Permitir pesquisas com células-tronco embrionárias é permitir a vida

por Márcia Regina Machado Melaré

Apesar de respeitarmos a posição de quem pensa o contrário, não há qualquer justificativa lógica para alterar nossa convicção de que a pesquisa com células-tronco embrionárias deve ser autorizada pelo Poder Legislativo. Há de se convir que, caso não sejam utilizadas para pesquisas, as células-tronco embrionárias serão descartadas como lixo biológico, levando com elas a esperança de cura de milhões de pessoas em todo mundo, que lutam desesperadamente para vencer diversas doenças letais.

A discussão, porém, é bastante complexa. Seu aspecto pragmático se perde em dilemas de ordem moral, ética e religiosa, cujos contornos podem ser assim alinhados: teriam os embriões congelados, nos quais são encontradas as células-tronco embrionárias, potencialidade de vida que não se pode destruir? Seriam eles futuros nascituros, protegidos pelas leis civis? Ou, simplesmente, tais embriões congelados se caracterizariam como meros tecidos informes?

São necessários alguns esclarecimentos sobre o assunto. Células-tronco, também denominadas células precursoras, tal como o tronco de uma árvore, se ramificam e se transformam em células especializadas, que dão origem a tecidos e órgãos, como a pele, o sistema nervoso, os músculos e os ossos.

No gênero células-tronco, dois tipos de células se distinguem: as células-tronco embrionárias, encontradas nos óvulos fertilizados, cultivados “in vitro” e não implantados em útero materno, e as células-tronco adultas, encontradas no organismo desenvolvido, também denominadas pós-natal, existentes nos recém-nascidos e no cordão umbilical.

Pesquisas científicas têm sido feitas em células-tronco adultas, extraídas da medula óssea, cordão umbilical ou de outros tecidos. Contudo, por não terem essas células capacidade de curar a doença que deu causa à lesão, as pesquisas com células-tronco embrionárias apresentam-se com expectativa de solução de doenças degenerativas, tendo em vista sua imensa potencialidade terapêutica.

As células-tronco embrionárias são as únicas que têm capacidade de se transformar em qualquer um dos 216 tecidos humanos. E somente são encontradas na fase em que, após a fertilização do óvulo “in vitro”, em aproximadamente 5 dias, um agrupamento de 64 células, denominado de blastocisto, se forma.

Se este blastocisto for implantando no útero humano e continuar se desenvolvendo, provavelmente se transformará em um ser. Mas, caso não seja implantado no útero, esse amontoado de células terá como destino certo o lixo biológico das clínicas médicas. Esta é a verdade inexorável.

Somente a continuidade dos estudos das células-tronco embrionárias, colhidas na fase de blastocisto (descartados para implantação no útero), sela a esperança de cura de doenças como Parkinson, Alzheimer, lesões da medula espinhal, AVCs — acidentes vasculares cerebrais — dentre outras. Isso porque essas células são as únicas capazes de se diferenciar em todos os tecidos humanos, de acordo com pesquisas desenvolvidas até o momento.

Alguns países já autorizam expressamente a manipulação das células-tronco embrionárias para fins científicos. São eles: Reino Unido, Suécia, Suíça, Espanha, Holanda, Grécia e Finlândia. Já os Estados Unidos, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Portugal não a admitem por motivos diversos, inclusive questões de fundo religioso.

No Brasil, a Lei 8.974/95 e a Instrução Normativa nº 08, de 1997, proíbem as atividades de manipulação genética das células embrionárias. Contudo, discute-se no Congresso Nacional a alteração dessa legislação, através do projeto de Lei da Biossegurança.

O Senado, alterando projeto vindo da Câmara dos Deputados, propôs a permissão da pesquisa em embriões congelados, descartados em clínicas de fertilidade. Esta é a proposta que deve ser aceita. Não há “violação à vida”, “violação ao feto”, em tal hipótese, já que inexistente vida ou feto enquanto o amontoado de células se encontra na fase de blastocisto.

Os embriões cultivados “in vitro”, em clínicas de fertilização, são meros agrupamentos de células que, se não implantados no útero da mulher, nada mais serão do que refugo biológico destinado ao lixo. Esses embriões, menores do que a ponta de uma agulha, não se transformarão em seres humanos em auto-multiplicação extra-corpórea.

Não têm eles qualquer expectativa de desenvolvimento autônomo, qualquer atividade sensorial ou cerebrina, e não possuem órgãos, coração, fígado, pâncreas. Constituem um punhado de células informes. Embriões descartados para implantação no útero, por má-qualidade, má-formação ou qualquer outro motivo, não gerarão vida alguma. Serão irremediavelmente destruídos. Para esse simples material biológico não há qualquer proteção jurídica, constitucional ou civil.

Ora, não é justo e sensato para os que têm vida, e estão adoentados ou incapacitados, que lhes seja ceifada a esperança de cura, a partir do desenvolvimento científico das pesquisas genéticas. Este direito à vida tem proteção constitucional (art. 5º “caput”, CF). A vida real ficará marginalizada pela inexistente potencialidade de vida dos blastocistos não implantados no ventre materno.

Considerar o blastocisto um ser vivo que não deve ser violado é uma questão que deve ser avaliada sob o prisma dogmático. Até ai tudo bem. Que se respeitem convicções religiosas e morais para o não uso de técnicas desenvolvidas pela ciência.

Contudo, impedir que outros, de ideários diferentes, sejam obrigados a conviver com doenças, cuja cura conta com efetivas potencialidades, levando-se em consideração os avanços científicos, é ferir os princípios democráticos da harmônica convivência social. Ressalto, por fim, que esta opinião envolve a premissa da responsabilidade dos profissionais quanto ao uso e a não utilização comercial desses embriões.

Márcia Regina Machado Melaré é vice-presidente da OAB-SP, integrante da Advocacia Approbato Machado e conferencista.

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