Por Walter Alexandre Bussamara
Os problemas relacionados ao excessivo volume de tráfego de veículos automotivos dentro de grandes centros urbanos não são recentes. Tomemos de exemplo, pela notoriedade desse seu drama, a cidade de São Paulo, onde, conforme os dias e os horários, a melhor prudência determina deixarmos os carros em casa, ainda que fiquemos à mercê de um saturado e ineficiente sistema de transporte público, consideradas as atuais demandas geográfica e quantitativa atualmente verificadas.
Diante deste crônico cenário, aqui já elevado ao status de caos, chama-nos a atenção, como nem poderia deixar de ser, uma crescente e peculiar inquietação política em face de se encontrar uma possível solução para esse verdadeiro drama metropolitano.
Por vezes de forma mais inflamada, por outras sob aparente tranquilidade, a realidade é que o nosso poder público municipal vem fomentando e amadurecendo, juntamente com os seus departamentos de tráfego, de urbanismo e afins, a implantação de um modelo de gestão eficaz no combate, ao problema de congestionamento. Por enquanto, no entanto, recai no tão aclamado pedágio urbano a condição de eventual alternativa para driblá-lo. Ou seja, de verdadeiro “salvador da pátria”.
E foi, justamente, esta forma de pensar que nos instigou, perplexamente, a apresentar estas correlatas reflexões. De fato, parece-nos que a concepção deste pedágio citadino, tal como idealizada, resta fundamentada, sobretudo, nas mais variadas e atuais inspirações técnicas de conotação político-urbanística da cidade. Seus idealizadores, contudo, esquecem que o pedágio caracteriza-se, antes de mais nada, como um instrumento previsto em âmbito constitucional, com diretrizes próprias que não podem passar ao largo de qualquer sua implementação:
“Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado (…) aos Municípios: (…) V- estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público”. g.n.
Como podemos ver, com solar clareza, a aludida norma constitucional inviabiliza qualquer forma de pedágio, remunerador de serviços de conservação de vias, que viesse a se efetivar em âmbito estritamente local. Ou seja, sob as singelas divisas de um dado município. Noutras palavras, a instituição de pedágio, no Brasil, somente restou autorizada quando, ao ressarcir custos de serviços de conservação de vias[1], assim o for em níveis interestadual ou intermunicipal. Nunca, meramente, municipais.
Utilizando-nos, exemplificativamente, das bem colocadas lições de Roque Carrazza, temos que não será legítima a cobrança de pedágio: “pela transposição de uma ponte, pela utilização de uma avenida, pelo percorrimento de uma estrada de terra, pela passagem numa via marginal, quando situada intra muros, isto é, dentro do território da própria pessoa política; e assim por diante”.[2]
A razão disso vem esclarecida, também, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, citado pelo já aludido e preclaro professor: “A diferenciação de regras para as vias intermunicipais e intramunicipais se deve ao fato de que o Município é o centro da vida ativa (ou de atividades) das pessoas. A rua é a maior expressão que se tem de um bem público e não se pode privar ou restringir o acesso a ela, sob pena de prejudicar drasticamente a liberdade e a vida civil dos munícipes. (…). O pedágio, aliás, como tributo mais antigo, é cobrado desde a Idade Média na travessia de cidades, jamais dentro delas”[3].
Portanto, sob a atual Carta da República, não merecerão guarida quaisquer pedágios urbanos eventualmente cogitados, seja para conservação de vias (materialidade própria do pedágio), seja para redução de tráfego automotivo. Ou, ainda, para citarmos mais um exemplo, visando a um maior equilíbrio de emissão de gases poluentes nos grandes centros. Nada disto, por ora, então, será suficiente a sustentá-los.
Por fim, se há pedágios urbanos em cidades como Londres e Estocolmo, conforme já noticiados, tal significará, apenas, que tais cidades não se submetem a condicionantes tais como as previstas em nosso sistema constitucional, cuja Carta representativa, por sua vez, é dotada de plena supremacia diante de todas as demais normas de nosso ordenamento.
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[1] Daí a sua natureza tributária (taxa de serviço).
[2] Curso de Direito Constitucional Tributário. 23ª ed. rev. amp. e at. até a EC n.53/2006. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 538. Grifos originais.
[3] Rua, a maior expressão do bem público, Jornal Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 09/10/99, 1º Caderno, p. 3, citado por Roque Carrazza, Curso…, cit., p. 538.
Walter Alexandre Bussamara é advogado e sócio do escritório Walter Bussamara Advocacia e Consultoria Jurídica, mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da PUC-SP