Gilson Sidney Amancio de Souza
“Muito importa ao Estado que nenhum cidadão faça mau uso de seus bens” (CÍCERO)
O PODER DE POLÍCIA. Traço característico, ora mais acentuado ora menos visível, mas sempre presente, nas Constituições que organizam os Estados inspirados nos ideais liberais que fomentaram a Revolução Francesa e a Constituição Norte-Americana no Século XVIII, é a preocupação em assegurar com a maior amplitude possível garantias e direitos ao indivíduo em contraposição ao poder estatal.
À época da mencionada Revolução Francesa, que foi a inspiradora e a gênese do Estado Liberal, a idéia dominante era de que o poder público — que até então era aquele emanado e alicerçado no Estado absolutista — era inimigo da liberdade individual.
Àquela época, consoante lição de DALMO DE ABREU DALLARI, “a burguesia enriquecida, que já dispunha do poder econômico, preconizava a intervenção mínima do Estado na vida social, considerando a liberdade contratual um direito natural dos indivíduos. Sob influência do jusnaturalismo, outros direitos naturais foram sendo proclamados, sobretudo no âmbito econômico, como a propriedade, visando a impedir qualquer interferência do Estado no sentido de criar algum condicionamento à manutenção e ao uso dos bens…” .
Mas, se o Estado Liberal propiciou, por um lado, muitos benefícios, despertando a consciência da importância da liberdade individual e da iniciativa privada, por outro, paralelamente, fomentou um comportamento exageradamente egoísta, contrário à própria natureza social do ser humano, e deixou desprotegidos da tutela estatal a maioria desprovida de poder econômico.
Tal situação, associada à Revolução Industrial, que provocou o crescimento dos centros urbanos, onde se estabeleciam as fábricas, criou um ambiente próprio para o nascimento, no início do Século XIX, do coletivismo, em reação aos exageros das concepções individualistas do liberalismo, que tornou inevitável o crescimento gradual da intervenção do Estado na vida privada, na medida em que mais se fazia necessário controlar o uso de bens particulares e o exercício de atividades privadas para corrigir seu uso anti-social e atribuir-lhes perfil mais consentâneo com o interesse geral.
Supremacia do Interesse Público. O fundamento primeiro dessa possibilidade de atuação estatal no campo privado é a desigualdade jurídica que existe entre o Estado, detentor e exercente do poder, embasado no pressuposto de que sua atuação é direcionada no sentido do bem geral, e o indivíduo.
Devendo, de regra, prevalecer o interesse coletivo sobre o particular, essa desigualdade jurídica decorrente implica na supremacia do interesse público sobre o interesse individual. “De fato, seria inconcebível que à luz da defesa dos interesses individuais comuns se pudesse prejudicar a realização dos fins coletivos, tendo em vista a satisfação de interesses meramente isolados” , de modo que a grande preocupação do Estado democrático de Direito deve ser a conciliação das prerrogativas e garantias fundamentais do indivíduo com os privilégios do poder público embasados na premissa de que a Administração tem por escopo a satisfação do bem comum.
Por isso, a supremacia do interesse público é princípio que, embora seja um dos principais esteios da atuação estatal, não pode dar ensejo a privilégios injustificáveis em favor do Estado. Deve encontrar limites na medida do que for necessário e suficiente para assegurar o interesse coletivo com o mínimo de prejuízo para as prerrogativas individuais, isto é, aquilo que se fizer absolutamente indispensável para atingir os fins coletivos mediante o menor custo possível para o cidadão , pena de tornar-se instrumento de tirania.
Embasado nessa desigualdade jurídica que o coloca, na defesa do bem comum, em patamar acima do indivíduo, o Estado exerce um poder imperativo de restrição e condicionamento da propriedade e das atividades individuais para adequá-las aos interesses sociais.
Esse poder imperativo é o que a doutrina chama “Poder de Polícia”, denominação originada no Direito Norte Americano (“police power”), utilizada pela primeira vez em 1827 em voto do juiz John Marshall da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.
Em seu sentido mais abrangente, como preleciona COOLEY, o “police power” é “um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado busca não só preservar a ordem pública, senão também estabelecer para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem necessárias para evitar conflito de direitos e para garantir a cada um o gozo ininterrupto de seu próprio direito, até onde for razoavelmente compatível com o direito dos demais”.
Assim, conforme preleciona CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO , o conceito de poder de polícia pode ser tomado num sentido amplo, em que inclui toda atividade estatal destinada a condicionar a liberdade e a propriedade para ajustá-las ao interesse coletivo, aí incluída a atuação legislativa, na produção do próprio ordenamento jurídico; e num sentido estrito, significando a própria atividade de polícia administrativa, revelada na edição de atos concretos de polícia, aí restrito ao âmbito dos órgãos do Poder Executivo.
Nesse sentido mais restrito, a doutrina nacional tem concebido o poder de polícia administrativa como “a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado” ; ou, na sintética definição de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “a faculdade discricionária da Administração de limitar, dentro da lei, as liberdades individuais em prol do interesse coletivo”.
Portanto, o poder de polícia administrativa é, em suma, o mecanismo posto pela lei à disposição dos órgãos competentes da Administração para conter e condicionar a fruição da propriedade particular ou o exercício de direitos privados visando coibir eventuais abusos nocivos ao interesse geral.
Atuação e Limitações. Do que foi exposto, pode-se inferir que, sendo instrumento de proteção do bem comum diante do exercício de direitos individuais, o poder de polícia tem propósito de prevenção e, por isso, atua de forma preponderantemente preventiva, impondo limitações (ex: exigindo licença prévia para construir ou para exercer determinada atividade; condicionando o funcionamento de estabelecimento ou o uso de área urbana, etc), embora também se exerça repressivamente (apreensão de mercadorias, interdição de atividades, imposição de multas, etc).
E, como o próprio princípio que lhe dá fundamento — a supremacia do interesse público — encontra limitações e condicionamentos nos direitos e garantias assegurados aos indivíduos, também o exercício do poder de polícia há de ser realizado nos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Daí, por exemplo, é que a Administração não pode negar alvará de licença para construir quando o interessado satisfaz todas as exigências da lei; nem pode o Poder Público impor multa sem prévio procedimento administrativo em que se garanta o direito à defesa e ao contraditório, etc.
Assim, além das limitações pertinentes à competência, forma e finalidade, que se referem a todo ato administrativo, seja ou não decorrente do poder de polícia, este deve ainda gizar-se por limites de necessidade e proporcionalidade.
Portanto, além da necessidade de ser praticado por agente dotado por lei de atribuições para editá-lo; de revestir-se da forma prescrita em lei, com obediência às solenidades que esta lhe exige; e de orientar-se sempre no sentido da satisfação do interesse público, o ato de polícia administrativa deve alicerçar-se invariavelmente em razões de necessidade e de proporcionalidade: como instrumento que é, só se justifica sua adoção quando necessário para afastar efetiva lesão ou séria ameaça de lesão do interesse coletivo; além disso, deve guardar relação de proporcionalidade com a ofensa ao interesse geral. É necessário que exista uma correlação de intensidade entre o ato administrativo e o fim específico por ele visado. Como ato restritivo de direito individual que é, o poder de polícia não pode ser desproporcionado, extrapolar o estreito limite do que é suficiente para atender satisfatoriamente ao interesse geral. Assim, por exemplo, se é necessária, como medida de segurança da saúde pública, a apreensão de uma mercadoria deteriorada, não guardará essa relação de proporcionalidade a apreensão também de outras mercadorias do mesmo estabelecimento, que não estejam na mesma condição imprópria. Se basta, v.g., à servidão administrativa, reservar uma faixa de 50 metros sobre a propriedade particular, faltará proporcionalidade ao ato de poder de polícia que estabelecer uma largura de 60 ou 70 metros para essa faixa.
O Poder de Polícia e a Propriedade Privada. Como dito alhures, o Estado que se seguiu à Revolução Francesa, orientado ainda pelo sentimento de repulsa ao feudalismo, privilegiava o indivíduo e seus direitos, dentre os quais o de propriedade, então concebido como um direito absoluto que decorria de uma relação imediata, exclusiva e absoluta entre o homem (proprietário) e a coisa (propriedade).
Como escreveu MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “a preocupação em assegurar a liberdade individual e a igualdade dos homens e a reação ao regime feudal levaram a uma concepção individualista exagerada da propriedade, caracterizada como direito absoluto, exclusivo e perpétuo, não se admitindo, inicialmente, outras restrições, senão as decorrentes das normas sobre vizinhança…” .
Transposta, entretanto, aquela fase inicial do Estado liberal, com o crescimento gradual da necessidade de uma atuação intervencionista do Poder Público nas atividades particulares, foi-se ampliando o campo e as formas de ingerência estatal na propriedade que, ao tempo em que via esmaecer seu perfil individualista reforçava seu contorno social.
Aquela concepção individualista não poderia mesmo resistir às imposições das profundas alterações que sofreu o perfil da sociedade na evolução histórica da humanidade após a Revolução Industrial.
Inevitável, portanto, que o Estado, detentor do chamado domínio eminente, traço da própria soberania estatal que põe sob seu poder tudo quanto esteja no território do Estado, e que se exerce, em relação aos bens particulares, por intermédio do poder de polícia, estribado na supremacia do interesse público, recrudescesse as limitações ao exercício do direito de propriedade.
Cabe distinguir entre as limitações ou restrições de caráter privado, embasadas no Direito Privado, e aquelas decorrentes da imperiosa necessidade de atender ao interesse geral, reguladas pelo Direito Público. As primeiras, que são as mais antigas, referem-se às relações interpessoais e podem ser exemplificadas com a servidão de passagem; as limitações de caráter público têm finalidade pública (ordenamento urbanístico; salubridade; segurança, etc) e nasceram como resultado do paulatino “alargamento das obrigações do proprietário em relação à vizinhança que abrange daí em diante todos os membros do corpo social.”
As restrições à propriedade podem, ainda, ser voluntárias, como o usufruto, que decorrem da vontade do proprietário, ou obrigatórias, impostas pelo Poder Público, com base em seu poder de império e no exercício do poder de polícia, e que são as que nos interessam de perto.
Essas restrições impostas por ato de polícia administrativa podem servir tanto à satisfação do interesse público quanto do interesse privado.
Assim, embora impostas pelo Estado, por meio de lei, as normas atinentes ao direito de vizinhança e que obrigam os proprietários de imóveis confinantes dizem respeito, de modo direto e imediato, aos particulares, donos dos prédios vizinhos, mas, por via reflexa e mediata, constituem também interesse geral, na medida em que propiciam a harmoniosa convivência social. Já as limitações impostas para atendimento imediato do interesse público não levam em conta as relações recíprocas entre os proprietários, e sim estes frente à Administração, que não se pode ver coarctada em suas atividades de interesse social por força do direito de propriedade exercido de forma absoluta.
Vale lembrar que as intervenções do Estado na propriedade, tanto quando visam regular as relações recíprocas entre os proprietários — chamadas por Bielsa de “limitações em interesse privado” — como quando têm por objetivo condicionar o exercício do direito de propriedade diante do Poder Público, são atos de polícia e têm embasamento no princípio da supremacia do coletivo sobre o individual.
Embasamento constitucional. A vigente Constituição da República, ao tempo em que assegura o direito de propriedade, condiciona-o a uma função social, ou seja, atribui-lhe uma significação pública, vincula-o a objetivos de justiça social. Em vários de seus dispositivos pode-se constatar que a Carta busca condicionar o exercício do direito de propriedade no sentido de torná-lo fonte de benefícios à coletividade.
Já no art. 5, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição estabelece, logo após garantir o direito de propriedade (inc. XXII), o princípio: a propriedade atenderá a sua função social (inc. XXIII). Tal princípio é reiterado no capítulo que trata da atividade econômica (art. 170, inc. III).
Daí se pode extrair que, ao tempo em que garante o direito, a Carta o condiciona de tal forma que essa garantia também está condicionada à adequada destinação da propriedade; ou seja, a Constituição assegura o direito de propriedade com a condição de que tal direito seja exercido no sentido de destinar a propriedade à sua função social.
Diante do que dispõem os incisos XXII e XXIII da C. R., “não há como escapar ao sentido de que só garante o direito da propriedade que atenda sua função social”. O que, aliás, é confirmado por outros dispositivos constitucionais, que permitem a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social (art. 5, inc. XXIV); a desapropriação de imóvel urbano por aproveitamento inadequado nos termos do plano diretor (art. 182, § 4, inc. III); a desapropriação, pela União, para fins de reforma agrária, de área rural que não cumpra sua função social (art. 184); a expropriação de glebas utilizadas para cultivo de drogas (art. 243); que protege da desapropriação para reforma agrária a propriedade produtiva (art. 185, inc. II), etc.
O texto constitucional, portanto, alicerça e legitima o condicionamento do direito de propriedade, permitindo expressamente intervenções do Poder Público na propriedade privada quando o reclamar o interesse coletivo (art. 5, inc. XXV; 182, § 4, inc. I, etc) e possibilitando a normatização infraconstitucional de atuação da Administração para restringir e adequar a propriedade privada ao interesse geral.
É com base nessa premissa, pois, que se deve orientar toda a interpretação e aplicação das normas constitucionais — e infraconstitucionais, pena de incompatibilidade vertical com a Lei Maior — pertinentes à regulamentação do direito de propriedade.
Limitações e Restrições ao Direito de Propriedade. Distinção. Viu-se que o condicionamento e as intervenções do Poder Público na propriedade privada, por ato de polícia, podem se dar de diversas formas e para várias finalidades (política urbana; proteção ao meio ambiente; razões urgentes de segurança; redistribuição da terra; proteção à saúde pública, etc) desde que todas tenham o traço comum do interesse público.
Há autores que agrupam essas modalidades de atuação do poder de polícia em limitações e restrições, distinguindo-as de modo a atribuir à limitação um sentido mais abrangente e à restrição um sentido mais estreito.
Para SÉRGIO DE ANDRÉA FERREIRA, é nítida a distinção entre limitação e restrição: a primeira representa diminuição do conteúdo do direito e resulta de ato materialmente legislativo, com as características próprias dos diplomas normativos, enquanto a restrição apenas reduz o exercício do direito, não seu conteúdo, e deriva de atos concretos de execução do direito .
Tal distinção corresponde à diferenciação de CELSO A. BANDEIRA DE MELLO, já mencionada, entre as concepções de poder de polícia em sentido amplo, incluindo a atividade legiferante do Estado, e em sentido estrito, manifestada por atos concretos de polícia administrativa.
Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, limitações constituem gênero, significando tudo que afete qualquer das características (absoluto, exclusivo e perpétuo) do direito de propriedade; gênero do qual emergem como espécie as restrições, que atingem o caráter absoluto do direito de propriedade, diminuindo o direito do proprietário de usar e dispor da coisa como melhor lhe aprouver, ao lado das servidões, que afetam o caráter de exclusividade da propriedade, e da desapropriação, que lhe atingem o caráter de perpetuidade . É exatamente o mesmo o pensamento de RAFAEL BIELSA .
Na maioria da doutrina brasileira, entretanto, não é empregada com freqüência tal distinção, e a palavra limitação é mais comumente usada no sentido de limitação administrativa, como instituto que se caracteriza, em regra, por uma obrigação de não fazer, imposta pelo Poder Público de forma geral, unilateral e gratuita, como condição do uso da propriedade privada, para distingui-lo de outras restrições públicas ao direito de propriedade, como a servidão administrativa, a ocupação temporária, a requisição administrativa, etc.
Pode-se concluir, portanto, que na doutrina administrativista brasileira pertinente aos temas poder de polícia e propriedade privada, encontram-se duas acepções para o termo limitação: uma ampla, com sentido genérico, querendo abranger toda e qualquer medida estatal que anele arrefecer o exercício do direito de propriedade; outra específica, mais comumente empregada, com o significado de limitação administrativa como espécie de restrição que se revela numa imposição estatal genérica, impessoal, gratuita, via de regra de abster-se de alguma coisa, visando a adequação da fruição do direito de propriedade ao bem estar social.
Formas de intervenção da Polícia Administrativa na propriedade. Diversas são as modalidades de ingerências da Administração no direito de propriedade, com fundamento no poder de polícia, cada qual com características próprias e contornos peculiares, consoante seus motivos, finalidades e espécie de interesse público que se quer tutelar.
Algumas delas, por serem mais freqüentes e de maior interesse prático, relacionamos adiante.
— Limitação Administrativa: Em sentido estrito, como dito acima, é espécie de ingerência administrativa, imposta imperativa e unilateralmente com base no poder de polícia, não indenizável, que atinge o direito absoluto de uso da propriedade, impondo aos proprietários, genericamente, obrigação (via de regra de não fazer) visando condicionar o exercício do direito de propriedade ao interesse geral.
Na lição de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, as limitações administrativas são dirigidas genérica e abstratamente a propriedades indeterminadas, para satisfazer interesses coletivos abstratamente considerados, que podem referir-se à segurança, à saúde, à estética, ou a qualquer outro fim em que o interesse coletivo deva sobrepor-se ao particular . Em decorrência desse caráter abstrato e genérico é que a limitação, por não ser individualizado e determinável seu destinatário, não é indenizável. O sacrifício limitatório é imposto a todos, e todos, na mesma medida, dele se beneficiam, eis o fundamento maior da gratuidade.
São exemplos de limitações administrativas a proibição de comércio de bebidas alcoólicas à margem de rodovias; a obrigação de observar recuo da via pública para construir; a de observar altura máxima do prédio em determinada zona urbana, etc.
Geralmente, as imposições decorrentes das limitações implicam em obrigação de abstenção. Entretanto, não raro a limitação administrativa revela-se numa obrigação positiva, de fazer, ou, às vezes, em suportar que se faça; como nos casos da exigência de manter extintor de incêndio nos veículos e de submeter-se o comerciante à vistoria de fiscais da saúde, respectivamente.
— Servidão Administrativa: É ingerência distinta da limitação porque incide sobre o traço de exclusividade do direito de propriedade, não sobre seu caráter de direito absoluto. A servidão administrativa representa constituição de direito real de uso e gozo, em favor do poder público ou da sociedade, paralelo ao direito do proprietário, que deixa de ter exclusividade de poderes sobre a coisa, diversamente da limitação, em que a propriedade não é atingida em seu caráter de exclusividade e o proprietário não divide com o poder público ou terceiros seus poderes sobre a coisa .
Na servidão administrativa, como na de direito privado, identifica-se sempre a coisa serviente, que é o imóvel gravado com a servidão, e a coisa dominante.
Muitas, entretanto, são suas diferenças. A começar pela principal, que é a finalidade, já que a servidão administrativa é instituída por razões de interesse público e a servidão civil é instituída “uti singuli”. Assim, mesmo que o ente público seja, eventualmente, o titular da servidão sobre prédio alheio, isso não basta, por si, para caracterizar como pública a servidão, já que o Estado pode ser titular de servidão de direito privado, quando a finalidade da instituição do direito real sobre o imóvel alheio visa atender não a um interesse de ordem pública, mas contornar deficiências do prédio público dominante.
A coisa dominante, na servidão civil, é sempre um imóvel; entretanto, a servidão administrativa não é necessariamente predial: também um serviço público ou um bem destinado a fins de utilidade pública podem ser a coisa dominante. Assim, v. g., a servidão administrativa que grava o imóvel serviente pode destinar-se ao serviço de distribuição de energia elétrica (Cód. Águas, art. 151), à passagem de aqueduto para aproveitamento das águas, no interesse público, à segurança dos serviços aeroportuários, etc.
Questão que emerge tem pertinência quanto ao cabimento de indenização pela instituição da servidão administrativa.
Por ter natureza distinta da limitação administrativa, que é imposta genérica e abstratamente, a servidão pública, que grava imóvel determinado, pode ser indenizável.
Entretanto, como o direito não abriga o enriquecimento sem causa, parece-nos correto o entendimento de que o cabimento da indenização fica condicionado à efetiva lesão patrimonial decorrente da servidão. Daí se conclui que, “se não houver redução da utilidade econômica do imóvel, por força da servidão, nada haverá a indenizar e a teremos como variedade gratuita”.
— O Tombamento: Embasada no art. 216, § 1, da C. F., essa espécie de intervenção pública na propriedade é tida, por alguns, como verdadeira modalidade de servidão administrativa, ou, como a ele se refere DIÓGENES GASPARINI, “servidão administrativa dotada de nome próprio” ; entretanto, é possível distinguir nesse instituto contornos próprios que o tornam espécie distinta da servidão. A começar pelo fato de que, enquanto a servidão grava sempre um imóvel, e institui em relação a este um direito real de uso, o tombamento pode incidir tanto sobre imóveis como sobre coisas móveis, e não corporifica direito de uso, mas imposição de preservação e condicionamento do uso e fruição pelo próprio dono da coisa.
O tombamento é uma restrição parcial, na medida em que a coisa tombada continua sob domínio e posse do particular, que pode até aliená-lo, mas sua utilização fica, agora, condicionada de modo a assegurar-lhe proteção em razão do interesse público em preservar seu valor estético, histórico ou cultural.
Daí decorre que só será indenizável se, efetivamente, as restrições implicarem redução de sua utilidade econômica para o proprietário. E, se for de tal intensidade a restrição que impeça ao proprietário o exercício de quaisquer direitos inerentes ao domínio, configurará verdadeira desapropriação indireta, gerando o direito à indenização integral do valor do bem tombado.
Relevante ressaltar que o ato de tombamento, que é unilateralmente imposto pela Administração — embora possa haver provocação voluntária do proprietário — tem duplo conteúdo: declaratório, porque reconhece na coisa relevante valor histórico, estético ou cultural; e constitutivo, porque situa o bem tombado sob regime jurídico especial.
— A Desapropriação: É a mais intensa e grave forma de intervenção estatal na propriedade particular, porque implica a própria perda compulsória da propriedade em favor do Poder Público. É, no dizer de HELY LOPES MEIRELLES, a “mais drástica das formas de manifestação do poder de império, ou seja, da soberania interna do Estado no exercício de seu domínio eminente sobre todos os bens existentes no território nacional” .
A desapropriação atinge o caráter de perpetuidade do direito de propriedade e, por ser compulsória e unilateral (o que o expropriado pode discutir é o valor da indenização ou a legitimidade do ato declaratório de utilidade ou necessidade pública, ou nulidades eventuais no procedimento que o sucede), é forma originária de aquisição da propriedade pelo Estado: não há quem transmita o domínio à Administração. Esta adquire-lhe o domínio como se a coisa nunca houvesse pertencido a alguém, como preleciona DIÓGENES GASPARINI, fazendo remição a CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO .
Como a Constituição Federal assegura o direito de propriedade, e a desapropriação, em última análise, extingue tal direito, a própria Constituição é quem estabelece as regras fundamentais permissivas da desapropriação.
A “paramount law” restringe a possibilidade de o poder público desapropriar, estabelecendo como seus pressupostos obrigatórios a necessidade pública; a utilidade pública e o interesse social, e requisitos indispensáveis um procedimento definido em lei e prévia e justa indenização, que deve ser, em regra, em dinheiro (art. 5, XXIV) ou, excepcionalmente, em títulos da dívida pública ou da dívida agrária (arts. 182 e 184).
Ao lado da desapropriação, sempre indenizável, a Carta Magna prevê também o instituto da expropriação, equivalente ao confisco, na hipótese de seu art. 243, que prevê a extinção do direito de propriedade, sem qualquer indenização, sobre as glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas.
Assim, embora a doutrina pátria tradicionalmente tenha empregado como sinônimos os termos desapropriação e expropriação, este último, por força da distinção feita em nível constitucional, estará melhor adequado se reservado àquela hipótese não indenizável de perda do domínio.
Podem-se relacionar, portanto, resumidamente, as hipóteses em que o Poder Público pode, alicerçado em sua supremacia sobre o interesse privado, retirar do particular o domínio sobre a coisa:
a) quando houver necessidade pública: necessidade significa premência. Haverá necessidade pública quando o interesse coletivo só puder ser atendido com a transferência do bem particular para o patrimônio público. São os casos em que é indispensável, para a solução de um determinado problema enfrentado pela Administração, a desapropriação da coisa;
b) por razões de utilidade pública: aqui já não é indispensável a desapropriação; a transferência da coisa ao domínio público já não é a única, mas a melhor solução, consoante critérios de conveniência administrativa. Estão presentes razões de utilidade pública, no dizer de SEABRA FAGUNDES, sempre que “a utilização da propriedade é conveniente e vantajosa ao interesse público, mas não constitui um imperativo irremovível” . ;
c) por interesse social, nas hipóteses de necessidade ou conveniência de atender a determinado grupo ou camada social, no propósito de arrefecer as desigualdades e promover maior justiça social, finalidade consentânea com os objetivos fundamentais da República, estabelecidos no art. 3, inc. I, da Constituição.
Assim, estará fincada em motivos de interesse social, por exemplo, a desapropriação de área urbana para construção de casas populares. Caso típico e tratado especificamente na C. F. de desapropriação por razões de interesse social é aquela que a União está autorizada a promover, das propriedades rurais improdutivas, para fins de reforma agrária (art. 184 e seguintes da C. F.), e que, por decorrer da destinação desviada da função social, é denominada desapropriação sanção, à semelhança daquela permitida no art. 182, § 4, da Carta, incidente sobre imóvel urbano a que o proprietário não dá adequado aproveitamento consoante as metas de interesse coletivo fixadas no plano diretor da cidade. Tais desapropriações sanções, que têm fundamento no interesse social e na utilidade pública, respectivamente, representam exceções à obrigatoriedade da indenização prévia em dinheiro, porquanto podem ser pagas com títulos resgatáveis em dez ou vinte anos.
d) expropriação de glebas onde se encontrem cultivos ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243 da C. F.). Visando o interesse público evidente no combate ao nefasto comércio ilícito de entorpecentes, a Carta instituiu a expropriação de áreas de cultivo de espécies vegetais que possam ser utilizadas na produção ou elaboração de drogas. É verdadeiro confisco, porque não é indenizável, e o procedimento para sua efetivação é regulado na Lei 8.257/91.
Cuida-se de caso de extinção do domínio particular por necessidade pública, diante da premência de se erradicar a difusão do uso de drogas.
Outras modalidades de intervenção estatal, além das aqui comentadas, podem ser arroladas, como a ocupação temporária, a requisição administrativa, a destruição coativa de coisas, etc. que, para não estender desnecessariamente o trabalho, abstemo-nos de comentar.
Conclusão. Com as transformações sociais e econômicas que se iniciaram no Século XVIII e ganharam corpo no Século XIX, fomentadas principalmente pela Revolução Industrial, tornou-se imperiosa a mudança do perfil do Estado para, afastando-se das concepções do Liberalismo, torná-lo mais intervencionista.
Fundado na desigualdade jurídica entre a Administração e o particular que decorre da supremacia do interesse coletivo sobre o particular, o Estado faz ingerências nas atividades e nos bens individuais, condicionando-as de modo a que satisfaçam o interesse geral, valendo-se de seu poder de polícia.
As intervenções na propriedade privada, mais especificamente, fazem-se pela ampliação do exercício do domínio eminente do Estado sobre os bens particulares, que, revelando-se no poder de polícia, permite diversas modalidades de ingerência estatal no domínio privado.
No Brasil, a Constituição vigente assegura o direito de propriedade e condiciona seu exercício à destinação social do bem particular. Assim, a intervenção estatal, que é escalonada de acordo com parâmetros de necessidade e proporcionalidade deve buscar o equilíbrio entre os direitos individuais assegurados na Carta e o exercício do poder de polícia administrativa.
Respeitadas as garantias legais, por vários modos pode o Poder Público intervir na propriedade, com maior ou menor intensidade, sendo extremo de sua ingerência a própria extinção do direito de propriedade, com ou sem indenização ao seu titular.
GILSON SIDNEY AMANCIO DE SOUZA
Promotor de Justiça em Pres. Prudente
Professor de Direito Administrativo e
Direito Penal na Faculdade de Direito da
Instituição Toledo de Ensino – Pres.
Prudente
Professor de Direito Processual Penal na
UNOESTE – Univ. Oeste Paulista