Autora: Ana Frazão (*)
A globalização e as novas tecnologias vêm propiciando uma verdadeira revolução nas formas de organização e exercício das empresas. Hoje é possível desenvolver grandes negócios, mesmo em escala global, sem a complexa infraestrutura material das macro-sociedades ou grupos. Cada vez mais torna-se possível, para aquele que tem uma boa ideia, aproveitar-se das facilidades do mercado para empreender. Para isso, ele pode contratar de outros agentes o que precisa para exercer a sua própria atividade: acesso a clientes e contatos, programadores de informática, provedores de espaço físico e suporte pessoal, fornecedores de tecnologia, know-how, expertise, logística, conhecimentos jurídicos e marketing. Até mesmo o acesso ao capital e a investidores pode ser intermediado por grandes websites que viabilizam o chamado crowdfunding.
Por outro lado, as facilidades de contratação de todos esses serviços no mercado, muitos dos quais precisavam antes ser necessariamente internalizados na empresa, também ajuda a explicar porque mesmo os negócios mais tradicionais passam por um crescente processo de desverticalização e fragmentação, sendo a terceirização provavelmente o efeito mais conhecido e discutido desse processo.
Consequentemente, tanto nos novos como nos antigos negócios, o exercício da empresa passa a ser estruturado, progressivamente, por uma complexa rede de contratos, celebrados entre diversos agentes empresariais, a fim de assegurar a convergência necessária para a estruturação da atividade empresarial e ao mesmo tempo preservar a autonomia e a independência jurídica e econômica de cada contratante. Daí por que é característica comum de tais contratos que cada contratante responda apenas pelas suas próprias dívidas, afastando-se qualquer forma de solidariedade ou responsabilidade subsidiária de um contratante pelo outro.
Um grande exemplo dessa realidade, no que diz respeito aos novos negócios, é o Uber, cujo modelo de atividade está assentado em uma espécie de “contratação independente” do serviço de motoristas, os quais são apresentados aos clientes como agentes autônomos e independentes. Da leitura dos seus termos de uso do serviço, fica claro que “a Uber não fornece serviços de transporte ou logística nem funciona como uma empresa de transportes e que todos os serviços de transporte ou logística são prestados por contratantes terceiros que não são contratados pela Uber ou por qualquer de suas afiliadas.”
Não há dúvidas de que a possibilidade de criar novas formas contratação, com diferentes meios de alocação e limitação do risco empresarial, é uma das principais razões de tais contratos para a estruturação dos novos negócios. Em muitos casos, trata-se de iniciativa fundamental para inovação, fomento e proteção ao investimento e até mesmo facilitação e democratização do acesso a mercados por parte de pequenos agentes empresariais que, sem a contribuição de determinados intermediários, jamais poderiam chegar a determinados mercados consumidores.
Entretanto, se tais arranjos contratuais podem apresentar inúmeras vantagens e eficiências, também podem ser instrumentos para burlar ou afastar, ainda que não intencionalmente, legislações protetivas de direitos difusos e direitos de terceiros, ainda mais quando estes são vulneráveis. Está aí a raiz principal do problema relacionado à regulamentação desses novos negócios.
No caso do Uber, a primeira preocupação é assegurar que a terceirização não esteja mascarando relações de emprego, especialmente porque é o Uber que precifica o serviço e recebe a remuneração. Aliás, discussões similares vêm sendo hoje travadas nos Estados Unidos, muitas delas com a participação do National Labour Relations Board(NLRB). Foi extremamente noticiada pela imprensa internacional decisão de uma corte federal do Estado do Oregon que, no ano passado, concluiu que a FedEx controlava tão intensamente as condições de trabalho dos seus caminhoneiros que eles seriam, na verdade, seus empregados e não propriamente contratantes autônomos.
Por essa razão, causa preocupação que o atual Projeto de Lei 530/2015 tenha admitido, de forma apriorística, que os motoristas de serviços como o Uber sejam considerados empreendedores – “motoristas parceiros” – e que os chamados Provedores de Redes de Compartilhamento (PRCs) não sejam qualificados como empresas prestadoras de serviços de transporte, mas sim como meros agentes que organizam e operam o contato entre ofertantes e demandantes de compartilhamento.
Além dos desdobramentos trabalhistas, resta a preocupação de se saber em que medida esses novos agentes, como o Uber, respondem pelos danos que os “motoristas parceiros” podem causar aos consumidores e a terceiros, ainda mais considerando que a ocorrência de acidentes de trânsito faz parte do risco ordinário dos serviços de transporte. O referido projeto de lei, mais uma vez, causa preocupação, pois não endereça essa questão. Não é sem razão que os jornais noticiaram recentemente que o Senador Reguffe iria apresentar emendas ao projeto, dentre as quais uma que veicularia regra de responsabilidade solidária dos PRCs por danos causados pelos motoristas a consumidores e a terceiros.
A missão do Congresso Nacional em regulamentar a matéria não é fácil porque, quando se está diante de relações de mercado extremamente inovadoras, dinâmicas e plásticas, é muito difícil querer regulá-las por soluções rígidas e apriorísticas. A ausência de maleabilidade da regulação jurídica – seja para afastar a responsabilidade dos PRCs, seja para prevê-la de forma incondicional – tanto pode levar ao pecado pela falta como pelo excesso.
O verdadeiro desafio da regulação jurídica é encontrar uma alternativa que se adapte à realidade de fato de cada empreendimento, conciliando o fomento à inovação e a proteção do investimento com a proteção do consumidor, dos trabalhadores e dos demais valores e interesses resguardados pela ordem econômica constitucional.
Autora: Ana Frazão é advogada, doutora em Direito Comercial e professora de Direito Civil e Comercial na Universidade de Brasília.