Polícia Federal: autonomia ou independência?

A atuação da Polícia Federal é objeto freqüente da cobertura da mídia no Brasil. Muito se discute sobre o seu papel e a eficácia de suas ações. O ponto nevrálgico da discussão é a relação entre essa instituição e o governo quando o que está em pauta é a investigação de crimes cometidos pelo Poder Executivo. Considerando que a Polícia Federal é órgão do Poder Executivo, é fácil entender a origem do problema.

A solução adotada no Brasil foi a de se atribuir autonomia à Polícia Federal. E parece haver consenso nesse ponto. Para que a Polícia Federal possa cumprir suas funções, é preciso que goze de autonomia em relação ao Poder Executivo. Mas quais são os limites dessa autonomia?

Se é verdade que a autonomia é condição indispensável para se viabilizar o exercício da função investigativa da Polícia Federal, também é certo que extrapolar o conceito de autonomia alcançando a idéia de independência é inconstitucional.

É preciso sim que a autonomia da Polícia Federal seja reforçada, mas não a ponto de transformá-la em um poder independente, não previsto na Constituição Federal, ou mesmo de permitir que ela usurpe funções típicas da jurisdição, contrariando o princípio constitucional da universalidade da jurisdição.

Para ampliar e reforçar essa autonomia, é preciso que a Polícia Federal se firme e se organize como uma “burocracia estável”. A conformação dessa burocracia estável passaria, por exemplo, pela escolha do delegado geral, que deveria ser feita pelo chefe do Poder Executivo, dentre os membros da corporação, a partir de lista tríplice eleita por votação da totalidade dos integrantes da carreira. Dessa forma haveria um equilíbrio entre as vontades do Poder Executivo e da própria polícia.

Atribuir aos delegados federais —que têm o poder de comando da investigação e a responsabilidade que acompanha esse poder— as mesmas prerrogativas das quais gozam os magistrados, isto é, a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade dos vencimentos, também contribuiria para o processo acima mencionado.

A Polícia Federal não tem que ter orçamento próprio, como se dá com o Ministério Público, nem faz sentido atribuir aos membros da carreira o foro privilegiado, como defendem alguns. Mas, acima de tudo, o que não se admite é que ela tenha por atribuição a realização de função típica da jurisdição.

Nenhuma decisão relacionada ao aprisionamento do cidadão, por exemplo, pode ser atribuída exclusivamente a ela, salvo, é claro, no caso do flagrante, que não é prerrogativa excepcional da polícia, mas sim de qualquer cidadão, com a única diferença de que o policial tem o dever de fazer o flagrante, enquanto o cidadão tem o direito de fazê-lo.

O ato administrativo, que é o ato do delegado, não pode vulnerar a intimidade das pessoas. Qualquer tipo de vulneração desses direitos, garantidos pela Constituição Federal em seu artigo 5º, somente pode ocorrer por ordem judicial, e não por ordem policial. Nesse grupo de direitos estão incluídos, entre outros, a inviolabilidade de correspondência, seja escrita ou eletrônica, e os sigilos telefônico, bancário, fiscal etc.

Atribuir tais poderes à Polícia Federal, dispensando o crivo do Poder Judiciário, além de inconstitucional, seria optar por um modelo de polícia não-republicano, mas sim autoritário. Incompatível, portanto, como o Estado Democrático de Direito, em que a existência do próprio Estado se fundamenta no uso legítimo da violência.

Em contrapartida, a Polícia Federal não pode ser manipulada pelo poder político ocasional. Precisa de mecanismos que a proteja da eventual ingerência produzida pela troca periódica do poder, própria da República. Por isso, precisa de mais autonomia, sem que esta se confunda com independência. Deve ter um conjunto de poderes, mas que não sejam absolutos. A concentração de poder é contraditória aos valores republicanos.

Nunca é demais destacar a importância de se fortalecer as garantias relacionadas aos direitos humanos e dos cidadãos. Com essa preocupação, defendo a idéia de que a Polícia Federal deve estar sujeita ao controle de uma instituição —seja na forma de uma ouvidoria ou mesmo de um conselho— da qual façam parte entidades representativas da sociedade civil e de defesa dos direitos humanos.

Essa instituição —conduzida por pessoa indicada pelo Congresso Nacional, e não pelo chefe do Poder Executivo— deveria ter plenos poderes de correição sobre a conduta policial, sendo competente tanto para aplicar sanções disciplinares menos graves, como para, nos casos extremos, decidir pela demissão do servidor público.

Com esse mecanismo, passaríamos a ter uma polícia diretamente controlada pela sociedade, e não mais pelo governo. Acredito que essa seja a melhor forma de atribuir a devida autonomia à Polícia Federal, contribuindo para que ela alcance seus objetivos institucionais, e, ao mesmo tempo, garantir que a polícia não abuse dos seus poderes.

Para concluir, acredito que promover a discussão sobre os contornos e limites da autonomia da Polícia Federal, seja através de propostas de emendas constitucionais —a exemplo da PEC nº 37, em tramitação no Congresso Nacional—, seja pela discussão pública que se opera na mídia, contribua para o fortalecimento da democracia brasileira. Mas é fundamental que esse diálogo se dê no âmbito de atuação definido pela Constituição Federal. Portanto…

Autonomia, sim. Independência, não.

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Pedro Estevam Serrano é professor de Direito Constitucional da PUC-SP e autor do livro “O Desvio de Poder na Função Legislativa”, editora FTD.

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