento das alíquotas dos tributos ou até mesmo a criação de um tributo[2], como a CPMF, além de empréstimos compulsórios que fazem parte da nossa história passada e presente.

Levando-se em consideração a alta e crônica porcentagem da tributação em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) do país, a qual varia entre 32 e 36%, já tendo chegado a 38%, onerando significativamente os agentes econômicos (empresas e consumidores) e se caracterizando, portanto, como um dos fatores inibidores do crescimento econômico e da própria distribuição de renda, tal alternativa precisa e deve ser a ultima ratio para o governo federal.

Resta assim a estratégia igualmente dolorosa, principalmente para os investimentos privados, se nos lembrarmos de John Maynardes Keynes, de limitação dos gastos públicos, objeto de debate polêmico no Congresso Nacional e nos bastidores do Poder Judiciário.

No entanto, o remédio tem que ser aplicado proporcionalmente à gravidade da doença do paciente. De menos, o paciente continua doente, aumentando os seus riscos; demais, o remédio mata o doente, conforme bem observado no passado por Luís Carlos Bresser Pereira.

Quando se fala em limitar gastos públicos, é preciso focar nos gastos de consumo da máquina estatal, isto é, nos gastos relacionados à manutenção do funcionamento dos três Poderes, tanto na instância federal, quanto nas instâncias estaduais e municipais, o que leva imediatamente aos gastos referentes às despesas correntes de consumo, como por exemplo diárias de viagem, material de expediente, de limpeza, pagamento de prestação de serviços de terceiros, compras públicas em geral, excluindo o pagamento de juros e de serviços da dívida pública, pois a PEC foca as despesas primárias.

Se partirmos do pressuposto de que os investimentos públicos devem ser preservados, até por uma razão óbvia de que eles constituem o fundamento da intervenção do Estado na economia, os gastos de consumo devem inevitavelmente ser afetados de alguma forma, para se obter uma significativa racionalidade na sua gestão.

O que não se pode conceber é a redução de gastos correntes (de consumo) voltados especialmente às políticas sociais, tais como as transferências de renda para pessoas físicas que necessitam de suporte governamental, como as bolsas de estudo, Bolsa Família, assistência à saúde e à educação etc.

Os percentuais referentes às transferências da União para os estados e municípios, no que diz respeito à educação e saúde, estão previstos na Constituição Federal de 1988, não podendo, pois, serem desatendidos pelo governo federal.

Os investimentos dessa natureza devem ser priorizados, tanto pela União como pelos estados e municípios, pois constituem uma das principais formas de distribuição racional de renda: o acesso à saúde e à educação, para que se tenha um retorno a médio e longo prazo desses investimentos, inicialmente para as pessoas beneficiadas de forma individual e, por consequência, para o país, uma vez que um povo sadio e educado é garantia de uma mão de obra qualificada para que se obtenha o seu crescimento econômico pari passu com uma sociedade desenvolvida sob o ponto de vista social e político.

No curto prazo, os investimentos privados ainda sofrerão com a política fiscal restritiva. Porém, não mais do que já estavam prejudicados com as ações governamentais anteriores, uma vez que a confiança dos agentes econômicos (internos e externos) tem aumentado paulatinamente, criando um novo clima de otimismo que será determinante para a retomada do crescimento econômico e para o emprego dos fatores de produção.

Finalmente, no que se refere ao objetivo imediato de estabilidade econômica, mais especificamente o combate à inflação e ao desemprego, há que se estabelecer prioridades no atendimento das políticas públicas assumindo de forma quase que permanente o eterno conflito (trade off) entre os diversos interesses.

Nessa direção, cabe ao Poder Legislativo a tarefa de filtrar tais interesses e escolher os mais relevantes no contexto da presente crise, para que o Poder Executivo tenha condições de executá-los.

Portanto, a PEC 241 se caracteriza atualmente como um instrumento capaz de sanear as contas públicas no curto e médio prazo, possibilitando a retomada da economia brasileira para o caminho correto, para que se possa criar condições de aumentar o PIB e, por conseguinte, o emprego e a renda no longo prazo.

Por outro lado, a PEC 241 representa apenas o ponto de partida para a estabilidade econômica. Os objetivos de longo prazo, como o crescimento econômico e a distribuição de renda, só serão otimizados com o incremento de várias reformas, como a da Previdência e a política, além de outras que vêm sendo tentadas desde os anos 1960, sem sucesso, pois falta o principal ingrediente: o apoio político dos poderes Legislativo e Executivo, bem como o da participação efetiva da sociedade brasileira.

A segunda questão proposta por esse artigo é a natureza jurídico-política da PEC, isto é, as implicações legais e constitucionais que a acompanham e o seu papel político-institucional no longo prazo.

Do ponto de vista jurídico, a PEC, enquanto meio processual constitucional para se modificar um ou mais dispositivos constitucionais, é perfeitamente legal, atendendo às exigências elencadas no artigo 60 da Constituição Federal de 1988 para ser aprovada no Congresso Nacional.

Quanto ao mérito, a PEC estabelece padrões rígidos para o teto dos gastos públicos para os próximos anos, remetendo inevitavelmente para a disciplina já exaustivamente difundida pela criação da Lei de Responsabilidade Fiscal no governo FHC, com o mesmo fim, agora ratificado pela atual crise fiscal e pelo clamor do governo Temer para a importância da conscientização de se apoiar essa proposta.

É preciso destacar que a atual preocupação com o limite de gastos públicos não é uma inovação técnica do governo Temer, e sim uma tentativa de fazer valer a teoria contida na Lei de Responsabilidade Fiscal, que não foi respeitada em anos recentes.

Isso equivale a afirmar, por meio de Heraldo da Costa Reis e José Teixeira Machado Jr., em seu livro A Lei 4.320 comentada e a Lei de Responsabilidade Fiscal, que a LRF[3], além de já ter regulado os próprios artigos da Lei 4.320, inovou quanto à ótica técnico-contábil e política, ao reforçar juridicamente a exigência de prestação de contas entre os entes federativos e seus respectivos órgãos (federalismo fiscal), bem como evidenciar de forma clara e precisa os gastos em consonância com a receita pública de forma ampla, ou seja, abrangendo a administração pública direta e indireta (Princípio da Transparência e da Universalidade).

Princípios orçamentários tradicionais, tais como o da unidade e o da universalidade, são objeto de estudo das finanças públicas, embora nunca tenham sido levados a sério na prática da administração pública brasileira.

Da mesma forma, os dispositivos constitucionais constantes no artigo 165 da Carta Magna de 1988 parecem ter sido, até agora, relegados a segundo plano, especialmente do ponto de vista daqueles princípios, com o agravante de que os parágrafos 4º e 5º do referido artigo os traduzem.

A Lei de Responsabilidade Fiscal os contempla em vários de seus artigos, tais como o 1º, 2º e 3, que tratam das “Disposições Preliminares”, assim como o artigo 4º inserido no Capítulo II “Do Planejamento”, seção II “Da Lei de Diretrizes Orçamentárias”, além do artigo 9º, da seção IV “Da Execução Orçamentária e do Cumprimento das Metas”, com ênfase no parágrafo 3º e os artigos 15 e 16, do Capítulo IV “Da Despesa Pública”, seção I “Da Geração de Despesa”.

Todos eles dispõem as questões sensíveis discutidas atualmente em função da possível aprovação da PEC: a obrigatoriedade e conveniência da vinculação das Leis Orçamentárias Anuais (LOA’s) com os Planos Plurianuais (PP) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e em consonância com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), no atendimento ao Princípio do Federalismo Fiscal, o qual diz respeito à interligação entre os Poderes e à intraligação em cada um deles, visando a compatibilidade entre receita e despesa pública, bem como o atingimento de metas fiscais, incluindo os riscos que lhe são inerentes, de modo a abranger toda a administração pública.

Em suma, a PEC 241 nada mais faz do que tentar executar a estrutura jurídica prevista na LRF, não ultrapassando os limites impostos pela Constituição Federal de 1988, especialmente as cláusulas pétreas, como o respeito ao princípio federativo e da separação de Poderes, contemplados no parágrafo 4º, incisos I e III, do artigo 60.

Ademais, é oportuna e relevante a observação de que os artigos a serem incorporados à ADCT constantes na PEC traduzem ipsis litteris os dispositivos constitucionais da Carta Magna.

Pode-se assinalar um fato novo que representa a principal medida a ser operacionalizada pela PEC: os gastos dos três Poderes estarão atrelados nos próximos 20 anos ao índice de inflação, caracterizando um mero reajuste (nominal), tendo-se estabelecido determinadas situações e alguns limites em percentuais para a justificação de um provável aumento real, embora criem também regras-sanções para os Poderes nas três instâncias que os ultrapassarem em cada exercício.

Isso remete novamente ao que poderá acontecer no curto prazo e especialmente no médio e longo prazo, no que diz respeito ao maior ou menor alcance das iniciativas de cada Poder quanto aos seus objetivos institucionais.

O que se questiona no interior de cada um daqueles Poderes é até que ponto as limitações financeiras impostas pelo governo federal, ou seja, pelo Poder Executivo, poderão caracterizar uma intervenção imperativa no âmbito dos demais Poderes.

O principal argumento direciona à ameaça, inicialmente potencial, de desequilíbrio das relações entre os poderes públicos, podendo ao longo do tempo estimado pela PEC ser efetiva, prejudicando a independência daqueles Poderes e desembocando num ativismo do Executivo.

No entanto, a restrição orçamentária é comum aos três Poderes, o que induz a se pensar que as dificuldades a serem enfrentadas serão isonômicas. Além disso, a PEC pode ser modificada no décimo ano, caso a situação venha a se normalizar ou pelo menos a ser amenizada do ponto de vista orçamentário.

Finalmente, a estratégia a ser operacionalizada por meio da PEC não pode ser taxada de política de direita, conservadora ou coisa que o valha. Até porque tais termos se encontram superados pelo tempo, desde que o Muro de Berlim foi destruído e não há mais razão para se manter o duelo entre os “ismos”: capitalismo, socialismo, comunismo…, pois a realidade acabou comprovando a fragilidade dessas ideologias, no sentido de que as políticas públicas serão inevitavelmente direcionadas para a prática de ações governamentais, ora de caráter estritamente econômico, se a conjuntura do país assim o exigir, ora em situação normal, de natureza voltada predominantemente às políticas sociais afirmativas, como o meio mais eficaz para uma justa e racional repartição de renda. É neste último contexto que se reforça a necessidade de se concretizar os direitos e garantias constitucionais previstos no artigo 5º pari passu com a incrementação dos direitos sociais dispostos nos artigos 6º ao 11º da Carta Magna.

 

 

 

Autora: Vera Lúcia Chemim é advogada constitucionalista.


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