Pesquisa jurídica universitária: o autor em busca de um tema

Jefferson Carús Guedes
Advogado da União,Procurador-Chefe da Procuradoria Federal Especializada do INSS, Mestre e doutorando em Direito Processual Civil (PUC-SP), tradutor do texto Como se escreve um livro jurídico (Américo Plá Rodríguez) e co-autor na edição brasileira; professor e orientador de monografia jurídica no IESB (Brasília)

Sumário: 1 A busca; 2 As idéias: olhares iniciais; 3 Técnicas para a aproximação; 4 A flechada do amor: identidade entre autor e tema; 5 Um roteiro; 6 Execução: conjugação entre o desejo e a realização dele; 7 Em caso de desencontro: faça uma nova tentativa.

1 A busca

Duas possibilidades existem de desencontro:

a) há temas para textos perdidos no limbo – num indefinível mas existente endereço – à espera de um pesquisador que os traga a público e b) há autores em busca de um tema para um texto jurídico.

Os autores são talentosos, com a formação secundária essencial, conhecem a língua em seu núcleo mínimo, cursam a graduação, às vezes em fase final, ou os inúmeros cursos de pós-graduação e, mais, desejam ou devem (precisam) definir e produzir um texto técnico-jurídico.

Doutro lado – alguns em profundo silêncio – estão os temas, os assuntos atraentes, de interesse público, com repercussão social ou política, econômica ou científica.

Sua descoberta e o desafio da pesquisa e da escrita é realizável, pois possuem boas fontes de consulta à disposição, têm nuanças inexploradas ou ainda exploráveis; reservam perspectivas de avanço em novas abordagens, com possibilidade de outras interpretações, admitindo diferentes conclusões.

Falta contudo o encontro, a revelação.

Esse “ocasional”, embora difícil, encontro ocorrerá de uma ou de outra forma. Produzam-se as condições ideais e revelar-se-ão um ao outro, mostrar-se-ão (sem misticismo) em suas virtudes e desejos, em capacidades e características. Dê-se-lhe ao pesquisador, o mínimo, e o assunto (instituto associado a área intradisciplinar) ou um tema (questão ou conjunto de questões que permita abordagem) para pesquisa aparecerá à sua frente do pesquisador. Autor para o tema ou o tema para o autor.

Os temas estão próximos de nós, embora possam estar “em seu estado de dicionário”, paralisados, mas sem desespero, como afirmou Drummond na Procura da Poesia. E mais, eles (os temas) nos aguardam com sábia paciência, até que cumpramos os ritos iniciais da aproximação e da abordagem.

2 As idéias: olhares iniciais

Não se pode provavelmente definir se um texto técnico-jurídico é feito pioritariamente ou predominantemente com idéias ou com palavras. É certo que algumas idéias, reflexões cruciais, precedem a qualquer registro escrito, a qualquer nota inicial. Portanto, algumas idéias antecedem a quaisquer anotações.

Uma das primeiras tarefas é excluir as áreas (conjunto de disciplinas afins) de desinteresse, retirando do centro do pensamento as disciplinas (conteúdo didaticamente autônomo) ou áreas que se tenha certeza não seriam tratadas.

Passa-se à escolha de uma área geral de interesse dentre os ramos do Direito: Teoria Geral, Filosofia do Direito, Sociologia do Direito, disciplinas aplicadas ou grandes ramos, como Direito Privado ou Direito Público. Defina-se numa e afaste as demais, desde que o tema não seja interdisciplinar.

Caso seja possível definir com mais especificidade a disciplina, tal como Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito Constitucional ou as novas áreas intradisciplinares, como Direito do Consumidor, Criminologia etc., melhor ainda. Assim será mais fácil o detalhamento e a busca do tema.

Alguns pesquisadores conseguem de pronto (ou por subjacentes inconfessadas reflexões anteriores) definir com esse detalhamento a área, adentrando em pontos específicos da disciplina. Assim, por exemplo, no Direito Penal fixam-se numa modalidade de crime, numa espécie de pena, na forma de aplicação dessa pena, na sua execução ou mesmo o contraste de um desses itens com um princípio ou com uma norma superior. Mais que um tema, talvez já possua o contorno de um saudável problema (questão a ser exposta ou resolvida pelo trabalho).

Para essa escolha, não é necessário registro formal escrito, trata-se de reflexões apenas ou de discussão inicial, em que bastam notas avulsas para que idéias genuínas não sejam perdidas.

Contudo, isso é ainda pouco, tem-se um universo que pode ser muito amplo, sem que se tenha o assunto precisamente definido ou delimitado

3 Técnicas para a aproximação

Para que se defina um tema de interesse em uma (ou mais) dessas áreas há técnicas possíveis, desde que se encontrem dois ou três pontos (parte controvertida do tema) dentro de um tema ou de um assunto. Tal como desapropriação, sociedade e indenização em Direito Administrativo; função social, novo Código Civil e contratos em Direito Civil; proteção à criança, ECA e direitos dos pais, em Direito da Família; execução, efetividade e devido processo, em Direito Processual; moral ou ética, princípios legais e saúde, em Biodireito; cláusulas pétreas, direito adquirido e reformas, em Direito Constitucional.

Esses pontos podem ser alinhados e examinados sob a influência dos princípios, sob a influência das ciências gerais, ou de outra área como no tema: “Reforma da Previdência: a EC nº 41, cláusulas pétreas e o respeito ao direito adquirido”.

Os pontos podem ser correlacionados entre si ou com outros, que atraiam o pesquisador. Esses pontos podem ser confrontados e testados em simultânea oposição, com contraste. Exemplos disso é o texto.

Contudo essa técnica pode não ser suficiente.

Podem-se encontrar esses alinhamentos, essa correlação ou esses contrastes em outros textos técnicos, sejam artigos ou monografias, em decisões de órgãos administrativos, em pareceres administrativos, em decisões judiciais (interlocutórias ou finais) ou na lei. Mas a lei, em si, pode ser insuficiente, paralisada no seu estado positivado (codificada), não motiva de instantâneo, exceto se oposta a decisões que a interpretam ou confrontam.

Também as falhas da doutrina, as dissonâncias entre os doutrinadores, as lacunas da lei podem ser bons temas, com problemas já definidos.

Se nada fluir desse modo, há outra técnica baseada em análise combinatória, que pode contribuir. Devem-se listar duas ou três colunas, nas quais a primeira pode elencar princípios gerais; a segunda, princípios da disciplina ou do assunto e a terceira os institutos próprios ao assunto.

Assim, por exemplo na área de Direito Processual Civil:

Primeira Coluna – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: 1 – Contraditório; 2 – Ampla defesa; 3 – Devido processo; 4 – Duplo grau de jurisdição; 5 – Isonomia; 6 – Dever de motivar decisões; 7 – Proibição da prova ilícita; 8 – Inafastabilidade do controle judicial; 9 – Juiz natural; 10 – Publicidade.

Segunda Coluna – PRINCÍPIOS DO PROCESSO CIVIL: I – Autonomia da ação; II – Inércia da jurisdição; III – Imparcialidade; IV – Gratuidade; V – Eventualidade; VI – Dispositivo; VII – Instrumentalidade; VIII – Livre convencimento; IX – Investidura; X – Busca da verdade.

Terceira Coluna – INSTITUTOS: a) – nulidades; b) – meios de prova; c) – juizados especiais; d) – tutelas de urgência; e) – execução; f) – Fazenda Pública; g) – cautelares; h) – acesso à justiça; i) – recursos; j) – arbitragem.

Como exemplos, associando-se dois ou mais itens, teríamos temas como: Sistema de nulidades e instrumentalidade do processo; Gratuidade e isonomia na execução; Verdade e proibição da prova ilícita; Investidura e juízes leigos nos juizados; Plenitude do contraditório na execução; Tutela de urgência concedida de ofício e inércia da jurisdição; Imparcialidade e dever de motivar as decisões; Eventualidade, prazos e preclusão no processo; Fazenda Pública e isonomia; Duplo grau e recursos nos juizados; Ampla defesa e contraditório na tutela de urgência.

Evitem-se, contudo, os temas extremos, curtos ou extensos demais, nunca abordados ou demasiadamente estudados, sem atualidade ou os modismos exagerados.

Não sendo útil tal técnica, deve-se voltar à técnica inicial ou tentar outras. Fruto da experiência concreta profissional, seja do estagiário, do advogado, de membros das carreiras jurídicas do Estado, os casos pessoais podem render bons temas, desde que permitam o desenvolvimento técnico, com a isenção para a busca de novos enfoques.

4 A flechada do amor: identidade entre autor e tema

Para a perfeita associação entre autor e tema a empatia deve ser total. Américo Plá Rodríguez (1) define este momento da identidade entre autor e tema como mágico e assemelhado ao enamoramento, interesse que não deriva da beleza, das virtudes, da simpatia do objeto desejado.

Atraente é o tema que desperta a paixão do pesquisador, estimulando o prazer da conquista e o envolvimento, esse é o interesse subjetivo. Se não houver esse entusiasmo, é melhor que se busque outro tema. Por tal razão, não raro, quando encontramos esses apaixonados, o que ouvimos deles é a incansável exaltação da sua paixão, seja ela o amado ou o tema da pesquisa.

Essa escolha, ainda que arbitrária, mantém certa coerência com fatores objetivos, como a capacidade do autor, a disponibilidades de meios (fontes disponíveis) e a proporcionalidade entre a sua extensão e o tempo disponível.

Nesta altura, se já se tem o tema da pesquisa definido e delimitado é hora de avançar e planejar o relacionamento.

5 Um roteiro

O roteiro pode ser um plano elementar, uma seqüência de itens a serem abordados, uma seqüência de perguntas a serem respondidas ou um problema a ser enfrentado.

Esse guia é imprescindível à continuidade do trabalho e deve ser elaborado, logo após a definição do assunto ou a escolha definitiva do tema. Não se trata de um projeto para a pesquisa, nem ainda de um sumário, mas de um roteiro e como tal deve conter a estrutura vertical dos principais subitens ou subtítulos a serem provavelmente abordados.

Esse roteiro tem seu núcleo no desenvolvimento, mas será antecedido de uma introdução (resume os objetivos) e seguido de uma conclusão. Para a estruturação dos subtítulos do núcleo (desenvolvimento) pode-se usar uma técnica conhecida, formulando sucessivas perguntas sobre o tema escolhido. São as questões que seguem: Quê? Quando? Com quê? Como? Quem? Para quê? Onde? Contra quê? Por quê? Quanto? É possível que algumas das questões não possam ser abordadas, em virtude dos limites de extensão de tempo ou de lugar em que se contenha o tema escolhido.

Exercite a técnica, testando-a em um texto publicado por outro autor. Caso existam textos (artigos ou monografias) sobre o mesmo tema, podem-se comparar os sumário desses trabalhos.

Esse roteiro, em seu estágio final é o sumário temporário para o trabalho.

6 Execução: conjugação entre o desejo e a realização dele

Definido como estava tema, planejado o roteiro, o trabalho de redação deve começar. Então, à obra. E como toda tarefa deve ter um princípio, vale nisso a recomendação de Lewis Carol: comece do princípio, vá até o final e pare. Na hora de escrever, linguagem simples, clara e objetiva; redação com frases curtas e em ordem direta.

Escreva e reescreva, sabendo que os textos não nascem prontos.

Uma das técnicas menos estimulantes ao iniciante é comparar o seu texto estreante com textos de outros, textos prontos, textos maduros, textos revisados, textos publicados. Não faça e nem deixe que façam isso com seu trabalho.

Mal sabe o jovem autor que atrás da bem-elaborada redação se esconde um longo e trabalhoso processo, no qual o autor consumiu diversas horas de correção e revisão, sem contar as horas dispendidas na pesquisa e na produção do texto original.

Exemplo dessa evolução pode ser encontrado na obra Mandado de segurança e ação popular, de Helly Lopes Meireles, que em sua primeira edição, em 1967 tinha apenas 40 páginas de texto, e hoje, após 23 edições e sucessivas revisões ultrapassa as 600 páginas.

Os textos evoluem, amadurecem durante a elaboração e, às vezes, precisam de uma noite ou uma semana de descanso para melhorar de qualidade. Daí recomendarem os técnicos em redação aos autores que não se devem eliminar as versões intermediárias, capazes de testemunhar o crescimento gradativo causados pelas revisões. O primeiro dos textos é apenas a versão inicial, que antecederá a várias outras.

7 Em caso de desencontro: faça uma nova tentativa

Mas se até agora não estão maduros os assuntos, se não há ainda um tema, isso não é o fim. Procure as revistas especializadas na área de interesse, lá pode estar uma idéia para um tema. Assuntos já estudados não estão vedados a novas abordagens, podendo ser revistos ou complementados criticamente. Matérias jornalísticas (indenização de aposentadorias não atualizadas nos planos econômicos), projetos legislativos (nova lei de falências), tendências da jurisprudência (direito a meação a conviventes do mesmo sexo) são também alternativas. Mas sem esquecer, o tema está dentro do autor. A ilusória procura fora é apenas exercício, para, finalmente encontrá-lo dentro.

Tente uma nova aproximação.

Há também a possibilidade do contato com professores dedicados à orientação ou professores pesquisadores, com linha própria de pesquisa que pode ser o abrigo para o trabalho do aluno. Também o debate com profissionais (juízes, promotores, advogados públicos, defensores, advogados privados)pode fazer aflorar temas palpitantes, de interesse prático.

Mas, se nada apareceu, se nenhum tema surgiu, descanse e recomece do princípio.

Nota

(1) Professor uruguaio de Direito do Trabalho, autor do texto Como se escribe un libro juridico, editado no Brasil em 2003, pela EDICAMP.

Bibliografia

DESCARTES, René. O discurso do método. 2ª ed., 2ª tir. São Paulo: 1999. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 15ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza.

PLÁ RODRIGUEZ, Américo; GUEDES, Jefferson Carús. Como se escreve um livro jurídico: conselhos a um jovem que vai escrever um livro. Campinas: Edicamp, 2003.

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