Por Fernando Loschiavo Nery
O sentimento de defender o direito à vida é inerente a nossa própria existência. Isto porque, a vida é um direito que antecede o próprio direito e as leis. O Direito natural assim o descreve. É muito complicado resolver um dilema como este enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 54) não estando os julgadores ou qualquer de nós do povo, ligados à experiência dos fatos concretos. Os juízos de valores que fazemos, são inerentes às experiências que temos. Lógico que para cada caso haverá uma realidade, a qual será muito distante por mais que se queira daquela mãe ou daquele pai que atravessa a gestação de um feto sob o quadro de anencefalia. Por isso mesmo, reputo que ninguém melhor do que a mãe ou os pais do feto gestado com problemas para decidirem a respeito.
Contudo, a questão focada parece pequena, pois toda vez que abrimos os precedentes (no direito, os precedentes abrem exceções à regra geral) enfraquecemos o valor protegido (vida como um todo). A questão aqui é mais ampla e muito complexa do que o caso da gravidez em si mesma se exibe na mídia. Pois envolve focos de outras situações relevantes não trazidas à baila, abrindo oportunidades de novos problemas sociais que poderão afetar a todos nós. Por exemplo, os efeitos quanto à questão da saúde pública e quanto ao incentivo ao tráfico de órgãos.
Alguns cientistas da medicina e juristas alegam que o Conselho Federal de Medicina não permite a doação de órgãos provenientes de fetos anencefálicos em razão da deficiência genética do cérebro. Contudo, indago: Isto impedirá que o tráfico ilícito de órgãos se utilize de tais órgãos?
Existe comprovação de que a maioria das genitoras e pais de fetos nestas condições não deseja sequer verem os corpos dos fetos. Assim, realmente temos condições de dizer que há condições de controle do Estado em relação a esses óbitos, de que não ocorrerá o uso indevido de órgãos?
Outro item: São os médicos que atestarão o problema da má formação no feto. Não precisam mais ir ao Judiciário. Portanto, se os médicos assinam está tudo certo, certo mesmo? Não podem mais haver gestações interrompidas indevidamente, sob o enfoque de anencefalia?
Infelizmente, tenho até receio de dizer, mas se considerarmos ainda a questão de reprodução humana assistida (fecundação em clínicas de fertilização), veremos que é possível gerar um ser humano com sêmen doado em um útero emprestado (“de graça”, as aspas são para compreender que o que a lei diz é o que a lei diz, não o que se vê na prática, muitas vezes – a lei é desrespeitada pelos criminosos).
Se já vimos casos reais de adolescentes vendendo um rim em troca de um tablete iPad2, será que não haveria alguém disposto a emprestar o útero por dinheiro? A “ONU está preocupada com o problema. Brasil é um dos países fornecedores de órgãos humanos para suprir o comércio clandestino, até de primeiro mundo (2)”
Outro ponto: Há a possibilidade científica de se utilizar úteros artificiais para gerar seres humanos. Novamente devo lembrar que para os criminosos isto não é ficção científica, é fonte de lucro, estou relatando as situações hipotéticas de um “mundo real”, onde infelizmente os crimes existem. Então, será mesmo que resolvemos os problemas ligados à criminalidade em tais casos de aborto dos fetos com anencefalia, a partir da adoção de uma posição genérica conforme a decisão do STF?
Considerações Finais: Sim, resolvemos os problemas da mãe e do pai que sofrem com a gestação. Muito proveitoso digno de aplauso. Seria ótimo se considerasse a concretude de cada caso específico. E no mais? Não estaríamos abrindo espaço para outros problemas, que não temos sequer noção do que poderemos trazer a existência? Será mesmo que não existem condições de se prever?
A verdade é que há omissão do Executivo e do Legislativo, pois não existe nenhuma política pública preparada para custear as despesas médicas (saúde pública), a qual será certamente onerada com esta decisão erga omnes. Não existe nenhuma política pública capaz de conter nem a prática da eugenia e do tráfico ilícito de órgãos (situações que ganham potencialidade pela falta de controle do Estado).
Riscos? Existem? Efeitos? Existem? (talvez imensuráveis). Por isso, penso que afastar do Judiciário o exame de cada caso concreto, assim como diminuir o rigor na constatação do quadro anencefálico do feto para o aborto é altamente arriscado para a sociedade, trazendo possível ofensa aos meandros éticos, na medida em que potencializam a oportunidade de um déficit (social e moral) do qual seremos cobrados posteriormente (saúde pública e erário público).
Pelo menos por enquanto, do modo como as coisas estão sou contra o efeito erga omnes que autoriza o aborto de feto anencefálico sem a intervenção do Judiciário. Muito mais que decisões heroicas de nossa Suprema Corte é preciso urgentemente de políticas públicas claras, as quais somente eclodirão da atuação harmônica do Estado tripartite, capaz de atender amplamente as misérias humanas da sociedade brasileira.
Fontes:
Adolescente vende um rim para comprar iPad 2. Disponível em http://www.tecmundo.com.br/10465-adolescente-vende-um-rim-para-comprar-ipad-2.htm#ixzz1rqsRr6Vr Capturado em 12/04/2012.
Tráfico de órgãos é terceiro crime organizado mais lucrativo no mundo, segundo Polícia Federal. Disponível em http://biodireitomedicina.wordpress.com/2009/02/12/trafico-de-orgaos-e-terceiro-crime-mais-lucrativo-segundo-policia-federal/. Capturado em 12/04/2012.
A ONU alerta para o crescente tráfico de pessoas para transplantes. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/26585-a-onu-alerta-para-o-crescente-trafico-de-pessoas-para-transplantes . Capturado em 12/04/2012.
Aluguel de útero é negociado por até R$ 120 mil na internet. Disponível em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3649591-EI8139,00-Aluguel+de+utero+e+negociado+por+ate+R+mil+na+internet.html
Fernando Loschiavo Nery é professor de Direito Civil e Ética Geral e Jurídica na Faculdade Mario Schenberg – Grupo Lusófona. Especialista em Direito Processual Civil e mestrando em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico.