HELDER MARTINEZ DAL COL
Advogado no Paraná. Especialista em Administração Universitária pela UEM. Professor de Direito Administrativo na FECILCAM.
Pós-graduando em Direito Civil e Direito Processual Civil pela FECILCAM/FGV.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Direitos reais de garantia – breve escorço teórico: 2.1. Direito das coisas e direitos reais; 2.2. Direitos reais de garantia – Conceituação; 3. O penhor e sua natureza jurídica – 4. Elementos gerais do penhor – 5. Extinção do penhor – 6. O penhor agrícola – 7. Os títulos de crédito rural – 8. Penhores especiais – sobre coisas móveis ou imóveis? – 9. Da prisão do devedor pignoratício como depositário infiel – Posicionamento do Supremo Tribunal Federal. 10. Conclusão.
* Artigo publicado no Repertório IOB de Jurisprudência n.º 23, 1a quinzena de dez/1999 p. 3/16240; Revista Síntese de Direito Civil e Direito Processual Civil, n.º 02, janeiro/2000 e RT 771/133.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo analisar, sob a ótica doutrinária e jurisprudencial, a temática do penhor, como direito real de garantia, aprofundando-se no estudo de uma de suas modalidades especiais, qual seja, o penhor agrícola, espécie do gênero penhor rural, para culminar na investigação de um ponto polêmico no Direito brasileiro, que é a possibilidade da prisão do depositário infiel.
No âmbito do Código Civil e das legislações esparsas atinentes à matéria, procuramos suscitar algumas reflexões acerca da natureza jurídica do penhor agrícola, para avaliar se o detentor da coisa apenhada, por força do gravame real e da obrigação de conservar o bem para entregá-lo ao credor caso descumprida a obrigação, em não o fazendo, possa ser encarado como depositário infiel da coisa, sujeitando-se à prisão.
Trata-se de tema apaixonante, que comporta divergências laboriosamente fundamentadas, o que impõe necessidade de análise criteriosa e atenta das correntes que buscam dar solução à questão da prisão civil, para que nada se perca do seu substrato jurídico.
Compreendendo a posição conflituosa de nossos Tribunais, especialmente por envolver a questão matéria de ordem constitucional, com influência de legislação infraconstitucional que recepcionou tratado internacional, procuramos direcionar nossa pesquisa jurisprudencial para as controvérsias reinantes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, posto que órgão máximo de jurisdição, para onde converge a discussão.
Esperamos, assim, prestar contribuição na tarefa, por vezes árdua, de investigar o sentido teleológico de nossas leis e sua aplicabilidade às situações concretas com que nos deparamos no exercício do honroso mister de profissionais do Direito.
2. DIREITOS REAIS DE GARANTIA – BREVE ESCORÇO TEÓRICO
2.1. DIREITO DAS COISAS E DIREITOS REAIS
O Direito das Coisas, nos dizeres de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, é “o complexo das normas disciplinadoras das relações jurídicas referentes aos bens corpóreos, suscetíveis de apropriação exclusiva pelo homem”, em cuja sistematização incluem-se, em caráter exclusivo, os direitos reais.
Nosso Código Civil, no artigo 674, assevera que são direitos reais, além da propriedade, a enfiteuse, as servidões, o usufruto, o uso, a habitação, as rendas expressamente constituídas sobre imóveis, o penhor, a anticrese e a hipoteca.
A doutrina dominante entende que esse rol é taxativo, admitindo, porém, ampliação por legislação específica, como no caso do compromisso de compra e venda (Dec. lei 58/37), da concessão de uso de terrenos públicos ou particulares e do espaço aéreo sobre eles (Dec. lei 271/67), da locação de prédio com cláusula de vigência no caso de alienação (LRP, 167-1-3, e CC 1197), da alienação fiduciária (Dec. lei 911/69), do uso da derivação de águas (Código de Águas, art. 50) e outros.
A despeito de ser controvertida na doutrina a natureza jurídica da posse e sua classificação enquanto direito real (ou fato com implicações jurídicas), o mesmo não ocorre com os chamados direitos reais de garantia, quais sejam, aqueles que prestam-se a conferir ao titular do direito uma garantia acessória a uma obrigação principal, representada por uma dívida, posto que expressamente enunciados no art. 674 do Código Civil.
No passado, o homem respondia por suas dívidas com seu próprio corpo. Essa realidade superou a fase primitivista e alcançou a civilização, sendo observada por largo período na própria codificação do direito romano (Lei das XII Tábuas, na Tábua III). Somente a partir da Lex Poetelia Papiria, em 326 a.C., é que o indivíduo passou a responder por suas obrigações exclusivamente com o seu patrimônio, abolindo-se a execução sobre a pessoa do devedor e cingindo-se esta aos seus bens.
Segundo pondera J.M. CARVALHO SANTOS, “os bens do devedor constituem a garantia comum dos seus credores. É o princípio trivial de Direito acolhido expressamente em muitas legislações, aliás, superfluamente, porque, embora não consagrado de modo explícito, como no nosso Código, está subentendido, desde que a vida e a liberdade não mais podem responder pelas dívidas, restando apenas os bens que podem prestar garantia real, como suscetíveis de serem sujeitos à ação eventual de todos os credores.”
A possibilidade de ser o devedor apenado pessoalmente por outras formas, como a prisão civil ou administrativa, como conseqüência da inexecução de suas obrigações é tema que interessa diretamente ao presente trabalho e será objeto de aprofundamento no decorrer do mesmo.
A garantia pode assumir conotações diferenciadas, seja de ordem pessoal ou fidejussória, onde o patrimônio do garantidor responde pela obrigação (como ocorre na fiança, no aval e na moderna figura do interveniente garante), seja de natureza real, onde um bem específico do devedor ou de terceiro fica vinculado ao pagamento da dívida por aquele assumida, ao ponto de, em dando-se o inadimplemento, poder excutir-se o bem afetado pela garantia real.
2.2. DIREITOS REAIS DE GARANTIA – CONCEITUAÇÃO
Para SÍLVIO RODRIGUES, “a garantia real se apresenta quando o devedor separa de seu patrimônio um bem e o destina, primordialmente, ao resgate de uma obrigação”.
Nesse diapasão, ORLANDO GOMES define o direito real de garantia como sendo “o que confere ao seu titular o privilégio de obter o pagamento de uma dívida com o valor de um bem aplicado exclusivamente à sua satisfação.”
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, a seu turno, afirma que “a noção básica dos diretos reais de garantia é ainda mais simples do que as de gozo ou fruição, pois tão-somente revela a vinculação de certo bem do devedor ao pagamento da dívida, sem conferir ao credor a fruição da coisa em si.”
Dentre as diversas classificações dos direitos reais, sobressai uma divisão primária, em função da finalidade, que os divide em direitos reais de gozo e direitos reais de garantia.
Diferença básica entre os direitos de uso e gozo e os direitos reais de garantia é que os primeiros têm existência autônoma, ao passo que os últimos são sempre acessórios do direito que visam assegurar.
Enquanto direitos reais de garantia, classificação atribuída pela doutrina em função da extensão dos poderes que o direito real confere ao seu detentor, encontramos o penhor, a anticrese e a hipoteca.
Nosso estudo versará sobre o primeiro deles. O penhor, ao lado da hipoteca, assegura a preferência e o direito de o credor excutir a coisa para satisfação de seu crédito, o que será mais profundamente examinado no item que trata das características da garantia pignoratícia.
3. O PENHOR E SUA NATUREZA JURÍDICA
O penhor possui natureza jurídica de direito real de garantia sobre coisa alheia. Tem caráter acessório e, como tal, sua existência subordina-se à sorte da obrigação principal. Assim é que, em perecendo aquela, por qualquer forma, não subsiste o penhor.
Para que haja o penhor, necessário se faz seja instituído contratualmente. Regra geral, não basta a manifestação volitiva para que se aperfeiçoe. Exige instrumento escrito (escritura pública ou instrumento particular) e a entrega física da coisa, a tradição, além, é claro, da inscrição no registro correspondente, para valer contra terceiros.
Dizemos em regra geral, porque essa concepção comporta exceções. O penhor rural, por exemplo, pode versar sobre coisas pendentes ou futuras, inexigindo a tradição, posto que, consoante a melhor doutrina, o devedor conserva a posse direta, física, da coisa dada, em decorrência da cláusula constituti, ficando o credor com a posse indireta ou jurídica.
SÍLVIO RODRIGUES entende inegável a natureza real do penhor, posto que o direito do credor pignoratício recai sobre a coisa diretamente e, uma vez constituído, opera erga omnes, é munido de ação real e de seqüela, deferindo, ademais, ao seu titular, as vantagens da preferência.
Este entendimento, entretanto, comporta divergências no direito estrangeiro. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO esclarece que juristas há que o excluem da enumeração dos direitos reais, considerando-o como simples garantia de um crédito . Porém, no direito pátrio, o instituto foi catalogado como direito real, sem qualquer implicação que lhe desnature esta condição.
4. ELEMENTOS GERAIS DO PENHOR
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA enumerou alguns requisitos relacionados ao penhor, que consubstanciam seu gênero de garantia real. O primeiro deles diz respeito à capacidade do devedor, ampliada à possibilidade de dispor da coisa; por ser direito real, o penhor vincula a coisa ao pagamento da dívida; completa-se pela efetiva tradição da coisa, quando o bem empenhado sai da esfera de utilização física pelo devedor e transfere-se ao credor, inadmitindo assim, no penhor convencional, a cláusula de constituto possessório, que se traduziria no pacto adjeto ao instrumento gerador, pelo qual o devedor passaria a possuir em nome do credor e que exige a entrega física da coisa; esta (a coisa), por sua vez, deve ser móvel, singular ou coletiva, corpórea ou incorpórea, de existência atual ou futura, não vinculando o imóvel; exige, portanto, seja a coisa empenhada alienável, pois do contrário, a garantia seria inócua; pressupõe, portanto, a existência de um débito e presta-se a garanti-lo; é transmissível por ato inter vivos ou causa mortis; tem caráter acessório e deve obedecer a determinadas formalidades para ganhar campo de existência no mundo do Direito, notadamente o registro.
Finalmente, é de natureza indivisível, não havendo como falar-se em redução do penhor pelo adimplemento parcial da obrigação. A garantia permanece íntegra e total até que se verifique a quitação, mesmo em caso de pagamento parcial.
O penhor confere ao credor os seguintes direitos: ação para reaver a coisa empenhada; retenção da coisa até indenização das despesas realizadas com a mesma, justificadamente, para reparar ou prevenir dano a que não tenha dado causa; tutela possessória contra terceiros que lhe turbem ou esbulhem a posse; indenização por vício da coisa empenhada; percebimento do valor do seguro dos bens ou animais empenhados, em caso de perecimento; percebimento do preço na desapropriação ou requisição do bem ou animal, por utilidade pública e indenização por perdas e danos contra aquele que causar prejuízo pela perda ou deterioração da coisa ou animais empenhados.
Corolário desses direitos, impõe-se ao credor o dever de guarda diligente da coisa, como se sua fosse; a restituição acrescida dos frutos e acessões, uma vez quitada a obrigação; a entrega do excedente, uma vez paga a dívida; o ressarcimento ao dono pela perda ou deterioração que der causa (uma vez paga a dívida ou, após compensado o valor da mesma, a diferença resultante).
5. EXTINÇÃO DO PENHOR
Segundo o Código Civil (art. 802), resolve-se o penhor pela extinção da obrigação; em perecendo a coisa; em renunciando o credor; dando-se a adjudicação judicial, a remição, ou a venda amigável do penhor, se permitir expressamente o contrato ou for autorizada pelo devedor (art. 774, III), ou pelo credor (art. 785 e 802); havendo confusão na mesma pessoa de credor e dono da coisa; ou dando-se a adjudicação judicial, a remição, ou a venda do penhor, autorizada pelo credor.
Estabelecidos esses rápidos pontos de referência, pode-se apreender a essência dos direitos reais de garantia e as normas gerais incidentes sobre o penhor. Vejamos, portanto, em que se constitui o penhor rural, essa modalidade de penhor especial que cumpriu seu papel de assegurar a expansão do crédito para o financiamento da atividade rural.
6. O PENHOR RURAL AGRÍCOLA
J. M. CARVALHO SANTOS observa que “o penhor agrícola visa facilitar a circulação da riqueza representada pelos frutos, favorecendo assim o crédito agrícola e o desenvolvimento da agricultura, pois permite ao agricultor que o seu trabalho represente capital, ainda antes da colheita.”
Conforme alinhavado ao tratar-se do penhor em sua generalidade, o penhor rural constitui uma forma especial de penhor, prevista em legislação própria, que lhe confere contornos específicos e traços diferenciadores do penhor tradicional.
Os principais elementos de especificação do penhor rural agrícola são: I – a desnecessidade de tradição; II – a inscrição no registro de imóveis da circunscrição imobiliária a que estiver afeto o imóvel onde se encontre a coisa empenhada (CC, art. 796), em contraposição ao mero registro no Cartório de Títulos e Documentos, quando se trata de penhor tradicional; III – prazo limitado a dois anos, prorrogável por outros dois (ao contrário do penhor tradicional que não prevê prazo máximo); IV – o objeto sobre que pode recair o penhor, que, segundo alguns autores, podem ser até bens imóveis por destinação, devendo ser especificado com o máximo de precisão para poder a coisa ser identificada. Ainda podem ser objeto do penhor rural safras pendentes, em formação ou futuras, o que constitui uma diferença substancial em relação ao penhor ordinário; V – o penhor rural deu origem à Cédula Rural Pignoratícia, com o advento da Lei 492/37, baseada na transcrição do penhor no registro imobiliário, ocasião em que poderia o oficial do registro expedir a cédula rural a pedido do credor (art. 15 da Lei 492), a qual poderia circular mediante endosso.
A Lei 2.666/55 trouxe a lume algumas interessantes inovações no que diz respeito ao penhor agrícola disciplinado na Lei 492/37. Referida Lei teve sua vigência ressalvada expressamente pelo artigo 19 do Decreto-lei 167/67, que instituiu os títulos de crédito rural e assevera que em havendo dúvida na identificação do produto empenhado em face de outros da mesma espécie existentes no local, o vínculo real recairá sobre a quantidade equivalente de bens da mesma natureza, de propriedade e em poder de estabelecimento que responderá como fiel depositário sob as penas da lei (art. 1o, § 1o, da Lei 2.666).
Dispõe, mais, o artigo 2o daquela lei, que o benefício ou a transformação dos gêneros agrícolas, dados em penhor rural ou mercantil, não extinguem o vínculo real, que se transfere para os produtos e subprodutos resultantes de tais operações.
O dispositivo traz uma conotação lógica. Não raro, o devedor que desvia os bens dados em penhor pode também proceder a sua transformação ou industrialização.
É o caso da usina produtora de açúcar e álcool, que empenha a lavoura de cana e, no vencimento da dívida, já tenha procedido à colheita e industrialização do produto. O vínculo real, neste caso, estende-se ao produto resultante, qual seja, o açúcar ou o álcool.
Referida lei conferiu, ainda, validade ao penhor celebrado pelo arrendatário, comodatário, parceiro, condômino, usufrutuário, independentemente da anuência do proprietário da propriedade imóvel onde encontram-se os bens.
Também estabeleceu a possibilidade de o penhor agrícola abranger os frutos percebidos, pendentes, ou em formação, de imóveis gravados de cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade (art. 4o).
Outra característica dos bens gravados de penhor cedularmente constituído é a impenhorabilidade e a impossibilidade de serem constritados em garantia de outras dívidas.
A lei 492, por sua vez, dispensa o penhor agrícola da tradicional outorga uxória, imprescindível nas operações que gravam imóveis com ônus real.
Em sendo a safra ofertada em penhor, insuficiente para cobrir o valor da dívida, fica assegurado ao credor pignoratício o direito de renovar sua garantia para a safra seguinte. Condição para tanto, porém, é que aceite financiar a nova safra, ocasião em que a garantia passa a abranger ambos os financiamentos. Em não o fazendo, a preferência transfere-se para o credor que financiar a nova safra e o credor anterior terá, então, que aguardar o pagamento do outro financiador para aproveitar do que remanescer, ou, então, valer-se do processo executivo.
Uma vez inadimplida a obrigação, o bem dado em garantia passa a responder pela dívida, através da excussão. A excussão do penhor rural é uma prerrogativa especial de venda dos bens empenhados e processa-se em conformidade com o artigo 22 da Lei 492.
O rito da ação para excutir a coisa empenhada é especial. O devedor é citado para pagar o débito ou depositar a coisa empenhada, sob pena de determinar o juiz o seqüestro dos bens e a prisão do devedor como depositário infiel. Seqüestrada ou depositada a coisa e após apreciada a defesa do devedor, o juiz proferirá julgamento, podendo determinar a venda imediata das coisas empenhadas, venda esta que, nos dizeres de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, não será sustada sob pretexto algum, ainda que interposto recurso, visto que este não suspende a alienação.
7. OS TÍTULOS DE CRÉDITO RURAL
A respeito da evolução dos instrumentos creditícios e da legislação atinente aos títulos de crédito rural, discorre HUMBERTO THEODORO JUNIOR: “Depois de vinte anos de aplicação do penhor rural, a L. 3.523, de 27.08.57, facilitou grandemente a contratação e execução das operações de financiamento da produção agro-pastoril, criando títulos de crédito, para substituir o antigo contrato de abertura de crédito com garantia pignoratícia. Enquanto isso, uma série considerável de leis criava, a todo instante, novos títulos executivos extrajudiciais, como a L. 4.591, de 16.12.74 (encargos de condomínio); L. 6.458, de 01.11.77 (duplicata sem aceite); o DL. 911, de 01.10.69 (contrato de alienação fiduciária); o DL. 73, de 21.11.66 (prêmio do contrato de seguro); a L. 6.206, de 07.05.75 (crédito dos órgãos controladores do exercício profissional); a L. 6.822, de 22.09.80 (multas impostas pelo TCU); a L. 4.215, de 27.04.63 (honorários de advogado); a L. 4.728, de 14.07.65) (contratos de câmbio e de adiantamentos aos exportadores) etc. etc.
O mais significativo, porém, para o enfoque visado pelo presente estudo se passou na área do financiamento bancário aos diversos segmentos da atividade econômica. Praticamente todos eles foram contemplados com modernos títulos de crédito, concebidos não como documentos de mútuo, mas de abertura de crédito, ora com garantia real, ora com garantia fidejussória, ora sem qualquer garantia, a não ser a própria responsabilidade pessoal do creditado. Foi assim que surgiram as cédulas de crédito rural (DL. 167, de 14.02.67), as cédulas de crédito industrial (DL. 413, de 09.01.69), a cédula de crédito à exportação e a nota de crédito à exportação (L. 6.313, de 16.12.75) e a cédula de crédito comercial e a nota de crédito comercial (L. 6.840, de 03.11.80).”
O penhor agrícola, entretanto, vai situar sua maior esfera de abrangência ao compor a Cédula Rural Pignoratícia, hoje tratada pelos artigos 14 e seguintes, do Dec.-Lei 167/67, que dispõe sobre os títulos de crédito rural.
Ao lado da Cédula Rural Hipotecária, da Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária e da Nota de Crédito Rural, a Cédula Rural Pignoratícia, ou CRP, como é conhecida no meio rural, é título de ampla utilização na concessão do crédito rural, especialmente pelas instituições oficiais e sua emissão, atualmente, sob essa modalidade, dá-se de próprio punho pelo devedor ou representante com poderes especiais.
8. PENHORES ESPECIAIS – SOBRE COISAS MÓVEIS OU IMÓVEIS?
O artigo 6º da Lei 492/33, estabelece que podem ser objeto de penhor agrícola: I – colheitas pendentes ou em vias de formação, quer resultem de prévia cultura, quer de produção espontânea do solo; II – frutos armazenados, em ser, ou beneficiados e acondicionados para venda; III – madeira das matas, preparadas para o corte, ou em toras ou já serrada e lavrada; IV – lenha cortada ou carvão vegetal; e V – máquinas e instrumentos agrícolas.
Surge aqui uma questão controvertida. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO assevera que apenas as coisas móveis ou mobilizáveis são suscetíveis de penhor e que nessa condição estão as colheitas pendentes ou em via de formação, os semoventes, máquinas e implementos agrícolas.
Mais adiante, porém, ao estudar o penhor rural, afiniza-se com BEVILÁQUA, quando admite ter aquele razão em afirmar que o penhor rural possui natureza anômala, tanto pela ausência de deslocamento físico da coisa, das mãos do devedor para as mãos do credor, quanto pela natureza imobiliária dos frutos pendentes, culturas, animais e máquinas empregadas na lavoura.
SÍLVIO RODRIGUES, confere igual interpretação, afirmando tratarem-se as culturas e animais de bens imóveis por acessão física ou intelectual (CC, art. 43, II e III), o que alteraria o conceito tradicional do penhor, a ponto de ser nominado por alguns autores de hipoteca mobiliária ou hipoteca móvel.
Escudando essa teoria, transcreve a lição de CLÓVIS BEVILÁQUA: “O penhor agrícola é uma forma anormal de penhor, que se aproxima da hipoteca sob duas relações: 1a.) Não desloca a coisa gravada das mãos do devedor. Verdade é que o devedor a retém pela cláusula constituti (art. 769), e se considera depositário; mas o fato é que os objetos empenhados continuam em poder do devedor, que os utiliza, como se não houvera o vínculo. 2a.) Recai sobre imóveis, pois que o são os frutos pendentes, as árvores, as máquinas e os animais empregados no serviço de um estabelecimento agrícola (art. 43). Outros objetos, como os frutos armazenados e a lenha cortada são móveis; porém os que primeiro foram mencionados são bens de raiz. Na Suíça, denomina-se de hipoteca móvel”.
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, a princípio, parece endossar esse entendimento, dizendo que “traço distintivo do penhor é sua incidência em coisa móvel, singular ou coletiva, corpórea ou incorpórea, de existência atual ou futura”, concluindo que, em regra geral, só a coisa móvel pode ser empenhada.
Mas quando aprofunda-se na análise dos penhores especiais (onde situam-se o penhor agrícola, o penhor pecuário e o penhor industrial), afirma que as teses supracitadas estariam superadas, pois, o que pretender-se-ia com os penhores especiais seria justamente conferir mobilidade ao crédito, afastando as normas clássicas que, a rigor, frustrariam esse objetivo.
Entendemos assistir razão a CAIO MÁRIO. Com efeito, não recai o gravame real, quando instituído, sobre a propriedade imóvel, mas sim sobre os bens móveis que nela se encontram ou que serão produzidos, quando tratar-se de safra.
E mesmo que tais bens sejam considerados imóveis por destinação, só conservam essa qualidade enquanto ligados à propriedade em que aderem, posto que, acaso dela afastados, readquirem sua natureza móvel.
ARNOLD WALD lança interessantes considerações acerca do direito das coisas, ao dizer que, “sendo o ramo do direito que regula as relações entre o indivíduo e os bens sobre os quais exerce o seu poder, o direito das coisas reflete a vida política, social e econômica do tipo de sociedade em que impera. Tem assim características próprias em cada legislação e nele a tendência conservadora se mantém com maior vigor do que em outros ramos do direito civil.”
Modernamente, a nosso ver, torna-se difícil falar em bens imóveis por acessão ou destinação intelectual quando objeto de penhor agrícola, notadamente quanto aos equipamentos e maquinários agrícolas, que são remanejados constantemente entre as propriedades rurais, sendo raro aquele utilizado com exclusividade em uma só delas.
Já os frutos, móveis por natureza, só poderiam, em tese, conservar a natureza de bens imóveis por destinação enquanto ligados à propriedade imóvel onde se originaram. Basta removê-los daí para que adquiram mobilidade e desapareça essa ficção jurídica que lhes alterou temporariamente a natureza jurídica.
O objetivo claro do regramento incidente sobre o penhor rural, impondo a inscrição no Registro de Imóveis, foi o de conferir publicidade ao ato, além daquela conferida pelo registro do título no Cartório de Títulos e Documentos, para melhor prevenir o direito do credor, que na hipótese não detém a coisa empenhada, já que não seria coerente esperar que ocorresse a tradição do bem, quando o emprego do mesmo na atividade agrícola é condição necessária à obtenção do resultado, que é a produção, com a qual o devedor anela saldar sua dívida. Em se retirando os equipamentos da linha produtiva, transferindo sua posse física ao credor, que resultados poder-se-ia esperar, quando da colheita da safra?
Assim, quer nos parecer que a ausência de tradição e a necessária inscrição do título instituidor do penhor no Registro de Imóveis não desnaturam a condição de móveis dos bens empenhados. E ao credor pignoratício, sempre que se falar em desvio do bem, restará reivindicar um bem que voltou a sua condição jurídica natural, de móvel, exercitando o direito de seqüela, que lhe permite buscar a coisa em poder de quem ela se encontre.
Só as medidas possessórias que lhe são asseguradas poderiam versar, eventualmente, sobre bens imóveis por destinação ou acessão, acaso ameaçada a posse enquanto vinculados os bens à propriedade imóvel.
Vale dizer que um trator, bem móvel por excelência, com características automotoras, enquanto nos limites territoriais da propriedade rural é imóvel. Se posto em marcha, ao ganhar o leito da estrada vicinal que o situe fora da propriedade, torna-se móvel.
Se o devedor, para tentar frustar a excussão, transferir o trator da sua para a propriedade vizinha, visando ocultá-lo, converte-o ato contínuo em bem móvel.
Essa suscetibilidade da natureza jurídica do bem, em função da mera localização geográfica em relação à propriedade imóvel pode gerar uma desconfortável inconstância de definição para o intérprete da norma.
Por isso preferimos visualizar o bem rural apenhado na sua real situação de bem móvel, a despeito do que dispõe o artigo 43 do Código Civil, mais porque pouca utilidade prática decorre dessa conceituação, já que para o presente estudo, acerca do penhor agrícola, faz-se ponto pacífico que tais bens podem ser objeto de penhor.
E no que tange aos frutos, pendentes ou futuros, tais somente poderão servir de respaldo e garantia quando adquirirem a condição final, de mobilidade. Não se concebe que o credor pignoratício promova a retirada da safra pendente antes de amadurecidos os frutos e aptos à colheita, embora possa, no momento desta, providenciar em caráter preventivo a sua remoção para evitar desvios.
Vale aqui observar outra peculiaridade da Lei 492/37 (art. 4.º), ao dispensar a exigência de que o credor hipotecário preste anuência para a constituição do penhor agrícola estando gravado o imóvel com hipoteca. O artigo 783 do Código Civil impunha tal subordinação, cominando nulidade à sua inobservância.
O sentido teleológico desse dispositivo legal sugere a perfeita distinção entre os bens móveis produzidos na propriedade e o próprio imóvel rural, que não se confundem, nem se inter-relacionam para efeito de constituição e delimitação da amplitude das garantias.
Isto porque, segundo bem observa WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ao credor hipotecário nenhum prejuízo restará, já que o penhor rural não restringe a extensão da hipoteca, nem afeta seu direito de prelação.
Logo, mesmo que se considere o penhor rural um instituto anômalo, com nuances de garantia incidente sobre bens reputados imóveis por destinação intelectual, certo é que somente afetará bens acessórios e nunca a propriedade imóvel em si mesmo considerada.
SAN TIAGO DANTAS, afirma que o penhor rural é uma figura intermediária entre o penhor e a hipoteca. Em suas ponderações, observa haver um desdobramento da posse. A tradição ocorre, porém de forma ficta. O credor passa a ter a posse da coisa, na condição de possuidor indireto em relação ao proprietário da coisa, o qual assume a posição de possuidor direto ante o credor pignoratício.
Assim, deixa de ter a posição predominante de proprietário para assumir a de simples depositário, sujeito a restituí-la e a responder pelos riscos da coisa.
Nem se perca de vista que a mobilização dos bens dados em penhor, não sujeita seu instituidor à outorga uxória, ao passo que nos direitos reais sobre imóveis, sua perfectibilização se dá vinculada a tal condição. O credor pignoratício, por sua vez, passa a ter a posse indireta do bem, enquanto na hipoteca, em especial, o credor hipotecário não detém qualquer espécie de posse.
Em síntese, a prefalada natureza imóvel dos bens objeto do penhor rural é, a nosso ver, uma simples ficção jurídica. Os bens empenhados, mesmo em se tratando de frutos em formação ou de lavoura a ser ainda implantada, somente são considerados imóveis por uma ficção legal, enquanto estiverem vinculados com o imóvel onde se encontram por destinação. Mas como tal não afetam a estrutura jurídica da figura do penhor, nem o desnaturam, pois a mobilidade continua a ser uma condição inerente a tais bens.
9. DA PRISÃO DO DEVEDOR PIGNORATÍCIO COMO DEPOSITÁRIO INFIEL – POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
O estudo acerca da natureza dos bens empenhados, permite indagar se, com o descumprimento da obrigação de entregar a coisa, por quem a detenha gravada do ônus real pignoratício rural, fica o seu detentor sujeito à pena de prisão.
Vejamos o que dizem os artigos 17 e 18 do Dec.-lei 167/67:
“Art. 17. Os bens apenhados continuam na posse imediata do emitente ou do terceiro prestante da garantia real, que responde por sua guarda e conservação como fiel depositário, seja pessoa física ou jurídica. Cuidando-se do penhor constituído por terceiro, o emitente da cédula responderá solidariamente com o empenhador pela guarda e conservação dos bens apenhados”.
“Art. 18. Antes da liquidação da cédula, não poderão os bens apenhados ser removidos das propriedades nela mencionadas, sob qualquer pretexto e para onde quer que seja, sem prévio consentimento escrito do credor”.
O artigo 1.287, visivelmente mal situado no Código, dentro da seção que trata do depósito necessário, estabelece que, “seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos”.
Ainda a Lei 492/37 – Art. 3º.: “Pode ajustar-se o penhor rural em garantia de obrigações de terceiro, ficando as coisas ou animais em poder do proprietário e sob sua responsabilidade, não lhe sendo lícito, como depositário, dispor das mesmas, senão com o consentimento escrito do credor.”
A CF/88, ao tratar dos direitos e garantias individuais, assim gizou: – “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA não aborda a questão, ao tratar do penhor rural, limitando-se a asseverar que, em se perdendo a coisa por culpa do devedor, responde este na forma do direito comum.
Quando analisa a alienação fiduciária, no entanto, manifesta-se pela possibilidade da prisão do depositário infiel, como instrumento aplicável à espécie.
Quer nos parecer, porém, que não estende tal entendimento ao penhor rural, pois em momento algum refere-se ao devedor como depositário da coisa.
WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO é mais específico ao abordar o assunto, entendendo que “se o devedor não paga, nem deposita em juízo as coisas empenhadas, poderão ser elas seqüestradas por ordem do juiz, que determinará igualmente a prisão do responsável”
Mas, a questão acerca da prisão civil do devedor, em obrigação de entregar coisa gravada de ônus pignoratício assumiu contornos polêmicos perante o Poder Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça, por diversas de suas Turmas, porém sem unanimidade, vinha entendendo inadmissível a prisão civil do depositário infiel envolvendo bens fungíveis e destinados à comercialização, a exemplo do julgado proferido no REsp 31.490, 4ª T, DJU de 13.09.93, ou ainda no sentido de que nos contratos de depósito irregular aplicam-se as regras do mútuo, não cabendo ação de depósito com pedido de prisão do devedor (REsp 11.108, 3ª T, DJU de 04.11.91), entendimento este não compartilhado por sua 5ª Turma, que admite a prisão civil (HC 2.740, DJU de 28.06.93).
Acerca do assunto, IZAIAS BATISTA DE ARAÚJO, em artigo que analisa a “Legalidade da Prisão no Caso do Desvio de Bens”, gizou: “É sensato concluir-se, portanto, que, no que concerne ao penhor constituído nos títulos de crédito rural, comercial e industrial, o legislador equiparou a garantia pignoratícia constituída ao instituto do depósito. Segundo MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, o legislador pode, como acontece no caso, considerar ou equiparar um instituto qualquer ao depósito para a finalidade de lhe estender as sanções deste e a própria prisão civil (“Alienação Fiduciária em Garantia”, REVISTA JURÍDICA nº 200, págs. 52/60, Porto Alegre).”
Vejamos, a propósito, o que decidiu a segunda Turma do STF, ao equiparar o devedor fiduciário ao depositário infiel:
PRISÃO CIVIL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – Possibilidade – Discussão da divergência entre o PREÇO cobrado e a DÍVIDA – Incabimento em sede de HABEAS CORPUS – DECRETO-LEI 911/69 – Habeas corpus. Decreto-Lei 911/69. Prisão civil. Depositário infiel. A equiparação entre devedor fiduciário e o depositário infiel não afronta a Carta Magna. O Decreto-lei nº 911/69 está em conformidade com a Constituição. A divergência entre o preço cobrado e a dívida não pode ser resolvida na via estreita do habeas corpus. Ordem indeferida. (STF – Habeas Corpus n. 74.831-7 – Minas Gerais – Ac. 2a. T. – maioria – Rel: Min. Nelson Jobim – j. em 27.05.97 – Fonte: DJU I, 22.08.97, p. 38762 – “In Bonijuris, 31640)”.
Mas é no próprio SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL que vamos encontrar a mais acirrada controvérsia acerca do assunto. As posições adotadas pelos Ministros do STF são bastante conflitantes, muito embora restrinjam-se ao campo do entendimento pessoal, haja vista que, em nível de plenário, o STF firmou precedente que vem sendo respeitado quando da solução de conflitos postos sob o mesmo fundamento.
O principal argumento contra a possibilidade da prisão civil, robustamente defendido pelo Ministro Marco Aurélio, repousa na previsão do § 2º, do artigo 5o, da Constituição Federal, que consubstanciaria uma abertura, senão previsão expressa do legislador constituinte, autorizando o Legislativo, a quem a CF outorgou a necessária competência, a ampliar o rol das garantias constitucionais originalmente asseguradas, através de tratados, pactos e convenções internacionais.
Com efeito, assevera o dispositivo constitucional: “§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Para JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR, “a vigência de um tratado no âmbito interno de um Estado depende, em geral, de um mecanismo constitucional de recepção. No caso brasileiro, como se verá adiante, cabe ao Executivo celebrar tratados, os quais ainda ficam na dependência de serem aprovados pelo Congresso Nacional.”
Assim, celebrado o tratado pelo Presidente da República, suas disposições ainda dependem de decisão definitiva do Congresso Nacional. Essa aprovação congressual, momento em que o tratado é recepcionado pelo ordenamento jurídico pátrio, ocorre via decreto legislativo, instrumento normativo pelo qual o Congresso Nacional delibera sobre as matérias de sua competência exclusiva (art. 49 da CRFB/88).
Como o Brasil recepcionou, em sua legislação infraconstitucional o Pacto de San José da Costa Rica, o qual estabelece que a prisão civil somente se dará pelo inadimplemento da obrigação de prestação alimentícia, os demais casos estariam afastados, inclusive a hipótese de prisão do depositário infiel, em virtude da ampliação, por Pacto Internacional, da garantia individual da liberdade.
Vejamos o que determina referido Pacto: Artigo 7.º. Ninguém deve ser detido por dívida. (…) 7 – Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
A recepção desse mandamento deu-se através do Decreto Legislativo n.º 226, de 12.12.91, que incorporou em nosso ordenamento constitucional, texto do pacto internacional sobre direitos civis e políticos, que em seu art. 11, veda taxativamente a prisão civil por descumprimento de obrigação contratual.
Dois anos depois, no entanto, a Lei n.º 8.929/94, no mesmo patamar hierárquico da legislação obstativa da prisão por dívida, estabeleceu:
Art. 7º. Podem ser objeto de penhor cedular, nas condições desta Lei, os bens suscetíveis de penhor rural e de penhor mercantil, bem como os bens suscetíveis de penhor cedular.
§ 1o. Salvo se se tratar de títulos de crédito, os bens apenhados continuam na posse imediata do emitente ou do terceiro prestador da garantia, que responde por sua guarda e conservação como fiel depositário.
Assim, ainda que se pretendesse tomar o Pacto de San José da Costa Rica com o efeito de revogar as demais leis ordinárias que lhe eram anteriores, situadas no mesmo patamar, inegável que lei superveniente voltou a dispor sobre a matéria diferentemente, restabelecendo a premissa que ditava a responsabilidade de guarda da coisa empenhada na condição de depositário fiel.
Mas a despeito das disposições da Lei 8.929/94, o preceito que dita a possibilidade de prisão do depositário infiel é de ordem constitucional e não ordinária. Logo, a recepção de tratado por nosso ordenamento jurídico não importaria em alteração da previsão constitucional, posto que o tratado possui eficácia de norma infraconstitucional geral. E se entendido como tal, igualmente não se prestaria a revogar as demais disposições legais atinentes à prisão civil, uma vez que traçadas em normas infraconstitucionais especiais. A controvérsia torna-se acirrada neste campo, em nível jurisprudencial.
O Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo decidiu:
PRISÃO CIVIL – Depositário infiel – Penhor rural – Admissibilidade da custódia, ainda que se trate de bens fungíveis e consumíveis – Interpretação dos arts. 904, par. ún., do CPC e 1.280 do CC.
Conforme interpretação do art. 1.280 do CC é admissível o penhor rural que tenha como objeto bens fungíveis e consumíveis; porém, se esses bens não forem encontrados no momento da restituição nem no seu equivalente específico, caberá ao depositário a devolução do equivalente em dinheiro, sob pena de prisão civil, nos termos do art. 904, par. ún., do CPC. (1o TACivSP – Ap. 605.100-4, 5a Câm. Extraordinária A – j. 03.12.1997, rel. juiz Thiago de Siqueira, in RT, 752/203).
No mesmo sentido o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
PRISÃO CIVIL – Admissibilidade somente quando se tratar de inadimplemento de obrigação alimentícia e depositário infiel – Inteligência do art.5o, LXVII, da CF.
Segundo a ordem jurídica estabelecida pela Carta Magna de 1988, somente é admissível prisão civil por dívida nas hipóteses de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e de depositário infiel (CF, art. 5o, LXVII). (STJ – RHC 6.163/SP – 6a T. – j. 10.03.1997 – rel. Min. Vicente Leal – DJU 07.04.1997, in RT, 743/203).
JOÃO ABÍLIO DE CARVALHO ROSA doutrina sobre a aplicabilidade do Pacto de San José da Costa Rica à hipótese de prisão civil na alienação fiduciária: “O Governo Brasileiro assinou, ratificou e mandou cumprir a ‘Convenção Americana de Direitos Humanos’, também conhecida como ‘Pacto de San José da Costa Rica’ em 1992. Não apôs reservada aos seus termos. Conseqüentemente, o Governo Brasileiro está obrigado a cumpri-la.
A Convenção Americana de Direitos Humanos diz que ninguém pode ser preso por dívida, salvo no caso de descumprimento a obrigação alimentar. Não há, portanto, a possibilidade de prisão por dívida fora dessa hipótese. A Convenção também determina que o Estado aceitante dos seus termos deve tomar as providências necessárias ao seu cumprimento, devendo adaptar a sua legislação interna aos direitos e garantias nela assegurados e protegidos.”
Essa postura fica bem materializada no acórdão a seguir transcrito, tendo como Relator o Ministro MARCO AURÉLIO:
“PRISÃO CIVIL – PENHOR RURAL. A regra constitucional é no sentido de não haver prisão civil por dívida. As exceções, compreendidas em preceito estrito e exaustivo, correm à conta do inadimplemento voluntário infiel – inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal. Supremacia da realidade, da organicidade do Direito e glosa do aspecto formal, no que o legislador ordinário, no campo da ficção jurídica, emprestou a certos devedores inadimplentes a qualificação, de todo imprópria, de depositário infiel. PRISÃO CIVIL – DÍVIDAS – SUBSISTÊNCIA LEGAL. O fato de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, situado no mesmo patamar da legislação ordinária, resultou na derrogação desta no que extrapolava a hipótese de prisão civil por inadimplemento de prestação alimentícia.” (STF, HC nº 74-383-MG, jgto. 22.10.96).
Ocorre que esse posicionamento não foi seguido pelos demais Ministros, os quais, em sua maioria, não vislumbram no Decreto Legislativo 226/91 uma ampliação de garantias constitucionais, mais porque, na condição de norma infraconstitucional geral, não teria o condão de derrogar dispositivo constitucional que destaca expressamente a figura do depositário infiel como passível de coerção prisional pelo desvio do bem depositado.
É de observar-se algumas decisões mais recentes neste sentido, para realçar o entendimento majoritário que se firmou no STF:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – PRISÃO CIVIL – CONSTITUCIO-NALIDADE – Inaplicabilidade do Pacto de São José da Costa Rica – ART. 5º/CF, LXVII – Recurso extraordinário. Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil. 1. Esta Corte, por seu Plenário (HC 72131), firmou o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária, bem como de que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel.
Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF – Rec. Extraordinário n. 207.532-9 – São Paulo – Ac. 1a. T. – unân. – Rel. Min. Moreira Alves – j. em 02.12.97 – Fonte: DJU I, 06.03.98, p. 22 – In Bonijuris, 33584).
Idêntica a decisão proferida no Rec. Extraordinário n. 179.991-9 – Minas Gerais – Ac. 1a. T. do STF- unân. – Rel: Min. Moreira Alves – j. em 02.12.97 – Fonte: DJU I, 06.03.98, p. 18 – in Bonijuris, 33221.
E por evolução natural dessa tendência do Supremo Tribunal Federal, o próprio Ministro MARCO AURÉLIO acabou acolhendo a orientação majoritária do Plenário e passou a aplicá-la, nos julgamentos por órgão fracionado, obedecendo os precedentes, embora em julgamento no Plenário mantenha o voto contrário:
“PRISÃO CIVIL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – Possibilidade – Jurisprudência. Supremo Tribunal Federal. Observância. A unidade de fatos e a do Direito sugerem solução idêntica para as controvérsias. Tanto quanto possível, há de prevalecer a mesma solução, buscando-se, com isso, o prestígio, a respeitabilidade do Judiciário, mediante a melhor compreensão dos jurisdicionados. A óptica mais se impõe quando, em jogo tema constitucional, constata-se a existência de pronunciamento do Pleno do Guardião Maior da Carta Política da República – o Supremo Tribunal Federal. Nova discussão da matéria, a partir de convencimento pessoal, há de fazer-se em sede própria – a revelada pelo citado Plenário. Em questão crivo monocrático ou mesmo de órgão fracionário, como é a Turma, mister se faz a ressalva, homenageando-se o precedente. Prisão civil. Regra. Exceções. Alienação fiduciária em garantia. Viabilidade. Na dicção da ilustrada maioria dos integrantes do Supremo Tribunal Federal, em relação à qual guardo reservas, dentre as exceções à regra segundo à qual não haverá prisão civil por dívida está a decorrente de relação jurídica formalizada sob a nomenclatura alienação fiduciária em garantia (precedente: “habeas corpus” nº 72.131/RJ, Pleno, vencidos os Ministros Marco Aurélio – relator, Francisco Rezek, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, sendo designado redator para o acórdão o Ministro Moreira Alves). (STF – “Habeas Corpus” n. 72.183-4 – São Paulo – Ac. 2a. T. – unân. – Rel: Min. Marco Aurélio – j. em 23.02.96 – Fonte: DJU I, 22.11.96, p. 45687, In Bonijuris 30597).”
Resta indagar, apenas, para conclusão de nosso estudo, se o penhor agrícola, na ficção jurídica que confere ao credor pignoratício a posse indireta do bem que não lhe foi transmitido fisicamente pelo instituto da tradição, de vez que ausente nessa modalidade especial de direito real de garantia, figuraria dentre aqueles institutos jurídicos aptos a equiparar o devedor que desvie os bens ao depositário infiel.
Parece-nos que a resposta não comporta muitas controvérsias. Com efeito, o próprio ordenamento jurídico cuidou de predefinir a qualidade da detenção da coisa pelo proprietário que a grava com o ônus pignoratício. Oportuno, aqui, rememorar o disposto no artigo 17 do Decreto-lei 167/67, que estabelece que “os bens apenhados continuam na posse imediata do emitente, ou do terceiro prestante da garantia real, que responde por sua guarda e conservação como fiel depositário…”.
A jurisprudência do STF endossa este entendimento, senão vejamos:
HABEAS-CORPUS – PRISÃO CIVIL DE DEPOSITÁRIO INFIEL: AÇÃO DE DEPÓSITO – CÉDULA RURAL PIGNORÁTICIA: PENHOR AGRÍCOLA DE SAFRA FUTURA (ARTS. 17, 18 E 59 DO D.L. Nº 167/67, E ARTS. 902, § 1º, E 904, § ÚNICO, DO CPC) – 1. Contrato segundo o qual o produto da safra não poderia ser vendido ou alienado sem autorização do credor. Ação de depósito julgada procedente em primeira instância porque, conforme provas nos autos, o paciente colheu e vendeu o café em coco produzido, sem autorização do credor, não sendo, contudo, decretada a sua prisão civil como depositário infiel, por ter o penhor incidido sobre safra futura; sentença reformada parcialmente pelo Tribunal ‘a quo’, para decretar a prisão civil do paciente. 2. O depositário de bens penhorados, ainda que fungíveis, responde pela guarda e se sujeita a ação de depósito com implicação prisional; quando se trata de penhor sobre safra futura, é indispensável, para a procedência da ação de depósito, a comprovação de que a safra foi colhida. Precedentes. HC nº 73.131-RJ (prisão civil do devedor em alienação fiduciária). 3. A prisão civil do depositário infiel é conseqüência de ação de depósito julgada procedente; se, ao contrário, a ação é julgada improcedente, não se cogita da prisão civil. (..) Precedentes. (STF – HC 73.058–2 – SP – 2ª T. – Rel. Min. Maurício Corrêa – DJU 10.05.1996 Juris Síntese, CD ROM 16 – Verbete 5011297).
PENHOR RURAL – DESVIO DOS BENS APENHADOS – PRISÃO CIVIL – Não encontrados os bens objeto de penhor rural e depósito, somente há lugar para a decretação da prisão civil, após o trânsito em julgado de ação de depósito, que o tenha reconhecido como depositário infiel. (STJ – REsp 21.397-0 – ES – 4ª T. – Rel. Min. Dias Trindade – DJU 21.03.1994 – Juris Síntese – 306388).
Portanto, correto concluir-se que o depositário fiel de bens, por força de contrato de depósito ou relação obrigacional real que se lhe assemelhe ou equipare, responde pelo desvio da coisa sob sua guarda, sendo passível de sofrer a decretação de prisão civil, caso proceda ao desvio da coisa ou recuse-se a entregá-la quando exigida pelo Poder Judiciário em cumprimento à garantia prestada.
10. CONCLUSÃO
O penhor possui natureza jurídica de direito real de garantia incidente sobre bens de terceiro e, como tal, encontra-se expressamente catalogado no direito brasileiro. Incide sobre bens móveis e possui como elemento essencial a tradição da coisa, sem o que não se perfaz.
O penhor rural, que compreende o penhor agrícola e o penhor pecuário, é modalidade de penhor especial, previsto no Código Civil e em legislação especial, possuindo, igualmente, natureza jurídica de direito real de garantia.
O penhor agrícola distingue-se do penhor comum, em função de especiais disposições legais que permitem a sua instituição independentemente da tradição da coisa, podendo abranger, inclusive, coisas futuras ou em formação, as quais permanecem em poder do proprietário.
Os bens passíveis de penhor agrícola possuem natureza jurídica de bens móveis, podendo, em determinadas circunstâncias, serem considerados imóveis por destinação ou acessão, porém readquirem espontaneamente seu caráter de mobilidade tão logo encontrem-se desvinculados fisicamente da propriedade imóvel em que se encontram.
O proprietário da coisa empenhada, no penhor agrícola, embora mantenha a qualidade de detentor do domínio e exerça a posse direta, passa a ser considerado depositário fiel, respondendo nessa qualidade, em caso de perecimento, deterioração ou desvio da coisa empenhada.
O Supremo Tribunal Federal, por entendimento majoritário, firmou precedentes no sentido de admitir a prisão civil do devedor pignoratício, entendendo a maioria de seus Ministros que o Pacto de San José da Costa Rica, recepcionado pelo Decreto Legislativo 226/91, não possui, como norma infraconstitucional de caráter geral, o condão de afastar a previsão do artigo 5o, inciso LXVII da Carta Magna de 1988, nem de revogar as disposições da legislação ordinária especial.
O devedor em poder de quem encontram-se os bens apenhados, no penhor agrícola, é igualmente compreendido como depositário fiel e, como tal, também sujeita-se à penalidade prisional caso desvie os bens sob sua guarda e responsabilidade.
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