PERDÃO TÁCITO E REGIME DISCIPLINAR DOS SERVIDORES

Airton Rocha Nóbrega

I. INTRODUÇÃO

Opera-se o perdão tácito quando, verificando-se a ocorrência de uma falta disciplinar, não atua o empregador de forma imediata, deixando transcorrer tempo razoável entre o fato punível e o momento da aplicação da sanção que lhe é conseqüente.

Na esfera das relações de trabalho privadas, regidas pelo Estatuto Obreiro, a imediatidade da punição é exigência que se tem estabelecido como obrigatória na doutrina especializada, reiterando-se na jurisprudência ao longo do tempo decisões que informam que “A imediatidade, para proporcionar a rescisão do pacto laboral pela parte faltosa, haverá de ser obedecida, pena de advir o clássico perdão tácito pelo lesado” (Ac. TRT 3ª Reg. 4ª T (RO 07030/93), Rel. Juiz G. Andrade, DJ/MG 23/10/93, Jornal Trabalhista, Ano XI, nº 488, p. 55).

Retardar o empregador a aplicação da penalidade ao trabalhador faltoso implica, portanto, em ofensa ao princípio da imediatidade, acarretando, assim, o reconhecimento do perdão tácito. Se, verbi gratia, a conduta for punível com a aplicação de eventual justa causa, estará esta, em conseqüência, descaracterizada pela demora da empresa em punir o ato verificado.

Em se tratando, desse modo, de situação submetida ao disciplinamento contido na CLT, exercitar o empregador o seu poder disciplinar a destempo significa perder o direito de aplicar ao empregado a sanção merecida em razão de um determinado ato irregular.

Não significa tal entendimento, que se esteja questionando ou mesmo cassando o poder disciplinar de que se acha investido o empregador e que lhe confere a prerrogativa de punir o seu empregado quando verificar o cometimento de falta disciplinar no âmbito da empresa e em decorrência do exercício de suas atividades profissionais.

É certo, porém, que esse poder disciplinar deve ser exercido de modo imediato e não, como se pode querer acreditar, a qualquer instante, ainda que um grande período de tempo haja transcorrido entre o fato e a punição.

E no âmbito das relações de trabalho mantidas pelo Poder Público com seus servidores, submetidos ao regime estatutário, torna-se juridicamente possível a invocação de eventual demora para o efeito de liberar o servidor de punição que lhe seria aplicável? Esta a questão que se visa abordar no presente trabalho, oportunizando considerações acerca do tema, de modo a orientar pronunciamentos e decisões na esfera da Administração Pública.

II. PECULIARIDADES DO PODER DISCIPLINAR

O poder disciplinar é ínsito e resultante do poder de mando do empregador, estando presente tanto na iniciativa privada quanto na esfera pública. Em relação à administração pública constitui ele concessão que é feita ao administrador para que ele possa exercer a contento as suas atribuições. Representa, portanto, instrumento de realização das atividades administrativas de forma eficaz.

O poder disciplinar de que se acha investido o administrador possui certo conteúdo de discricionarismo, não estando vinculado ao princípio da pena específica, que corresponde à necessidade de prévia definição em lei da infração funcional e da sanção cabível. Significa dizer que possui o administrador uma relativa liberdade para, tipificada uma determinada conduta, especificar, dentre as penas previstas, aquela aplicável ao caso examinado, não estando, para tanto, submetido a regras procedimentais rígidas.

De modo simples e objetivo, pode-se definir o poder disciplinar como sendo a faculdade que é conferida ao administrador para punir internamente as infrações funcionais de seus servidores, resultantes da prática de atos irregulares.

III. PERDÃO TÁCITO E DEVER DE APURAR

No âmbito do regime disciplinar dos servidores públicos civis da União, determina-se que, verificada a ocorrência do fato anormal, deve instaurar-se, de imediato, o procedimento apuratório correspondente (RJU: art. 143).

Deverá, assim, a autoridade que tiver conhecimento de irregularidades, promover a sua apuração imediata, valendo-se, para esse efeito, do procedimento adequado.

Promover a apuração “imediata” importa em ter-se que, conhecido o fato danoso, providenciar-se a sua apuração de modo rápido, instantâneo, de plano, sem mais demoras. Ou seja, sendo o fato conhecido e constituindo ele irregularidade, por apresentar-se contrário aos deveres e proibições em lei estatuídos, há de adotar-se, de logo, no menor tempo possível, as providências tendentes à sua apuração.

Não há dúvida quanto ao fato de que o desejado pela norma em comento é que entre o conhecimento do evento irregular, o início da apuração e a aplicação da pena, não transcorra um tempo excessivamente longo. A imediatidade deverá estar representada pela instauração do correspondente procedimento no menor tempo possível.

Não o fazendo, estará a autoridade administrativa afrontando o princípio da imediatidade e oportunizando o reconhecimento do perdão tácito? A exemplo do que ocorre na esfera privada, poderá eventual punição aplicada ao servidor ser negada em face disso?

Ora, como bem assevera CELSO RIBEIRO BASTOS (in, “Curso de Direito Administrativo” – São Paulo: Saraiva, 1994 – p. 45), se a atividade administrativa é “… uma atividade de zelo, ou de cura pelos interesses públicos, tais como definidos em lei, não cabe evidentemente à Administração sobre eles dispor”.

Refere-se o citado autor, ao conteúdo do princípio da indisponibilidade do interesse público, pondo em relevo o fato de que “os atos administrativos são atos de zelo, de cura, de implementação, de execução, mas nunca atos propriamente de decisão e deliberação sobre as finalidades públicas em si mesmas que hão de estar pré-traçadas em diplomas legais” (op. cit., p. 46).

Não se há, em razão disso, de admitir como compatível com o regime de Direito Público a figura do perdão tácito, inaplicável no âmbito do regime disciplinar do Servidores Públicos. Verificada a irregularidade e sendo ela imputável a integrante dos quadros da Administração Pública impõe-se a respectiva apuração por intermédio do procedimento adequado. Deixar de atuar o administrador pode significar o cometimento do crime de condescendência criminosa, previsto no art. 320 do Código Penal Brasileiro.

Mas não se pode dizer que o transcurso do tempo, sem a prática de atos necessários à punição do servidor, após o conhecimento do fato, não tenha qualquer tipo de conseqüência. É que o próprio Estatuto (Lei nº 8.112/90) estabelece prazos que, se transcorridos, afetarão a ação disciplinar.

O art. 142, da Lei nº 8.112/90, referindo-se à prescrição da ação disciplinar estabelece que prescreverá ela em cinco (5) anos – quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão -; em dois (2) anos – quanto à suspensão – e, em cento e oitenta (180) dias – quanto à advertência -.

IV. CONCLUSÃO

Conclusão que se pode extrair, de todo o exposto, é que deixando a autoridade administrativa transcorrer prazo razoável entre o conhecimento do fato e a conseqüente punição do servidor, não se terá como admitir a ocorrência de perdão tácito, de modo a liberar o servidor público estatutário da sanção que lhe seria então aplicável.

O perdão tácito, embasado no princípio da imediatidade, é aplicável apenas no âmbito das relações privadas, regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho, não se compatibilizando com o regime de Direito Público, onde há de prevalecer a orientação que dimana da indisponibilidade do interesse público.

Deverá estar atenta a autoridade administrativa, no entanto, para os prazos prescricionais previstos na Lei nº 8.112/90 que, se ocorrentes, afetarão a ação disciplinar, impedindo o exercício do direito de punir, gerando, em conseqüência, a necessidade de responsabilização de quem lhe deu causa, com a possibilidade até mesmo de enquadramento da conduta no tipo penal da condescendência criminosa (CPB: art. 320).

Airton Rocha Nóbrega
Advogado e professor da ESAD, EBAP/FGV e AEUDF – Brasília

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento