PENAS SUBSTITUTIVAS

Antonio José M. Feu Rosa

Nos tempos modernos, o Direito Penal pode ser definido como o conjunto do normas jurídicas que associam efeitos jurídicos exclusivos de Direito Penal a um determinado comportamento humano — o crime. O principal desses efeitos alcança, tão-só e sempre, o autor culpável de um crime. Agente passivo do Direito Penal tem que ser, necessariamente, uma pessoa viva, imputável, que atue culpavelmente. Ou seja: o autor individual, maior, responsável penalmente, que agiu culpavelmente.

Nem sempre foi assim, entretanto, pois em suas origens, ou seja, nas sociedades primitivas, encontramos:

a) a responsabilidade coletiva — eram punidos todos os membros da família do criminoso, ou o clã a que pertencia, ou mesmo a cidade onde habitava. Não havia ‘‘indivíduos’’, mas membros de um agrupamento humano;

De acordo com o Código de Hamurabi, não era executado o que havia matado a filha de outro, mas sua própria filha

A Bíblia fala que ‘‘Jeová castiga a todo o povo pelos pecados de um, especialmente se se trata do rei’’. O procedimento habitual de Jeová para obrigar a reparar um crime era açoitar toda a estirpe. Pela apostasia da verdadeira fé Deus estabelece inclusive a destruição coletiva da cidade. Até os animais domésticos tinham que ser mortos e todos os bens entregues ao fogo (Pentateuco, 13:13 e seguintes).

Como se vê no livro de Josúe (VII, 24), ‘‘quando os filhos de Israel fogem ante o inimigo, a causa é uma maldição. Algo de maldito há entre eles. Tem que ser eliminado sem consideração à culpabilidade individual. Assim, aprendem de Acan seus filhos, filhas, bois e asnos, ovelhas e a mesma tenda onde habitava, infeccionada pela mesma culpabilidade, e lapidam os seres vivos, queimando o resto’’.

Inúmeros são os exemplos históricos de filhos condenados à morte por crimes do pai; de mães, pelos crimes dos filhos; de tios, sobrinhos, avós, pelo crime de um único membro da família.

Não precisamos, porém, ir muito longe. Basta relembrar que nos tempos modernos toda a família do Czar Nicolau II, da Rússia, foi fuzilada, quando da Revolução Comunista de 1917. Conforme registra a Enciclopédia Britânica, ‘‘fuzilaram o Czar, sua mulher, o herdeiro do trono, as duas duquezas, o médico de câmara, o cozinheiro, um servente e uma donzela’’.

No final da Segunda Guerra Mundial a amante de Mussolini, que não tinha nada a ver com os crimes dele, acabou condenada e executada com ele.

Vale relembrar que, recentissimamente, no mês de setembro de 1993, tendo sido mortos quatro soldados da Policia Militar do Rio de Janeiro — possivelmente por traficantes — no bairro de Vigário Geral, um grupo de policiais seguiu para lá, no outro dia, e matou cerca de vinte populares, entre os quais mulheres e crianças, que nada tinham a ver com a morte dos soldados.

Não se pode esquecer, também, os inúmeros casos de morte de reféns, tanto em época de guerra, como de paz.

Mas, da mesma forma que a história do Direito Penal conheceu a responsabilidade coletiva no recebimento de penas, conheceu-se também na execução das penas.

Assim, por exemplo, a pena principal entre os judeus era a ‘‘lapidação’’: o réu morria apredrejado por todo o povo. Na Inglaterra e Estados Unidos, os parentes das vítimas é que enforcavam o criminoso condenado.

A instituição de pelotões de fuzilamento para executar políticos, revolucionários e líderes populares, tem, sem duvida, a mesma coloração de estabelecer uma responsabilidade coletiva, mediante ‘‘ordens superiores’’.

b) puniam-se os mortos — já na Grécia antiga Platão indagava: ‘‘Devemos evitar ofender os mortos e não impedir que se lhes dê sepultura? — Sim. Certamente que devemos fazê-lo’’ (República, V, 469).

Curioso, no entanto, foi o julgamento do papa Formosus, segundo vem relatado pela Enciclopédia Britânica: ‘‘Papa de 891 a 896. Foi feito cardeal, bispo de Porto por Nicolau I, que o enviou para a Bulgária, a fim de fazer a conversão daquele país. Em 867, Formosus retornou a Roma, onde gozava dos favores de Adriano II. O papa João VIII, entretanto, tratou-o como inimigo pessoal e Formosus fugiu de Roma, foi excomungado e reduzido ao estado leigo. Absolvido sob Marinus I e reintegrado no seu posto em Porto por São Adriano III, Formosus foi eleito papa em 6 de outubro de 891. Morreu a 4 de abril de 896. Sob Estêvão VII, seus inimigos políticos desenterraram seu corpo e submeteram-no a um julgamento pós-morte. Sua eleição foi declarada inválida e seus atos anulados. A multidão atirou seu cadáver no rio Tiber. Papas posteriores reviram a decisão do Sínodo de Estêvão’’.

Na Inglaterra, em 1660, por ordem do Parlamento foram desenterrados os cadáveres de Cromwell, Bradshaw e Ireton, enforcaram-nos no local onde eram executados os criminosos comuns e deixaram seus corpos expostos.

Na época moderna, na Rússia, a massa violou a tumba de Rasputin, arrancou seu cadáver, que já estava meio apodrecido, jogou-lhe gasolina em cima e queimou-o.

Acabada a Segunda Guerra Mundial os norte-americanos instalaram um tribunal em Tóquio para julgar e condenar os oficiais. Após sua morte, determinaram a cremação dos corpos e mandaram atirar as cinzas, de avião, no mar. Quanto aos alemães condenados pelo Tribunal de Nuremberg, os aliados fizeram com que suas cinzas fossem espalhadas no deserto.

Mas independentemente dessas condenações de cadáveres e de penas executadas em mortos, havia também penas de morte qualificadas, em que a sentença impunha o esquartejamento do réu após a morte e outras espécies de requintes. Aqui no Brasil mesmo temos o exemplo de Tiradentes, que foi condenado à morte, e a ser esquartejado, depois de morto, devendo todas as partes do seu corpo serem penduradas em vias públicas. Mussolini e sua amante foram mortos pela multidão, e em seguida ficaram pendurados de cabeça para baixo.

c) havia penas que eram executadas em efígies. Uma vez que a pessoa do condenado não era encontrada, ou tinha fugido, desaparecido ou se suicidado, fazia-se uma efígie, aplicando-se nela a pena. Relata V. Hentig que ‘‘o castigo em efígie desempenhou importante papel no processo inquisitorial espanhol. Lemos que a Inquisição condenou à morte na Espanha, entre 1481 e 1809, 31.912 pessoas, das quais foram executadas em efígie 17.659’’.

Entendiam que, da mesma forma como são levadas flores às imagens dos santos e dos mortos, nos cemitérios — se suas efígies são beijadas e acariciadas, agarradas e carregadas com fervor e amor, também podem ser punidas, desprezadas e achincalhadas.

d) havia penas, ainda, contra coisas e animais. Coisas que tinham possibilitado o crime eram condenadas à destruição, e os animais, à morte. O cavalo no qual o cavaleiro havia cometido o crime ia para a fogueira com ele, ou ambos eram atirados do alto de um penhasco.

No que se refere às coisas, Dracon, na Grécia antiga, promulgou uma lei mediante a qual as coisas que caíssem sobre um homem e o matassem fossem destruídas. ‘‘Se uma pedra ou um pedaço de madeira ou ferro alcança um homem e lhe tira a vida, e o homem que atirou o objeto é desconhecido, mas o objeto que causou a morte estava à mão, o objeto deverá ser levado ante o tribunal para ser julgado’’. Platão, impregnado das idéias de seu tempo, defende o mesmo ponto de vista, em ‘‘As Leis’’, IX, 873 e seguintes.

A história registra inúmeros casos de condenação de casas, vilas e cidades: destruía-se tudo, não se deixando pedra sobre pedra. Há, na Bíblia, vários exemplos.

Comenta Filangieri que, ‘‘se uma estátua, um vaso, uma coluna, caindo, matavam ou feriam o homem que observava tais coisas, ou que se encontrava sob elas, de passagem, logo um processo era instaurado e a estátua, a coluna ou vaso sofriam condenação, sendo punidos e reduzidos a pedaços’’ (La Scienza della Legislazione, Milão, 1817, vol. 4, pág. 223).

A Bíblia relata muitos casos de cidades que desapareceram devido ao pecado e licenciosidade de seus habitantes. A ira divina desabava sobre alas — como, por exemplo, Sodoma e Gomorra — fulminando tudo, sem deixar vestígios. Homens e mulheres, velhos e crianças, animais e coisas, culpados e inocentes, todos pagavam, juntos, os pecados (e crimes) cometidos — porque pecados e crimes equivaliam, sendo crime o que constituía pecado, e vice-versa.

Isso, no entanto, não difere muito dos tempos modernos, porque todos se lembram, ainda, que na Segunda Guerra Mundial, em pleno século XX — há apenas quarenta anos — os alemães destruíram totalmente Lídice, matando todos os seus habitantes, e os aliados, por sua vez, arrasaram, por completo, Hiroshima e Nagasaki — não há dúvida de que, com a explosão atômica, morreram homens, animais, cães e gatos, culpados e inocentes, e coisas em geral — casas, utensílios domésticos, carros, corpos, garrafas e até remédios.

Usando a expressão latina: ‘‘More majorum’’ — segundo os costumes antigos.

Antonio José M. Feu Rosa
Desembargador ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo e
Ex-deputado federal

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