Perseguições jurídicas, falsos litígios e o “processar por processar”

Autora: Maria Luiza Gorga (*)

 

No atual contexto de extrema judicialização das relações pessoais e governamentais, é preciso que as empresas brasileiras estejam atualizadas no tocante às formas de (má) utilização do Poder Judiciário que podem atingi-las, bem como que possuam o necessário suporte para contornar e controlar eventuais ocorrências negativas. Mais do que isso, tendo em vista a quase simbiose sem precedentes entre o Poder Judiciário e o quarto poder — a mídia —, tal estrutura de suporte é ainda mais fundamental, já que não se pode esquecer que uma derrota midiática é muitas vezes mais prejudicial à empresa do que a vitória no tribunal.

Dentre as formas potencialmente lesivas de utilização do Judiciário temos a figura do lawfare — ou guerra jurídica —, termo criado na década de 1970 para refletir a utilização dos institutos jurídicos para a consecução de objetivos de política externa ou que tenham relação com a segurança nacional. Recentemente, no Brasil, o termo sofreu uma especificação e passou a ser aplicado para significar a utilização de instrumentos jurídicos para fins de perseguição e destruição da imagem pública de indivíduos, bem como constrangimento e retaliação, sobretudo no contexto da operação “lava jato” e seus desdobramentos, sendo um dos pilares da lawfare neste novo viés a instauração de procedimentos judiciais sem uma sustentação material verdadeira, isto é, o “processar por processar”, bem como a utilização de boatos e rumores, captados e circulados pela mídia, para então alimentar procedimentos policiais ou judiciais.

Vale notar que, apesar de sua conotação atual denotar a utilização da tática por agentes públicos contra indivíduos privados, o conceito não se limita a esses atores, podendo, sem quaisquer dúvidas, ser utilizado entre indivíduos e entre empresas, ou qualquer combinação desses atores. Há, inclusive, famoso caso de lawfare nos anais jurídicos brasileiros, que já perdura há uma década, envolvendo empresa familiar de construção civil e um indivíduo extremamente determinado.

Por sua vez, o instituto de origem norte-americana do sham litigation — podendo ser traduzido como um falso litígio, o abuso do direito constitucional de ação com o fim de prejudicar a concorrência — seria a figura aplicável aos embates entre corporações concorrentes, já sendo conhecida do Cade, que, em 2010, aplicou a primeira multa em caso que tramitava desde 2005 e utilizava-se do instituto.

Assim, trata-se de sham litigation a conduta daquele que, por meio de procedimentos administrativos ou judiciais, os quais sabidamente não possuem qualquer chance de sucesso, busca atingir negativamente a imagem, a reputação ou a saúde financeira de um concorrente, com fins anticompetitivos. A finalidade da conduta é atingir o concorrente pela mera existência do procedimento, não fazendo diferença o resultado final do litígio, que, no mais das vezes, é favorável ao alvo do ataque, posto que estão ausentes quaisquer alegações verossímeis ou provas dos fatos.

Em ambos os casos, percebe-se que há uma utilização indevida da facilidade de acesso à Justiça, situação existente no país, deturpando essa ferramenta de cidadania para servir como arma em campanhas privadas ou corporativas de destruição de desafetos, concorrentes diretos ou indiretos. É o abuso ao direito de petição levado às mais altas consequências, podendo gerar prejuízos altíssimos àqueles atingidos caso não sejam tomados os passos devidos.

E não se imagine que se trata de situação insignificante, já tendo havido casos não apenas de disputas envolvendo grandes empresas, como também de indivíduos que, seja por uma sensação de necessidade de vingança ou pela busca de valores monetários, travam verdadeira cruzada por anos a fio contra empresas e seus proprietários.

Ora, já que não se pode limitar os direitos constitucionais de acesso ao Poder Judiciário e petição, é imperativo que as empresas e seus indivíduos mais expostos — fundadores, sócios, administradores e diretores — cerquem-se de ferramentas que auxiliam no controle e na mitigação dos danos de tais ataques, como, por exemplo, fortes códigos de conduta e departamentos de compliance, assessoria de imprensa e gestão de crises bem entrosada com a cultura da empresa, e uma equipe jurídica multidisciplinar bem preparada.

Todos os itens são necessários e interdependentes, posto que, ao passo em que é relativamente rápido e fácil iniciar um processo judicial no país, chegar a seu fim é um caminho longo, custoso e, por vezes, tortuoso — e ainda mais quando há que se defender de acusações infundadas e fantasiosas. Junte-se a isso a excepcional “fome” da mídia a casos judiciais que fujam da rotina ou envolvam personagens de relevo, e se tem, portanto, receita para uma crise de imagem que, se mal encaminhada, pode negar ou mesmo jogar contra os esforços jurídicos, acabando por prejudicar enormemente as pessoas físicas e jurídicas envolvidas.

 

 

 

Autora: Maria Luiza Gorga  é advogada fundadora do CGRCZ Advogados e doutoranda em Direito Penal.


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