Marlusse Pestana Daher*
O Código Civil Brasileiro estabelece o regime jurídico das pessoas, classificando-as como físicas e jurídicas.
Pessoa física é a pessoa natural, cujos direitos preserva o mesmo Código Civil a partir da concepção. São aquelas dotadas de razão e que chegadas à maturidade, em idade, são igualmente capazes do exercício de todos os atos próprios da vida civil.
Pessoa, distinta portanto do seu ser também indivíduo. Este entende-se como referencial daquela, entretanto, isolado, sem a guarda do compromisso social ou comunitário e como parte de um todo, como acontece com a pessoa.
Como indivíduo, considerar-se-á ainda a pessoa, quando infratora, enquanto é como indivíduo que será imputável, passível de pena, por eventual delito cuja autoria lhe possa ser imputada e que em virtude de sua conduta virá a merecer.
Da pessoa jurídica não se diz que nasce, mas é erigida à condição de pessoa. Será a sociedade, associação ou fundação que após satisfação de formalidades previstas na lei de registros públicos, se torna sujeito de direitos, via de conseqüência de outros tantos deveres que guardam coerência com os perenes princípios: “viver honestamente, não lesar ninguém dar a cada um o que é seu”.
A pessoa física faz parte de uma comunidade é responsável pelos atos administrativos, civis e logicamente também os penais que praticar.
Autores renomados do porte de Savigny, Carrara e Gierke, divergiram. Enquanto o primeiro, aliado da escola clássica, preconizava que a pessoa jurídica tem existência fictícia, o segundo concebia que só o homem é sujeito ativo de delito, porque só ele é inteligente. Quanto ao terceiro assevera que a pessoa jurídica tem vontade própria, é independente de seus associados, administradores ou diretores.
O Direito Brasileiro modernizado pela Constituição Federal de 88 veio a estabelecer pelo § 3º do art. 225 que “as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar o dano”.
Note-se que o dispositivo está no capítulo que trata do meio ambiente o que torna evidente que assim estabelecendo, pensou especificamente neste patrimônio comum a todos, indispensável à qualidade de vida, à subsistência humana ou de qualquer outro ser vivo.
É curiosos observar o nivelamento que estabelece entre as pessoas físicas e as jurídicas sem fazer referência ao aspecto distintivo destas últimas, ou seja, se de direito público ou privado.
Recentemente, a Lei 9.605 que entrou em vigor no último 30 de abril, depois de pelo art. 2º ter deixado bem evidente o princípio da co-autoria ecoando em todos os termos com o art. 29 do Código Penal Brasileiro, pelo art. 3º preconiza que: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.
Já não se discute portanto, que a pessoa jurídica seja penalmente imputável.
Entretanto, como pena eqüivale à sanção, o que se há de discutir será o tipo que há de ser aplicado à pessoa jurídica criminosa.
De acordo com a Lei da Natureza, tais penas se traduzem em: restritivas de direitos, prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, suspensão parcial ou total de atividades, prestação pecuniária, recolhimento domiciliar.
E para que não pairassem dúvidas a respeito da impropriedade da última espécie acima citada, o recolhimento domiciliar, à pessoa jurídica, o art. 21 da mesma lei acrescenta: “as penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas de acordo com o disposto no art. 3º, são: multa; restritivas de direitos; prestação de serviço à comunidade”.
Os incisos e parágrafos deste dispositivo, bem como os artigos seguintes, dispõem e esclarecem sobre a qualificação das penas, em que consiste a restrição de direitos e a prestação de serviços à comunidade.
Mas reconhecer se há de, que estas prescrições não ingressam pacificamente no ordenamento jurídico trazendo interrogações tais, como:
Pela Constituição Federal, a Magna Lei:
a. “nenhuma pena passará da pessoa do criminoso”. Na prática, contudo, isto não acontece, porque, quando uma pessoa é condenada, por ela e com ela, sofrem seus familiares, amigos… No caso da pessoa jurídica, quem vai pagar a conta será seu representante legal, via de conseqüência , “vai doer no bolso dele”, logo, nele mesmo;
b. restringindo-se direitos da pessoa jurídica, quem na verdade terá inviabilizado seu poder de agir, negociar, praticar as finalidades do contrato social, será aquele seu representante que ficará manietado;
c. qualquer que seja a forma de prestação de serviço à comunidade, quem vai prestá-la, quem vai desempenhar o ato ou o gesto necessário para que o serviço seja prestado ainda é o mesmo representante da pessoa jurídica, gerente, diretor ou quem previr o contrato social.
Neste caso, este representante estará sendo duplamente penalizado, porque a ação criminosa que se imputa à pessoa jurídica tem reflexos, subentendendo-se sempre a co-autoria já que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes no mesmo fato”.
No rastro do mesmo discernimento, imposto pelo novo diploma, surge uma outra questão: se a pessoa jurídica de Direito Público, no caso, União, Estados, Municípios, estão incluídos neste rol, via de conseqüência, se são passíveis das penas “de multa, de restrição de direitos; de prestação de serviço à comunidade”.
De fato, é notável a impertinência, no sentido de que não é possível “fechar ou interditar o Estado, fechar ou interditar o Município, quanto mais a União”. Onde se colocaria a soberania e a própria supremacia da qual está investida, que se faria da sua superposição direcionada a assegurar e preservar as liberdades individuais, os direitos sociais, os fundamentais, mediante o exercício do poder outorgado pelo outorgante-povo, numa expressão maior do que seja democracia e cidadania. Não se expõe a guardiã ao perigo de deixar a mercê de outras influências ou de outros inimigos, seus tutelados: o povo, o território, a nação. Nem se há de desprovê-la dos mecanismos capazes de assegurar aquelas garantias de todos, como constitucionalmente previstas.
Como se multará a pessoa jurídica de direito público? Do orçamento viria a constar uma nova rubrica destinada a tanto? Que destino se dará à multa, será revertida ao fundo de reparação dos interesses difusos? Em que consistiria restringir direitos da pessoa jurídica de direito público? E que outro serviço se imporia a ela se já é inerente à sua essência, a prestação de serviços à comunidade?
Não? A pessoa jurídica de direito público está excluída de tais sanções? Mas todos não são iguais perante a lei?
Porém, as complexidades não param por ai.
Já previam outras constituições, esta também: assiste ao Poder Público, o direito de regresso contra o servidor desidioso, imprudente, negligente, que age com imperícia, no caso de dever reparar dano causado a terceiro, na forma da lei.
E neste sentido, agem de plano seus defensores. Na oportunidade da contestação, procedem à denunciação da lide, o que faz com que, o denunciado, um servidor, considerado diretamente responsável pelo fato, na hipótese de julgamento procedente do pedido, ressarcirá o autor pelo dano que lhe tiver causado.
A inconstitucionalidade, portanto, se apresenta mais uma vez flagrante, sob o mesmo fundamento de que “todos são iguais perante a lei”. Faculta-se ser dito que a tradução do preceito é tratar diversamente os desiguais.
Contra quem regressará a pessoa jurídica de direito privado se do delito que praticou já lhe é co-autor seu Gerente ou Representante?
Prevê por fim, a Lei da Natureza, a possibilidade de aplicação alternativa de pena restando a multa.
Como se fará? Mediante mudança da rubrica na lei orçamentária, saindo os valores deste para aquele “item”? No caso de crimes ambientais passaria para o “fundo de reparação dos interesses difusos” também na forma da Lei ?
Constituído em débito judicial dependerá de pagamento por precatório. Como se pagará? Pela ordem de apresentação?
O dispositivo constitucional não era princípio auto aplicável, daí a necessidade da Lei, para cujo projeto concorreram expoentes do mundo jurídico, particularmente, no aspecto ambiental. Votada, sancionada, entrou em vigor, mas ainda carece de ser regulamentada em aspectos fundamentais, como por exemplo, o valor das multas.
Pelo exposto e por tudo mais que da mesma lei consta, passará algum tempo até que se esclareçam tantas interrogações que seu texto traz. Ter-se-ão que ouvir os Tribunais que por sua vez terão que dar respostas, que preservem todo e qualquer direito. Reconheça-se, estarão em situação de absoluto desconforto, seus componentes são intérpretes da lei, não, reestruturadores dela.
* Marlusse Pestana Daher é Promotora de Justiça e Dirigente do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente.