A Câmara dos Deputados está examinando o projeto de lei nº 7079/06, da Comissão de Legislação Participativa, que trata da assistência jurídica gratuita às crianças, adolescentes e seus responsáveis. A proposta pretende alterar o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a fim de garantir assistência judiciária integral e gratuita somente aos que comprovarem não ter recursos para arcar com as despesas. No estágio atual, tal prerrogativa é dirigida a todos, indistintamente.
O texto da proposta prevê, ainda, que os municípios também serão responsáveis pela assistência —flagrante inconstitucionalidade— que deverá ser prestada por meio de órgão próprio municipal ou de convênios com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), dentre outros.
Sem entrar na discussão sobre a falta de legitimidade das malsinadas “Defensorias Municipais” e sua conseqüente e inconteste ineficácia, matéria que já se encontra praticamente pacificada pela doutrina e jurisprudência pátria, deixaremos consignada a desconfiança por nós vivenciada, no que diz respeito aos objetivos apócrifos que se escondem sob o manto dessa pretensa reforma, verdadeira afronta à Constituição Federal!
Referido projeto, assim, vai de encontro ao direito à proteção contra o retrocesso em matéria de direitos fundamentais, moderno postulado da ordem constitucional brasileira. Nossa Lei Fundamental foi dotada de uma clareza inconteste, ao dispor, em seu artigo 227, serem as crianças e os adolescentes destinatários prioritários das ações da sociedade e do Estado (princípio da prioridade da criança e do adolescente).
Parece-nos que tal proposta legislativa não levou em consideração tais enunciados, estando maculada de altos indícios de “intenções retrocessivas”.
Senão vejamos: quais as justificativas plausíveis para a modificação de um ato normativo —lei— para restringir um direito individual já nele consagrado? Que razões justificariam a restrição da assistência jurídica integral e gratuita às crianças e adolescentes, condicionando tal benefício estatal à comprovação de insuficiência de recursos? Até que ponto pode o legislador infraconstitucional voltar atrás no que concerne à implementação dos direitos fundamentais previstos no texto constitucional? Levando-se em conta a proposta original do legislador, bem como os ditames da ordem constitucional vigente, não há que se fazer qualquer discriminação no tocante à “pobreza na forma da lei”, afinal, a quem se quer proteger? Não seria a criança e o adolescente, independentemente da sua condição econômica? Há uma exceção à regra nesse caso.
Consta no artigo 141, caput, do ECA, ser garantido o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos. Complementando esta garantia, no parágrafo primeiro, há a previsão de que a assistência judiciária gratuita será prestada aos que dela necessitarem, através de defensor público ou advogado nomeado.
Vale ressaltar que a necessidade em si não se confunde com a sua efetiva comprovação, não exigida pelo texto legal, nos moldes em que se encontra redigido atualmente. Ademais, a nomeação de advogado, somente se dará em caso de não haver defensor público apto a patrocinar a defesa técnica da criança e do adolescente, uma vez constar no artigo 4º, VII, da Lei Complementar Federal nº 80/1994, e, no caso específico do Estado do Ceará, no artigo 3º, VII da Lei Complementar Estadual nº 06/97, ser esta uma das funções institucionais da Defensoria Pública.
Acrescente-se a tudo isso a falta de competência dos municípios para prestar esse tipo de serviço, tanto por razões de ordem formal como material, uma vez que, além de agredir a própria lei de responsabilidade fiscal, não têm como conferir unidade e independência, premissas fundamentais para o acesso à justiça igualitário (ora, se não há magistratura nem Ministério Público no âmbito do município, porque admitir, ainda que de forma “maquiada”, Defensoria Pública?).
Seria mais adequado viabilizar meios para que a Defensoria Pública assumisse por inteiro as suas atribuições legais e constitucionais. O Brasil não agüenta mais tantos paliativos! Não precisamos criar novas instituições, mas sim fazer com que as existentes possam funcionar.
Situações como a agora discutida é que leva a reflexão da verdade das palavras do colega carioca Silvio Roberto de Mello Moraes no sentido de que “é justamente pela importância do papel da Defensoria Pública e sua direta influência na mudança do atual quadro social, que a instituição, não raras vezes, se depara com poderosos inimigos que, pertencentes às fileiras dos opressores e antidemocráticos, não pretendem qualquer mudança na situação social presente. Muitas vezes, travestidos de falsos democratas, agem sorrateiramente, enfraquecendo e aviltando a instituição que certamente mais lhe assusta, pois o seu papel transformador reduz o domínio que exercem sobre os desinformados e despreparados que, infelizmente, constituem a maior parte da nação brasileira. Preocupa-os, portanto, a idéia de uma defensoria Pública forte, independente e transformadora, capaz de exercer com altivez sua missão constitucional, livre de ingerências políticas.”.
Desta forma, entendemos que a pretensa restrição da garantia individual de assistência jurídica integral e gratuita às crianças e aos adolescentes não encontra guarida em nosso ordenamento jurídico (princípio da vedação do retrocesso), por ir de encontro aos preceitos constitucionais vigentes, devendo este “munus” ser exercido incondicional e preferencialmente pelos membros da Defensoria Pública, por seu caráter institucional, como previsto em lei complementar, admitindo-se somente em caráter excepcional, a atuação de profissionais estranhos aos quadros desta instituição.
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Roberta Madeira Quaranta é defensora pública do Estado do Ceará e mestranda em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza