Por Camilo Zufelato
“Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa dignidade”, Antônio Candido.
“O livro caindo n’alma / é germe – que faz a palma / é chuva – que faz o mar”, Castro Alves.
Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo: essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo: pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira. João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem. (O Cortiço)
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
– Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e…
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergue-se, rápida, eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas… Não mofes dos meus 15 anos, leitor precoce. Com 17, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos”. (Dom Casmurro)
O que podem ter em comum Bertoleza e Capitu, duas personagens entre as mais significativas da Literatura nacional? Ou mesmo que polêmica de nosso tempo poderá unir Machado de Assis e Aluísio Azevedo, ícones da prosa realista brasileira do fim do século XIX? Poderiam ambas as obras sofrer limitação de público sob acusação de ocasionarem um desvirtuamento na formação do jovem leitor, uma por disseminar o preconceito e a outra por incentivar a libidinagem entre adolescentes?
Se a relação entre Literatura e realidade é visceral, a relação entre Literatura e Direito também é, embora o atual ensino jurídico predominantemente tecnicista e acrítico tem descurado das bases humanísticas desta ciência. São incontestáveis os aportes culturais que a Literatura traz para toda a sociedade e especialmente para a formação do operador do Direito.
Nos últimos meses, dois atos inusitados, um em âmbito administrativo e outro em âmbito judicial, têm gerado muita polêmica no país: o primeiro foi a recomendação, oriunda do Conselho Nacional de Educação (CNE), de retirada da obra de Monteiro Lobato das escolas públicas por não “se coadunar com as políticas públicas para uma educação antirracista”. Monteiro Lobato está sendo acusado de incitar o preconceito contra os negros, principalmente a partir da personagem Tia Anastácia, que, dentre outras passagens da obra do autor, é descrita como “uma macaca de carvão”. A obra, lançada nas mãos dos leitores infantis, explodiria como uma bomba disseminadora de preconceito em relação ao negro. O parecer do CNE, embora ainda não tenha sido aprovado pelo MEC, é, independentemente disso e por si só, muito polêmico.
O segundo caso provém de uma decisão liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo de 18 de novembro de 2010, que proibiu a distribuição nas escolas da rede pública estadual paulista da obra, embora recente já clássica, Cem melhores contos brasileiros do século, uma coletânea primorosa de textos curtos, em formato de contos, retratando a evolução artística do gênero nos últimos cem anos, por meio de uma miríade riquíssima de autores, dentre eles Drummond, Mario de Andrade, Luis Fernando Veríssimo, Clarice Lispector, Cony – e curiosamente o próprio Monteiro Lobato, com o texto “Negrinha”, que, com a personagem Tia Anastácia, é a outra figura que revelaria a pena racista e preconceituosa do criador da boneca Emília.
Essa decisão judicial é baseada no fundamento de que a obra coletiva conteria contos com “elevado conteúdo sexual, com descrições de atos obscenos, erotismo e referências a incestos” impróprios para estudantes entre 11 e 17 anos, por isso a proibição de que verbas públicas fossem dirigidas para a aquisição da obra para as escolas estaduais.
Importante salientar que nenhuma das duas decisões proíbe a circulação das obras, mas tão somente desautorizam que o Estado, de forma oficial, adquira tais livros e os coloque à disposição livremente aos seus alunos como uma política estatal de educação, nos âmbitos federal e estadual, respectivamente. As obras, contudo, continuam a ser comercializadas sem restrições, inclusive para os adolescentes que podem pagar por elas, o que, à evidência, é muito distinto de uma censura geral e irrestrita.
Mas a postura estatal não está livre de questionamentos, pelo contrário. Qualquer limitação do acesso à Literatura é, por si só, condenável. Quando a restrição atinge alunos de escolas públicas, que na realidade brasileira são os mais carentes, o problema central dessa limitação não está mais restrito somente ao conteúdo das obras – as quais continuam sendo autorizadas para o público que pode pagar por elas – mas sim de acesso à cultura e lazer – porque Literatura é também (ou sobretudo?) diversão – dos mais carentes de conhecimento.
Antonio Candido, o maior crítico literário brasileiro, defendeu em um escrito o direito à Literatura, sustentando que essa é instrumento de efetivação dos direitos humanos, na medida em que os textos literários servem para a formação da personalidade do leitor, humanizando-o, atuando também como arma no combate contra a desigualdade e a própria violação de direitos humanos. Candido aponta também que num país marcado pela desigualdade de oportunidades como o Brasil a Literatura estaria cindida em níveis de desigualdades: há Literatura para pobres e há Literatura para ricos, entre o popular e o erudito. Em magistral passagem de seu “Direito à Literatura”, Candido faz notar o papel transformador que a Literatura carrega:
Isso faz lembrar que, envolvendo o problema da desigualdade social e econômica, está o problema da intercomunicação dos níveis culturais. Nas sociedades que procuram estabelecer regimes igualitários, o pressuposto é que todos devem ter a possibilidade de passar dos níveis populares para os níveis eruditos como consequência normal da transformação de estrutura, prevendo-se a elevação sensível da capacidade de cada um graças à aquisição cada vez maior de conhecimentos e experiências. Nas sociedades que mantêm a desigualdade como norma, e é o caso da nossa, podem ocorrer movimentos e medidas, de caráter público e privado, para diminuir o abismo entre os níveis e fazer chegar ao povo os produtos eruditos. Mas, repito, tanto num caso quanto no outro está implícita como questão a correlação dos níveis. E aí a experiência mostra que o principal obstáculo pode ser a falta de oportunidade, não a incapacidade.
Privar o estudante/leitor pobre, da rede de ensino público, do acesso a Monteiro Lobato ou aos contos clássicos relacionados no volume com restrições, no qual alguns contos teriam conotação sexual exagerada, é, em última análise, reforçar a linha divisória entre a Literatura para os pobres e a Literatura para os ricos apontada por Antonio Candido, pois as referidas obras, por não sofrerem censura, continuarão a ser comercializadas e acessíveis a quem puder pagar por elas.
As escolhas públicas no que toca às obras literárias, seja a do Tribunal de Justiça de São Paulo, seja a do CNE, contribuem para mascarar ainda mais a ausência de efetivas e reais políticas públicas substanciais na área da educação, medida essa que atingirá com maior força exatamente a classe mais pobre de estudantes.
Com tais medidas, o Estado brasileiro prefere continuar sem enfrentar os problemas sociais retratados nas referidas obras, a partir de uma perspectiva crítica e fundada nos princípios da República Federativa do Brasil, com vistas à promoção de radicais alterações na estrutura social, por meio, sobretudo, da educação e da Literatura.
Em vez de esconder dos jovens leitores a realidade retratada por Monteiro Lobato, por que não fortalecer, por meio de práticas reais, um ensino público voltado para a reconstrução histórica da violação aos direitos dos negros em mais de 500 anos de nação brasileira? Ações afirmativas nesse sentido contribuiriam muito para alcançar esse objetivo.
Ou por que continuar a esconder a sexualidade infantil e juvenil por trás de uma visão conservadora e moralista de família e de escola, em vez de instituir uma política pública de sexualidade para jovens e adolescentes, pautada em parâmetros contemporâneos e problemas brasileiros concretos, como os altos índices de gravidez na adolescência, os inúmeros casos de abuso sexual contra criança e adolescente, em sua maioria cometidos dentro do próprio lar, por familiares, a prática disseminada de abortos, decorrentes de gravidez indesejada, gerando um problema de saúde pública e de disseminação de clínicas clandestinas de aborto, a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis por absoluto desconhecimento dos meios de prevenção, dentre outras mazelas oriundas da falta de orientação sexual dos menores?
Qualquer política pública educacional séria e bem intencionada utilizaria de maneira criativa os recursos da Literatura para explorar a realidade brasileira e tentar subvertê-la, em prol de uma sociedade mais igualitária, garantidora de direitos fundamentais, mais fraterna e especialmente com sentido crítico mais aguçado.
As escolhas feitas pelos agentes públicos estão muito longe de criar um index inquisitorial tal como na Idade Média, proibindo todo e qualquer acesso a certas obras. Menos mal. Nem por isso tais políticas estão livres de sérias críticas. A limitação de leitores atingirá o público mais carente de Literatura, que por falta de recursos econômicos ou mesmo de estímulo teriam na biblioteca da escola pública acesso a verdadeiros clássicos da Literatura nacional. E mais grave: desfoca a priorização das políticas públicas na área da educação, que poderia ser pautada no combate à desigualdade racional e a absoluta ausência de diretrizes para uma educação sexual, voltando a atenção de todos para falsos problemas, perdendo-se a chance de se enfrentar nas escolas públicas, na fase de formação do estudante brasileiro, por meio do incentivo à leitura e da reflexão crítica das crianças e adolescentes, temas cruciais para a construção de um país mais digno.
De uma coisa sem dúvida tem valido essas polêmicas: fizeram ressurgir a genialidade de Monteiro Lobato em obras que acompanharam o desenvolvimento intelectual infantil de praticamente todos aqueles que lêem essas linhas. A Literatura é transformadora da realidade; o Estado e o Direito, tal como vêm sendo construídos em nosso país, são conservadores das mazelas sociais.
Voltemos a Machado de Assis e Aluísio Azevedo. Os trechos transcritos, ambos, coincidentemente de 1900, poderiam ser equiparáveis aos de Lobato ou dos contistas, na medida em que Bertoleza poderia ser acusada de ser personagem filha do preconceito racial, agravada pelo símbolo de mulher submissa e explorada, enquanto a pequena Capitu, desde meninota de 14 anos, poderia ser acusada de apresentar comportamento sexual transviado, o que, aliás, dirão, é facilmente comprovado por seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada – situação que também poderia ser agravada em muito na medida em que incentivaria o surgimento de um perfil de leitora voltado à traição e ao adultério, que atentasse à sagrada instituição da família.
Essas personagens e as obras, que para além de clássicas, seriam ignóbeis segundo a mítica visão purista e “progressista” dos agentes do Estado brasileiro, poderiam desviar o comportamento de muitos leitores – que são incontáveis não somente pelos 110 anos das obras, mas principalmente pelo primor artístico que representam, inclusive frequentando as famosas listas de vestibulares das universidades mais concorridas, potencializando vertiginosamente o número de leitores, quase todos adolescentes – poderiam, a qualquer momento, estar a um passo da restrição de público com base nos mesmos argumentos utilizados nas recentes polêmicas.
Tudo isso é balela, evidente. Mas não se sabe até onde pode chegar a visão míope com a qual se olha a realidade e a Literatura nacionais. E se nada der certo no Brasil de amanhã, será culpa do Macunaíma, esse herói insolente que forjou o espírito do nosso povo; ou então será responsabilidade do ufanismo desesperado de Policarpo Quaresma; ou até mesmo todos os males nacionais terão sido gerados pela carta de Pero Vaz de Caminha, que preferiu não contar outra história e sim aquela já sabida por todos do descobrimento das terras das Índias…
Camilo Zufelato é professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.