Philadelphia, a intolerância e a questão dos homossexuais nos tribunais brasileiros

Este é o segundo artigo sobre o filme que deu para Tom Hanks o Oscar de melhor ator. No filme, um machista defendeu um gay. No Brasil, um católico fervoroso, o Dr. Sobral Pinto, defendeu o comunista Luís Carlos Prestes. E você, prezado advogado?

Cláudio Marks Machado

UM OLHAR DE ADVOGADO

Na primeira parte manifestei minha opinião e observações sobre o filme, lembrando que os fatos descritos são muito semelhantes aos ocorridos em nosso cotidiano. Realcei a preocupação mundial com a intolerância e o preconceito, divulgando pensamentos dos mais destacados intelectuais do planeta reunidos no Foro Internacional sobre a Intolerância , promovido pela Academia Internacional de Cultura , Paris 1997. Assim, recomendo uma leitura da parte anterior para conferir a pertinência da utilização do filme como instrumento da educação para paz, combatendo a intolerância homossexual e demonstrando, com os recursos do cinema, a igualdade e a dignidade existentes no ser humano, independente de raça, cor, sexo, religião e orientação sexual.

2. Vimos que o filme conta a história de um competente advogado demitido de uma empresa de advocacia com alegação de deficiência no trabalho. Ele é acusado de não conseguir o cumprimento dos prazos. Essa questão, pelo visto, também é fatal para a advocacia nos EUA. Costuma-se dizer que o advogado é escravo dos prazos processuais, aliás o único entre os operadores do direito que a perda de prazo implica rigorosa pena : a de revelia e confissão, além das sanções aplicadas pela OAB e da responsabilidade civil que implica o dever de indenizar os danos materiais e morais causados ao cliente.

3. Contudo, no filme, a questão do prazo é somente um pretexto. Na verdade, como ficou demonstrado, o motivo da demissão do advogado foi o preconceito contra a homossexualidade e a AIDS. Aliás uma cruel dissimulação que pretendia agredir a dignidade humana, discriminando a sua sexualidade e para tanto não se incomodou em atingir sua reputação com a pecha de advogado desidioso. Assim o filme mostra que a intolerância ou aversão ao homossexual e o preconceito com a AIDS se manifestam insidiosamente, com artifícios atingindo o ser humano nos seus valores mais fundamentais, inclusive a dignidade profissional. Aliás, o preconceito consiste na intolerância sem motivo ou fundamento para excluir e afastar os que são diferentes.

4. O advogado representado pelo Denzel Washington, permite uma reflexão sobre o papel do advogado o que é uma oportunidade para divulgar uma das páginas mais bonitas da advocacia brasileira. No caso, um advogado conservador e preconceituoso, com aversão ao homossexualismo e com medo da AIDS, mesmo com relutância, aceitou a causa e defendeu o direito do homossexual. Observe-se que anteriormente outros nove advogados tinham recusado o patrocínio de tal causa.

5. Assim, o filme destaca o papel do advogado que no Brasil, conforme o Código de Ética , “ é indispensável a administração da justiça ( art. 133 da Constituição) e possui o dever de defender o estado democrático de direito, a cidadania, a moralidade pública, a justiça e a paz social (art. 2º) . Além disso, “ o advogado dever ter consciência que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos” (art. 3º). Diversos dispositivos do mencionado Código impõem o dever do advogado de defender causas da espécie, sem considerar suas opiniões, somente sendo legítima a recusa na hipótese de a causa contrariar a lei, a ética e a moral ( art.20). Entendo que a recusa deve ser sempre fundamentada.

6. Considero, também, que o direito e dever do advogado de assumir a defesa criminal, sem considerar sua opinião ( art. 21) é aplicado a todos os ramos do direito. Já que o direito de acesso à justiça, garantia fundamental da cidadania, está expresso na Constituição em diversos dispositivos, entre eles o que consagra a “ não exclusão da apreciação do Poder judiciário de lesão ou ameaça a direito” ( art. 5º, XXXV) e o que determina que “ o advogado é indispensável para administração da justiça” ( art. 133) e implica o dever do advogado de patrocinar causas contrária às suas opiniões, sob pena de furtar a aplicação da própria Constituição.

7. Essa questão de o advogado defender causas ou pessoas que contrariam suas convicções produziu uma das mais belas páginas da advocacia brasileira. No filme um machista defendeu um homossexual. Em nosso exemplo um católico fervoroso, que combatia a doutrina comunista, o Dr. Sobral Pinto defendeu o líder comunista do Brasil, Luiz Carlos Prestes. Para contar o episódio peço licença par tentar resumir o artigo “ Sobral Pinto, o monstro” do livro Arca de Guardados – Vultos e Momentos nos Caminhos da Vida, Editora Civilização Brasileira, 1995, onde Evandro Lins e Silva relata : “ …Dominada a insurreição armada da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, desencadeou-se uma repressão desesperada, nunca vista, sem qualquer racionalidade, prisões sem conta, casas invadidas, um ambiente de pánico, verdadeira histeria coletiva. As cadeias ficaram abarrotadas de comunistas, simpatizantes, liberais, opositores do governo, os ‘ suspeitos de sempre’…Era preciso armar uma autoridade de poderes excepcionais para esmagar a hidra comunista. Inventou-se um’ estado de guerra’ em plena paz e criou-se um órgão de exceção, o Tribunal de Segurança Nacional…A ditadura cometeu um erro…a lei… deu a Ordem dos Advogados do Brasil a atribuição de indicar advogados aos réus que os não tivessem ou não os quisessem constituir…a OAB designou Sobral Pinto para defender os dois principais responsáveis pela intentona comunista, Luiz Carlos Prestes e Harry Berger. A escolha foi sobretudo um ato de inteligência. Sobral era líder católico, presidente do Centro Dom Vidal. A posição da Igreja era, na época, extremamente conservadora e declaradamente contrária ao comunismo, sob todas as suas formas ou disfarces…com a firmeza de sua convicção e de sua fé religiosa o advogado entrou na liça e começou a atuar…se revelou um extraordinário exemplar humano, uma figura de lutador…de abnegado defensor dos direitos dos cidadãos…a gritar e protestar contra as condições cruéis e infame da prisão, contra as violações das leis, contra a incomunicabilidade, contra as torturas…foi preso e autuado por desacato a autoridade quando insistia para visitar seus constituintes. Nada entibiou esse Quixote denodado, esse símbolo da advocacia. Fez uma petição que ganhou o mundo : – invocou, em favor dos seus clientes, a lei de proteção aos animais…Combatia uma avalancha de estupidez, de incompreensões e de um sentimento de prevenção incutido na sociedade contra os réus. A sua fama se espalhou e Sobral Pinto se tornou um advogado universal, êmulo de todos os seus antecessores na história da profissão…deixou uma legenda de altruísmo, de abnegação e de honradez…foi um portento, foi enorme, Rubem Braga teve razão: – foi um monstro”( pág. 173 a 175)

8. Como visto, o filme serviu de pretexto para lembrar dos nossos melhores. A advocacia brasileira produz também grandes histórias e é repleta de grandes advogados que devem ser divulgadas como exemplo para todos os profissionais do direito. Assim, aproveitamos para contar um pouco sobre o Dr. Sobral, que foi o nosso maior mas não o único.
9. Antes de falar sobre a homossexualidade, tema do filme examinado, chamo atenção sobre uma frase do advogado de defesa que possibilita uma reflexão sobre a linguagem jurídica. Lembrem, volta e meia o advogado dizia : “ me explique como se eu fosse uma criança de seis anos , ou de 10 anos, algumas vezes”. Ora, está subentendido que se uma criança de 10 anos não consegue compreender a explicação, o fato não é muito claro e o direito não resulta evidente. Destaca que o profissional deve se expressar de forma clara, que todos possam entender, em linguagem simples.

10. A importância da comunicação para o entendimento do direito é um tema constante entre os juristas : CESARE BECCARIA – 1764, ao tratar da obscuridade das leis e sua interpretação, realça a importância da divulgação em linguagem popular.” No entanto, entre os profissionais do direito se desenvolve um jargão, que não é compreendido pelo cidadão comum. Não comento sobre a necessidade de uma linguagem técnica, também considero que existem conceitos cuja a exata compreensão exige algum conhecimento específico, próprio da profissão. O que chama atenção no filme e na vida é o exagero.

11. Ainda sobre a linguagem do judiciário, o jornalista Alfredo Leão, no artigo “ Judiciário fala enrolado e complica tudo”, com base em entrevistas com os mais destacados juristas brasileiros, no livro JUSTIÇA : REALIDADE OU UTOPIA ? ( Ed. Ltr – São Paulo 1996) , destaca que : “…Numa época em que a computação determina os caminhos do planeta, a comunicação global e a multimídia são realidades e a simplicidade é o charme e a elegância, os juristas deste país vivem de óbicce, vocatória, acórdão, data vênia, erga omnes, juris tantum e outros palavrões em português ou em latim que nem mesmo os que dominam os jargões do Direito entendem. Por que continuar esse discurso confuso, inintelegível ? Para escamotear a realidade. Os homens do Direito perpetuam as idéias do final do Século XIX – “ falar difícil é sinônimo de intelectualidade” – , esquecendo-se de que o maior esforço da humanidade sempre foi o de se comunicar com clareza.” ( pág.19) .

11. Por fim, também sobre a linguagem do judiciário e/ou a comunicação do direito, deve ser registrada a lição do Juiz José Renato Nalini : “ …o brasileiro tem direito constituicional à informação. Não desatende à positividade o juiz que se preocupar com a transmissão desses dados a comunidade. Antes estará implementando a nova ordem constitucional, que pretende tornar cada homem um bom cidadão – a completeza do homem em sociedade – ou, segundo a feliz expressão de Hannah Arendt, o diteito a ter direitos. Existe uma palpável insuficiência, quando não total carência de informação jurídica e judicial…O juiz não está excluído da responsabilidade de manter o destinatário informado de seus direitos, nem da transparência que a prestação jurisdicional também deve se revestir, pois a administração pública submetida aos preceitos do art. 37 da Constituição da República…E favorecendo a veraz participação do homem, sobretudo o homem simples e anônimo, na administração da justiça… “ ( O Juiz e o Acesso à Justiça – Ed. Revista dos Tribunais – SP – 2ª Ed. 2000, pág. 87) .

III)

A QUESTÃO HOMOSSEXUAL.

12. Bom, realçamos que o filme trata da intolerância. Assim, também, é considerada a questão do preconceito ao homossexual na 3ª Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância, realizada na África do Sul , de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001. O Brasil encaminha propostas e uma comitiva de mais de 50 membros e lidera a defesa da tese que o desrespeito à orientação sexual deve ser considerada racismo- “ mesmo não sendo uma conferência específica para tratar de homossexualidade, estamos falando de intolerância, explicou o Secretário da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis, único ativista gay representante da sociedade civil a participar do encontro como membro de uma delegação do governo” ( conforme Correio Braziliense de 26.08.2001, pág. 21). O tema é polêmico e pode ser acompanhado pela imprensa.

13. Para o exame da questão da homossexualidade no direito, especialmente um panorama brasileiro, reporto-me ao trabalho de Roger Raupp Rios, Juiz Federal em Porto Alegre RGS, Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS com a dissertação e tese “ O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual : a homossexualidade no direito brasileiro e norte americanos, editado pela Livraria do Advogado , 2001.

14. Esse livro possui inúmeros méritos : fornece ao cotidiano forense elementos técnicos imprescindíveis para o exame da questão homossexual; aproxima o meio acadêmico de uma questão que envolve a sociedade, fato raro num sistema de ensino comprometido com as elites; e insere-se na luta contra a intolerância, expondo com base na melhor doutrina e nos princípios de direito expressos na Constituição, um pensamento lógico demonstrando que , no mundo jurídico, existem instrumentos para exigir o reconhecimento do outro ( homossexual) . Ou seja, constitui exemplar contribuição para educação e cultura do direito e, tal como o filme comentado, enfrenta o desafio de promover a reeducação do ser humano em busca da paz. Como já dito, a luta para chegarmos a um verdadeiro reconhecimento do outro é difícil, mas não sem esperança. Para vencê-la, necessitamos de uma vontade férrea e de uma constante reeducação do ser humano. Assim, o livro contribui demonstrando a existência de fundamentos jurídicos para lutar contra a intolerância.

15. De início destaca o professor que o preconceito contra os homossexuais afronta os princípios de direito, consagrados na Constituição, da liberdade, igualdade e diferença, da dignidade da pessoa humana e, por óbvio da democracia e da república. Assim, o livro coloca a defesa de gays e lésbicas como um problema objetivo de direito e de direito constitucional . Como diz o prefácio do Prof. José Reinaldo de Lima Lopes ( Dir. Faculdade de Direito da USP) : “… a defesa dos direitos homossexuais é uma defesa da forma democrática de cidadania, ou seja, da pertença universal de todos no âmbito da vida comum, defesa de uma visão republicana do ser humano …”

16. Em seguida o autor destaca que o tratamento da questão homossexual no ordenamento jurídico brasileiro envolve o direito protetivo da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade. Ambos expostos na Constituição como fundamentos existência da Nação e direito e garantia individual. ( CF art. 1, III e 5º capurt). Também com pertinência demonstra a aplicação desses princípios. Observa, ainda, que a jurisprudência sobrepuja a doutrina nessa questão, repreendendo nosso juristas : “ …distanciada do seu dever, a literatura jurídica deixa de lançar as bases que uma dogmática jurídica necessita ´para ser justa “ ( pág. 21) .

17. Após historiar as doutrinas sobre o reconhecimento dos direitos homossexuais, analisando seu desenvolvimento e prática em outras nações, ele conclui que o Brasil “… vive um modelo intermediário. Não criminaliza a prática de atos homossexuais ( à exeção da legislação penal militar) e prevê hipóteses explicitas de proibição de discriminação por orientação sexual…mas ainda não superou a mentalidade heterossexista que discrimina sem fundamentação jurídica. Exemplifica com a questão da mulher e do negro em que “ a existência de disposições constitucionais e legais específicas, por si só, não é capaz de derrotar o machismo e o racismo …” ( pág. 22) .

18. A tese defendida enfrenta a questão da igualdade em hipóteses não arroladas explicitamente no texto normativo . Alerta sobre a aplicação do inciso VI do Art. 3º da Constituição, no sentido de que “ constitui objetivo fundamental do Brasil promover o bem de todos sem discriminação, também, por orientação sexual” . Acentua o equívoco do raciocínio que sustenta a taxatividade dos critérios proibitivos de discriminação, considerando que a discriminação por orientação sexual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa.

19. Expõe o autor que o direito e especificamente o direito brasileiro, conforme exposto na Constituição garante a igualdade formal ( igualdade perante a lei) e material ( na lei ), transmitindo os ensinamentos da melhor doutrina , inclusive a de R. Alexy “ …se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual…” ( pág.76) . No caso da homossexualidade o estágio do conhecimento humano hoje compartilhado desautoriza juízos discriminatórios com base exclusiva no critério de orientação sexual” ( pág. 80) . Então está ordenada a igualdade.

20. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, destaca o Professor o núcleo desse princípio : “ … a pessoa humana é um fim em si mesma…não pode ser vista como meio para realização de outros fins. ( pág. 89) . Assim, injustificável e contrário à Constituição qualquer tratamento indigno.

21. Ainda para uma melhor compreensão da questão homossexual, o autor nos fornece um sintético panorama das relações pessoais e da evolução do conceito de família, chamando atenção de que atualmente não se pode conceber a família senão como união de pessoas em busca da felicidade individual. Ou seja, “ hoje a família feliz atrai menos, o que conta é ser feliz por si mesmo. “ ( pág. 104)

22. Pedindo desculpas pela apertada síntese que, com certeza, deixou de realçar aspectos importantes, considero que a virtude do livro é apresentar fundamentos e argumentos que, na prática, podem auxiliar na defesa jurídica do direito dos homossexuais, inclusive com extensa citação de decisões de Tribunais estrangeiros, especialmente americanos e da jurisprudência brasileira sobre o tema.

23. Por fim, com objetivo de fornecer informações objetivas aos leitores e encerrar este já longo comentário, resta destacar que questões como a do filme , dispensa arbitrária e discriminatória de empregado com AIDS, no Brasil, são examinadas pela justiça especializada do trabalho que considera nula a dispensa discriminatória; determina a reintegração do empregado e, algumas vezes, condena o empregador a indenizar o empregado pelos danos morais, em pequeno valor como nossa tradição, conforme acórdãos que transcrevemos sinteticamente abaixo :

– RECURSO DE REVISTA. PORTADOR DO VÍRUS HIV. CONHECIMENTO DO EMPREGADOR. LEI Nº 7670, DE 08-09-88. ART. 476/CLT. DESPEDIDA OBSTATIVA. Ao dispensar o empregado, sem justa causa, portador da síndrome à época (com doença já manifestada) a Recorrida impediu a obtenção do benefício previdenciário, quando usufruiria de licença não remunerada. Princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Art. 1º/III/IV/CF. Recurso do Reclamante provido (“ TST DECISÃO: 13 06 2001 – TIPO: RR NUM: 439041 ANO: 1998-TERCEIRATURMA-FONTE DJ DATA: 10-08-2001 PG: 664 )
DECISÃO Unanimemente, conhecer do recurso, por divergência jurisprudencial e, no mérito, dar-lhe provimento para determinar a reintegração do obreiro, com pagamento dos salários vencidos e vincendos e todas as vantagens que auferiria se estivesse trabalhando, ou, na impossibilidade concreta da reintegração, o pagamento destas vantagens até a data efetiva em que o Recorrente começar a receber os benefícios da Previdência Social.

-TST DECISÃO: 07 02 2000 – TIPO: ERR NUM: 217791 ANO: 1995 REGIÃO: 09- EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA – TURMA: D1 -ÓRGÃO JULGADOR – SUBSEÇÃO I ESPECIALIZADA EM DISSÍDIOS INDIVIDUAIS
“ EMBARGOS. REINTEGRAÇÃO. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EMPREGADO
PORTADOR DA SIDA (AIDS). Tratando-se de dispensa motivada pelo fato de ser o empregado portador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – SIDA e sendo incontestável a atitude discriminatória perpetrada pela empresa, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, a despedida deve ser considerada nula, sendo devida a reintegração. Embargos não conhecidos.
…A decisão restou assim ementada: “REINTEGRAÇÃO – EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS DA AIDS – CARACTERIZAÇÃO DE DESPEDIDA ARBITRÁRIA. Muito embora não haja preceito legal que garanta a estabilidade ao empregado portador da síndrome da imunodeficiência adquirida, ao magistrado incumbe a tarefa de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes para solucionar os conflitos ou lides a ele submetidas. A simples e mera alegação de que o ordenamento jurídico nacional não assegura ao aidético o direito de permanecer no emprego não é suficiente a amparar uma atitude altamente discriminatória e arbitrária que, sem sombra de dúvida, lesiona de maneira frontal o princípio da isonomia insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil. Revista conhecida e provida.” (fls. 309)
… No entanto, o caso em apreço desafia um exame complexo dos princípios que regem o ordenamento jurídico vigente, e que constam expressamente na nossa Carta Política, e não apenas a superficial análise dos casos de estabilidade expressamente previstos em lei, como quer o embargante. Não se trata, o presente caso, apenas de dispensa arbitrária, mas de flagrante discriminação, devendo ser repudiada pelo ordenamento jurídico e pelo intérprete da lei.
…Observa-se, portanto, que não se trata de uma dispensa arbitrária comum, mas uma verdadeira discriminação do ser humano submetido a uma provação maior, que é o convívio com a síndrome da imunodeficiência adquirida -SIDA, razão pela qual a hipótese em destaque escapa das previsões do art.7º, inciso I, da Carta Magna. O ordenamento jurídico pátrio, há muito, repudia o tratamento discriminatório, seja por motivo de sexo, raça, cor, religião, etc. … Na atual Constituição Federal, a proibição de discriminação encontra-se assentada em diversos dispositivos, sendo essa, inclusive, uma das metas da República Federativa do Brasil, conforme se depreende do art. 3º, em seu inciso IV:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
O próprio princípio da igualdade consagrado no art. 5º, caput, da Carta Magna veda as discriminações absurdas, ao dispôr que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,…”, ou seja, todos os cidadãos têm o direito a tratamento idêntico. Esse princípio alcança não só o legislador e o intérprete da lei, mas também o particular, que não poderá adotar condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas.
Já o inciso XLI do art. 5º da Constituição Federal de 1988 estabelece que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Também no capítulo dos direitos sociais o art. 7º, inciso XXXI repudia a discriminação, vedando a “proibição de qualquer discriminação no tocante à salário e a critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.
Como se vê, é grande a resistência a atitudes discriminatórias como a perpetrada pela empresa-demandada, ganhando status de princípio constitucional, ao qual deve sempre pautar-se o intérprete da lei. Não se pretende uma aplicação cega desse princípio, na medida em que as diferenciações são admitidas, quando justificadas e providas de finalidade relevante. O que não se concebe é a discriminação odiosa e arbitrária como
a ocorrida nos autos. A preocupação com as práticas discriminatórias extrapola os limites da sociedade brasileira, merecendo atenção mundial. A Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho, de 1958, ratificada pelo Brasil, proíbe “qualquer distinção, exclusão ou preferência baseada em motivos de raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha como efeito anular a igualdade de oportunidades ou de trato em emprego ou ocupação”. Também a Convenção nº 117, de 1962, ratificada pelo Brasil, em sua parte V, estabelece como meta a supressão de toda discriminação contra os trabalhadores que tiver por objetivo motivos de raça, cor, sexo, crença, filiação a uma tribo ou a um sindicato, no que diz respeito ao empregado e a condições de trabalho, inclusive no concernente à remuneração.
…A questão ganha relevo quando a doença não apresenta, de plano, uma inabilitação imediata do empregado, podendo permanecer anos sem se manifestar no organismo da pessoa infectada pelo vírus e sem prejudicar o desempenho no serviço. Exemplos nesse sentido são vários, sendo expoente o de conhecido esportista americano que, embora portador do vírus, continuou exercendo a sua atividade profissional de jogador de basquete.
… orientando nesse mesmo sentido, conforme demonstra o seguinte julgamento
proferido pela Colenda SDI: “REINTEGRAÇÃO – EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS DA AIDS. Não obstante inexista no ordenamento jurídico lei que garanta a permanência no emprego do portador da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – SIDA, não se pode conceber que o empregador, munido do poder potestativo que lhe é conferido, possa despedir de forma arbitrária e discriminatória o empregado após tomar ciência de que este é portador do vírus HIV. Tal procedimento afronta o princípio fundamental da isonomia insculpido no ‘caput’ do artigo 5º da Constituição Federal.
Embargos não conhecidos.” (E-RR-205.359/95.6, Rel. Ministro Leonaldo Silva, SDI)
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-TST – RR NUM: 446047 ANO: 1998 REGIÃO: 02
RECURSO DE REVISTA TURMA: 01 ÓRGÃO JULGADOR – PRIMEIRA TURMA
DJ DATA: 08-10-1999 PG: 124 RELATOR MINISTRO RONALDO JOSÉ LOPES LEAL
EMENTA – AIDÉTICO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. DANOS MORAIS. A controvérsia dos autos decorre da relação de trabalho. Nos termos do art. 114 da Constituição da República, é competente a Justiça do Trabalho para julgar as ações em que se pede indenização por danos morais originários de atos praticados pelo empregador contra a dignidade do trabalhador durante o pacto laboral ..O TRT da 2ª Região, às fls.188/195, condenou a reclamada ao pagamento da indenização de R$ 3.600,00 por danos morais, em razão do tratamento despendido ao reclamante durante a relação de emprego, visto que colocou em risco concreto a imagem do empregado perante os colegas, bem como abalou a sua auto-estima.

CLAUDIO MARKS MACHADO é advogado em Brasília -DF

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