Fabio Alonso Vieira, Mario Malato*
Ao ponderar sobre a conveniência de realizar um certo negócio, as pessoas levam em conta todos os fatores econômicos envolvidos, buscando trazer para si as maiores vantagens possíveis. Um dos fatores em que, fatalmente, se irá esbarrar, às vezes dos mais importantes, é o da tributação envolvida na realização de tal negócio.
Assim como se ponderam preço, condições de pagamento, garantias, etc., pondera-se a forma de realizar o negócio, de maneira a minimizar os efeitos da tributação sobre o mesmo. Nada mais natural.
De uma certa forma, na condução dos negócios de Estado, o Governo até estimula esta prática quando, para implementar planos de desenvolvimento setorial ou regional, acena com incentivos fiscais. Mantém-se a questão no âmbito da legalidade na busca da forma tributariamente menos onerosa e se analisa as formas legais que gerem a menor carga de impostos possível.
Esta atitude esteve amparada pelo princípio da estrita legalidade e pelo respeito aos efeitos do ato jurídico perfeito, que caracterizaram nosso contexto legal, até o advento da Lei Complementar 104, em 10.01.01.
A Lei Complementar 104
Ao acrescentar o parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), a LC 104 introduz, para fins tributários, a possibilidade da interpretação subjetiva de atos jurídicos, por parte da autoridade administrativa. Agora, não basta mais a atinência à Lei; questiona-se se determinado ato jurídico, não gerador de tributos, não estaria sendo praticado em lugar de outro, gerador de tributos.
O fundamento deste novo conceito se encontra no Código Tributário Alemão, o qual se refere ao “abuso de forma jurídica” dizendo que “A lei tributária não pode ser fraudada através do abuso de formas jurídicas. Sempre que ocorrer abuso, a pretensão do imposto surgirá como se para os fenômenos econômicos tivesse sido adotada a forma jurídica adequada”. Contudo, o legislador não foi feliz ao trazer este conceito para o CTN.
O referido parágrafo único fala em “desconsideração” de atos jurídicos quando “praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo”. Isto nos leva a duas questões:
1- que um ato jurídico pode, ao mesmo tempo, ter efeitos civis mas não tributários.
2- que o ato jurídico pode dissimular um fato gerador de tributos.
Por ocorrência de vício, o ato jurídico perfeito poderá ser considerado apenas como nulo ou anulável. O novo conceito alude a um ato jurídico que é válido para certos efeitos e não para outros. Estaria sendo introduzido na legalidade um novo conceito de vício que afetaria parcialmente a validade de um ato jurídico? É de se perguntar se este novo conceito seria acolhido pelo contexto jurídico brasileiro.
Segundo o Dicionário Aurélio, “dissimular” está para “ocultar com astúcia; encobrir, fingir; disfarçar; atenuar”;
Dispondo-se, então, de duas formas legais para realizar um negócio jurídico, A e B, optando-se pela forma A não se estará dissimulando a forma B. Houve apenas uma opção pela alternativa mais conveniente, entre duas possibilidades.
Além disso, para que se cogite a sua “desconsideração”, é preciso que o ato jurídico seja praticado “com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador”. O ato jurídico em mira não é praticado com este objetivo, mas sim com finalidade negocial, mesmo se de forma a elidir o fato gerador, o que é outra ordem de idéias.
A Medida Provisória 66
A vigência da LC 104 ficou condicionada a “procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.
Em 29.08.02 foi assinada a MP 66 que, em seus artigos 13º a 19º, pretende fixar tais “procedimentos”. A MP, contudo, apesar de ter valor equivalente, não é lei ordinária. O que pode ocorrer se o Congresso a aprovar. Portanto, entender-se-ia que a vigência do parágrafo único do artigo 116 do CTN só se iniciaria com a aprovação do Congresso.
Os artigos da MP 66 que pretendem interpretar o disposto no referido parágrafo único são o 13º e o 14º. Os demais estabelecem os procedimentos administrativos a serem observados no processo de “desconsideração”, os quais não iremos aqui considerar.
O artigo 13º volta a se referir à “dissimulação”, tal como feito pela LC 104, tendo, entretanto, o cuidado de excluir expressamente os casos de “dolo, fraude ou simulação”, sem qualquer outra consideração relevante.
No artigo 14º é abordado o ato jurídico passível de desconsideração, caracterizando-o como aquele que vise “a reduzir o valor do tributo, a evitar ou a postergar o seu pagamento”.
Vê-se que a MP 66 não se preocupa apenas com a dissimulação do fato gerador mas também com a redução, evitação ou postergação do tributo por um fato gerador não dissimulado, extrapolando o alcance da LC 104.
O parágrafo primeiro do artigo 14º diz que “para a desconsideração do ato jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:
I – falta de propósito negocial; ou
II – abuso de forma.”
Primeiramente, cabe perguntar: a que “outras” ocorrências se faz referência? Não se pode conceber uma alusão tão vaga numa questão tão relevante.
O parágrafo segundo do mesmo artigo conceitua a “falta de propósito negocial” como sendo “a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa”.
A questão da complexidade é variável em conformidade com a experiência de quem pratica o ato jurídico. Um agente fiscal poderá considerar complexa uma forma que para um advogado é corriqueira. Além disso, como optar por uma forma mais onerosa quando o que se busca é justamente a economia, mesmo que também de impostos?
O parágrafo terceiro, finalmente, conceitua o “abuso de forma” como a “prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado”.
É apenas neste ponto que os argumentos adquirem maior clareza uma vez que se alude agora aos efeitos do ato jurídico, ou seja, o seu resultado econômico.
Apesar de recorrer a novos conceitos discutíveis (negócio jurídico indireto) e novamente referir-se a “dissimulação”, o parágrafo terceiro pondera que, para se alcançar determinado resultado econômico, possa haver mais de uma forma: uma mais onerosa que outra, do ponto de vista tributário. Desta maneira, optar pela forma menos onerosa levaria à desconsideração do ato jurídico, em favor da forma mais onerosa.
Conclusão
O objetivo da LC 104 e da MP 66 é claro: inviabilizar o planejamento tributário. O que se conseguiu, entretanto, foi apenas tornar o planejamento tributário uma atividade mais rebuscada, requerendo maior apuro legal.
Prevalece o lapidar pronunciamento do judiciário britânico, em 1936: “Cada homem tem o direito de organizar seus assuntos, se for possível, de tal modo que o imposto incidente, em conformidade com as respectivas leis, seja menor do que seria de outra forma. Se ele conseguir ajustar assim os assuntos para obter esse resultado, aí não poderá ser compelido a pagar imposto maior, mesmo se a capacidade inventiva não agradar nem os comissários da Receita Interna, nem aos colegas contribuintes”.
Revista Consultor Jurídico
Fabio Alonso Vieira é advogado e integra o Departamento Tributário de Noronha-Advogados.
Mario Malato é economista e integra o Departamento Tributário de Noronha-Advogados