Porte de Arma de Fogo Particular por Membros das Forças Armadas e por Policiais

Luiz Fernando Vaggione*

Temos acompanhado com interesse a discussão gerada pela redação do § 1.º do art. 6.º da Lei n. 10.826/2003, popularmente conhecida como “Estatuto do Desarmamento”. A Lei citada, no caput do art. 6.º, proibiu o porte de arma de fogo em todo o território nacional. Estabeleceu, no entanto, exceções no próprio caput e no § 1.º do mesmo artigo. Esse parágrafo dispõe que “as pessoas previstas nos incisos I, II, III, V e VI deste artigo terão direito de portar arma de fogo fornecida pela respectiva corporação ou instituição, mesmo fora de serviço, na forma do regulamento, aplicando-se nos casos de armas de fogo de propriedade particular os dispositivos do regulamento desta Lei”.

Inicialmente esclareça-se que o § 1.º do art. 6.º refere-se aos integrantes das Forças Armadas, da Polícia Federal, das Polícias Rodoviária e Ferroviária Federal, das Polícias Civil e Militar, dos Corpos de Bombeiros Militares, das Guardas Municipais das Capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 habitantes, aos Agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência, aos Agentes do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e aos Agentes de Segurança da Câmara Federal e do Senado Federal. Assim, o § 1.º do supracitado artigo cuidou de estabelecer uma prerrogativa para os integrantes das instituições que menciona: o porte de arma de fogo, mesmo fora de serviço, na forma do regulamento ainda não editado pelo Poder Executivo. Aliás, a regulamentação da Lei n. 10.826/2003 dependerá da conclusão dos trabalhos da Comissão Especial designada pela Portaria Interministerial n. 388, de 5 de fevereiro de 2004. Diante da ausência do regulamento da Lei n. 10.826/2003, algumas autoridades têm determinado e confirmado prisões em flagrante de policiais que foram surpreendidos portando arma de fogo particular, fora do horário de serviço. De fato, uma das interpretações do § 1.º do
art. 6.º da Lei n. 10.826/2003 sustenta que estaria vedado o porte de arma de fogo particular para integrantes de instituições de segurança, porquanto ela necessitaria de regulamentação.

Com o intuito de contribuir para o estabelecimento do justo, parece-nos que a conclusão deve ser outra. A leitura do § 1.º do art. 6.º não deixa margem à dúvida: quer se trate de arma da corporação, quer se cuide de arma particular, está assegurado o porte fora do serviço, ainda que sobre ele disponha o regulamento a ser editado. Ora, a regulamentação, a qual em breve virá, não poderá contrariar a Lei n. 10.826/2003. Consoante lição de hely lopes meirelles, o regulamento é ato administrativo que tem missão explicativa ou supletiva da lei, sendo perante ela naturalmente inferior. Por tal razão, continua o autor: “como ato inferior à lei, o regulamento não pode contrariá-la ou ir além do que ela permite. (…) Quando o regulamento visa a explicar a lei (regulamento de execução), terá de se cingir ao que a lei contém (…)” [1] . Nesses termos, se a Lei permitiu a posse de arma de fogo particular fora do horário de serviço para as pessoas anteriormente mencionadas, o regulamento certamente trará as especificidades dessa prerrogativa, jamais ceifará um direito que a Lei citada lhes assegura. Aliás, esse porte funcional fora do serviço não é novidade e está vinculado ao caráter permanente das funções exercidas pelas instituições encarregadas da manutenção da ordem pública. Assim, até que a regulamentação da Lei n. 10.826/2003 ocorra, entendemos que deve ser assegurado ao policial o porte de sua arma de fogo particular, ainda que fora do horário de serviço, desde que devidamente registrada, por força da evidente situação de risco à qual estão expostos.

A interpretação que visa a proibir o porte de arma de fogo particular fora do horário de serviço, levada ao seu extremo, redundaria na proibição também do porte das armas fornecidas pelas corporações ou instituições de segurança porque, em ambos os casos, o porte está condicionado ao regulamento. Observe a redação: “as pessoas previstas nos incisos I, II, III, V e VI deste artigo terão direito de portar arma de fogo fornecida pela respectiva corporação ou instituição, mesmo fora de serviço, na forma do regulamento, aplicando-se nos casos de armas de fogo de propriedade particular os dispositivos do regulamento desta Lei” (grifos nossos).

Não fosse suficiente a argumentação acima exposta, lembramos que a Medida Provisória n. 174, de 18 de março de 2004, prorrogou a validade dos portes de arma de fogo já concedidos, posto que fixou o início da contagem do prazo de 90 dias a partir da publicação do regulamento (arts. 29, 30 e 32 da Lei n. 10.826/2003). Assim, se até mesmo o cidadão comum teve o seu direito assegurado em função da inexistência do regulamento da Lei n. 10.826/2003, porque não reconhecê-lo aos nossos policiais.

Finalmente, a tese de que a Lei n. 10.826/2003 visa ao desarmamento da população não deve expor os órgãos de segurança do Estado, cujos integrantes têm o dever ininterrupto de assegurar a paz pública. Para tanto, sempre lhes foi concedido o direito de permanecerem armados, inclusive fora do serviço, respondendo pelos abusos que eventualmente possam ser praticados. É certo que falta o tão aguardado regulamento, mas até lá que se garanta a vida daqueles que têm o dever funcional de proteger a sociedade. Como existem inúmeros criminosos ainda a desarmar, será que não seria razoável começar por eles?

*Promotor de Justiça e Professor de Legislação Penal Especial e Prática de Processo Penal do Complexo Jurídico Damásio de Jesus.

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[1] Direito Administrativo brasileiro. 6.ª ed. São Paulo: RT, 1978. p. 150.

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