Autores: Ruiz Ritter e Raul Marques Linhares (*)
Em tempo de crise do Direito Penal (por mais que se possa considerar a crise uma constante e um fator motivador do desenvolvimento da ciência penal), é preciso retomar algumas diretrizes que, apesar de possuírem determinante importância à prática jurídico-penal, parecem terem caído no esquecimento de alguns dos responsáveis pela aplicação cotidiana dessa “última razão” do Direito. Em outras palavras, o Direito Penal está sendo, em determinados momentos, conduzido a um caminho que o distancia de seus princípios básicos, que deve(ria)m justamente lhe servir de parâmetro.
Dentre estes, destaca-se o indispensável princípio da subsidiariedade do Direito Penal, que bem o representa como a ultima ratio do ordenamento jurídico e que não raro é ignorado, cedendo lugar a uma aplicação da legislação penal de rasa profundidade teórico-reflexiva.
De acordo com esse postulado de subsidiariedade, não basta que se direcione a concretização do Direito Penal a realidades consideradas relevantes no âmbito social. Mais do que isso e na doutrina de Jesús María Silva-Sánchez, deve-se aplicar o Direito Penal estritamente quando necessário for, sempre que não se puder tutelar dada realidade por meio de outros instrumentos menos lesivos do que ele próprio.
Trata-se do que Santiago Mir Puig refere como uma diretriz básica do Estado Social, segundo a qual se deve buscar o maior bem social com o menor custo social, combinando-se a máxima utilidade possível para as vítimas com o menor sofrimento necessário para o delinquente, em uma fundamentação utilitarista que conduz ao mínimo essencial de prevenção penal.Disso se conclui que o Direito Penal deve sempre se apresentar da maneira menos intensa possível e apenas quando seja indispensável a sua atuação por inefetividade de outros meios de ordenação.
Entretanto, como já se referiu, não são raras as violações a princípios de natureza Penal, mesmo aqueles mais básicos como o da subsidiariedade. Exemplo simples e recorrente no cenário processual penal é a movimentação do sistema judicial (já tomado por uma demanda de processos invencível em prazo razoável) com denúncias por posse ou porte ilegal de arma de fogo com o registro vencido, pretendendo-se a adequação da conduta, respectivamente, ao artigo 12 ou ao artigo 14 da Lei 10.826/03.
Nesse caso, primeiramente, ignora-se que as condutas de posse e porte de arma de fogo com o registro vencido não representam qualquer ofensa ao bem jurídico protegido pelos tipos penais referidos, que se voltam à tutela da segurança pública por meio do controle do fluxo de armas de fogo no território nacional. Essa foi, aliás, a justificativa para a apresentação do Projeto de Lei do Senado 292, de 1999, de autoria do ex-senador Gerson Camata, que deu origem à vigente Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), nos seguintes termos:
“A onda de violência que vem se avolumando em nosso país, fartamente noticiada, tem como uma de suas principais causas a facilidade de obtenção e uso de armas de fogo. O Estado não pode se eximir de seu dever de manter a segurança pública, reduzindo este perigo a um grau controlável.
Conforme o projeto que ora apresento, o uso de armas de fogo passa a ser objeto de estrito controle estatal, sendo permitido apenas em circunstâncias excepcionais.” (grifos nossos)
Por meio da realização da exigência legal do registro da arma de fogo, se permite ao Estado o pleno conhecimento da existência e propriedade da arma, com isso se possibilitando o exercício da política armamentista estabelecida no país e o resguardo da segurança pública.
Entretanto, a não renovação do registro da arma de fogo após o seu vencimento não retira o conhecimento estatal sobre sua existência e sobre quem é seu proprietário, ainda se fazendo plenamente possível o controle do fluxo de armas e a manutenção da segurança pública, por isso se podendo falar em atipicidade material da conduta, já que falta a ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma penal.
Não fosse isso suficiente e mesmo que se considerasse existente a ofensa relevante ao bem jurídico penalmente protegido, é notável a suficiência do recurso ao Direito Administrativo nesse caso, com a aplicação de sanções como a apreensão da arma de fogo e a incidência de multa pelo descumprimento do dever de renovação do registro. Ou seja, havendo medidas administrativas suficientes para a tutela de uma dada situação (o que é o caso do porte e posse de arma com registro vencido), deve-se reconhecer a natureza subsidiária do Direito Penal, abstendo-se de sua aplicação, por se possuir forma menos severa de alcance do resultado pretendido.
Por mais que já no ano de 2014 essa matéria tenha sido objeto de decisão do Superior Tribunal de Justiça (inclusive de sua Corte Especial) e que tenha sido essa decisão amplamente divulgada, a insistência em se oferecer denúncias pela conduta de porte ou posse de arma de fogo com o registro vencido demonstra a necessidade de ainda se enfrentar essa temática, para que, de uma vez por todas, se (re)pense essa prática prejudicial tanto para o cidadão, quanto para o próprio Poder Judiciário, que indevidamente provocado.
Autores: Ruiz Ritter é advogado, especialista e mestrando em Ciências Criminais pela PUC-RS.
Raul Marques Linhares é advogado criminalista. Integrante do projeto de pesquisa Estado e Política Criminal: a expansão do Direito Penal como forma de combate ao terrorista. Coautor do livro O Crime de Terrorismo – Reflexões Críticas e Comentário à Lei de Terrorismo de acordo com a Lei n. 13.260/2016