PL que condiciona colaboração premiada à liberdade é louvável

Autor: Leonardo Isaac Yarochewsky (*)

 

Na hora da dura
Você abre o bico e sai cagüetando
Eis a diferença, mané, do otário pro malandro
Eis a diferença do otário pro malandro
E no pau-de-arara você confessou o que fez e não fez
E de madrugada gritava gemendo dentro do xadrez “
(Bezerra da Silva)

Projeto de Lei 4.372/2016 de autoria do deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) propõe alterar o questionável e controverso instituto da delação premiada. O PL 4.372/2016 altera e acrescenta dispositivo à Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013 que “Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências”. De acordo com o referido Projeto de Lei os artifos 3º e 4º da Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 3º……………………………………………………………..
3º No caso do inciso I, somente será considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor.” (NR)

“Art. 4º …………………………………………………………….
17. Nenhuma denúncia poderá ter como fundamento apenas as declarações de agente colaborador.
18. As menções aos nomes das pessoas que não são parte ou investigadas na persecução penal deverão ser protegidas pela autoridade que colher a colaboração. ” (NR)

Ainda, de acordo com o PL 4.372/2016 a Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 21-A:

“21-A. Constitui crime divulgar o conteúdo dos depoimentos colhidos no âmbito do acordo de colaboração premiada, pendente ou não de homologação judicial.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

A delação premiada, também denominada colaboração espontânea com a justiça, surgiu nas décadas de 70 e 80, quando dos julgamentos dos delitos praticados pela famigerada máfia, não obstante o instituto tenha sido empregado na década de 80 na Espanha, no âmbito das práticas terroristas, o modelo que de fato influenciou e influencia diversos ordenamentos jurídicos é o modelo italiano.

Em que pese à nítida estruturação normativa italiana com o objetivo de deter e responsabilizar a máfia, a operazione mani pulite, inicialmente aclamada pela população italiana, foi ganhando espaço na crítica ante os abusos cometidos pelo Ministério Público e pelos juízes, especialmente “pelos exageros apontados nos encarceramentos preventivos, tanto que a operação passou a ser apelidada pela imprensa de ‘operação algemas fáceis'” (Pellegrini, 1995, p. 85). Iniciava-se um embate entre os operadores do direito, divididos entre o argumento de combate à criminalidade e do respeito às garantias fundamentais.

O legado que se pode extrair das raízes da delação premiada, é que a sua criação foi influenciada pelas circunstâncias e idiossincrasias peculiares da Itália naquele momento, e que, conforme se abordará em seguida, o transplante de tais ideias para o ordenamento jurídico brasileiro representou um equívoco do legislador, mormente pelas diferenças de criminalidade e pela discrepante estrutura.

Uma digressão quanto ao percurso da legislação brasileira demonstra que a delação premiada ganhou seus primeiros traços ainda nas Ordenações Filipinas, em vigência de 1603 a 1830, e que consignava a faculdade de se perdoar o individuo que delatasse conspirações ou conjurações, bem como fornecia dados que ajudassem na prisão dos envolvidos (“Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão”) (Bittar, 2011, p. 240).

No entanto, o termo inicial do instituto já com a denominação de delação premiada teve inicio após a promulgação da Constituição da República (CR) que, inspirada no Movimento da Lei e Ordem, trouxe dispositivo acerca da criação da lei dos crimes hediondos (artigo 5º, inciso XLIII, da CR).

Influenciados pela excitação gerada pela operação italiana mani pulite, bem assim pelo clamor social advindo da sensação de insegurança incrementada pelos meios de comunicação sensacionalistas e pelo aumento do crime de extorsão mediante sequestro de pessoas tidas como importantes, a primeira imersão do instituto sob análise no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu com o advento da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos).

Sob o aspecto processual, as declarações dos colaboradores, tidos como suspeitos, são analisadas criteriosamente. Somente é aceito como prova aquele testemunho que restar corroborado pelas demais provas produzidas. Assim, o exame da declaração passa pela análise da credibilidade do declarante (personalidade, passado, relação com os acusados), da confiabilidade da informação (precisão, coerência, seriedade) e da ratificação por outras provas.

A Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013 que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e os meios de obtenção de prova prevê a “colaboração premiada”, in verbis:

Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
I – colaboração premiada;
……………………………………………………………………………………………

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

Já foi dito alhures que a confissão passou a ter valor relativo no sistema que repudia a hierarquia das provas, com muito mais razão a esdrúxula figura da delação premiada, para aqueles que insistem em defendê-la, deve ser vista com toda parcimônia, posto que, o delator para se livrar da coação e satisfizer o inquisidor é capaz de acusar até a própria genitora.

Neste sentido o processualista Aury Lopes Jr. para quem:

“É imprescindível muito cuidado por parte do juiz ao valorar essa prova, pois não de pode esquecer que a delação nada mais é do que uma traição premiada, em que o interesse do delator em se ver beneficiado costuma fazer com que ele atribua fatos falsos ou declare sobre acontecimentos que não presenciou, com o inequívoco interesse de ver valorizada sua conduta e, com isso, negociar um benefício maior”.

Dentre vários problemas que decorrem da delação se apresenta a figura do próprio delator que no processo é acusado (réu) e ao mesmo tempo “testemunha” de acusação (acusador). Ao acusado é dado o direito constitucional de não se incriminar e de permanecer calado. Já a testemunha tem a obrigação de dizer a verdade. Como fica a situação do delator diante dos corréus? O embaraço é inevitável e insolúvel.

A valoração que vem sendo atribuída a delação por determinados setores da sociedade e pela mídia, esfola os direitos e garantias fundamentais próprios do Estado democrático de direito. A história demonstra que a busca desenfreada e cega por culpados, com atropelo do devido processo legal, pode levar a injustiças irreparáveis.

O pior e o maior perigo, segundo adverte o eminente processualista Jacinto Nelson Miranda Coutinho, é a palavra do delator tomando o lugar da “verdade absoluta” (como se ela pudesse existir), inquestionável. A palavra do delator, segundo o eminente processualista, deve ser sempre tomada, na partida, como falsa, até porque, em tais hipóteses, vem de alguém que quer se livrar do processo e da pena.

Hodiernamente a “colaboração premiada” tem se transformado em “coação premiada”. O suspeito é preso e continuará preso enquanto não disser aquilo que o inquisidor quer ouvir. Prisões são justificadas a fim de que investigados “abram o bico” no dizer de um procurador da República que deveria zelar pela legalidade dos atos e do processo.

Razão assiste ao deputado Wadih Damous, autor do projeto, quando propõe que a colaboração premiada somente será considerada para fins de homologação judicial se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor. Justifica-se a medida “para preservar o caráter voluntário do instituto e para evitar que a prisão cautelar seja utilizada como instrumento psicológico de pressão sobre o acusado ou indiciado o que fere a dignidade da pessoa humana, alicerce do estado democrático de direito. Da mesma forma, a alteração protege as regras processuais que tratam da prisão preventiva e evita que prisões processuais sejam decretadas sem fundamentação idônea e para atender objetos outros, alheios ao processo ou inquérito”.

De igual modo, parece salutar que a autoridade responsável por colher à colaboração guarde os nomes das pessoas que não são parte ou investigadas na persecução penal. Tal medida se faz necessária para preservar a honra e a dignidade de pessoas que, não raras às vezes, são ultrajadas com vazamentos seletivos da delação.

Eugenio Raúl Zaffaroni, escrevendo sobre o “crime organizado”, é categórico quando afirma que:

“A impunidade de agentes encobertos e dos chamados ‘arrependidos’ constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado de Direito: o Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade […] o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da sua impunidade para ‘fazer justiça’, o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria” (Zaffaroni, in Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Instituto Carioca de Criminologia, 1996).

Sendo assim, principalmente pelo desespero e temor daquele que se encontra privado de sua liberdade, a delação premiada, de ética-moral duvidosa, deve ser vista com muita ressalva posto, sobretudo quando não corroborada por outras provas lícitas.

Por tudo, ao contrário do que vem sendo dito de forma leviana e pelos punitivistas de plantão, é que o Projeto de Lei apresentado pelo probo deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) deve receber apoio de seus pares para que em futuro próximo se transforme em lei para o bem dos direitos e das garantias fundamentais.

 

 

 

 

Autor: Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e professor de Direito Penal da PUC-Minas.


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