Autor: Rodrigo Cyrineu (*)
Um dos pontos mais polêmicos da última reforma eleitoral advinda com a Lei 13.165/2015 é, certamente, a redução do prazo mínimo legal de filiação partidária, antes previsto em um ano, para seis meses e a consequência disto em relação às agremiações partidárias que não alteraram, no seio de seu estatuto, o prazo mínimo de filiação para que o filiado seja alçado à condição de candidato.
Com efeito, o artigo 9º da Lei 9.504/1997 foi alterado pela Lei 13.165/2015, prevendo o prazo mínimo de seis meses de filiação partidária para que o cidadão possa se candidatar. Entretanto, a Lei 9.096/1995 permaneceu intacta ao dispor, em seu artigo 20, que é “facultado ao partido político estabelecer, em seu estatuto, prazos de filiação partidária superiores aos previstos nesta Lei, com vistas a candidatura a cargos eletivos”.
Logo, tendo algumas agremiações permanecido inertes quanto à reforma, mantendo inalterados os seus estatutos, surge, inicialmente, a indagação a propósito da vinculação da norma estatutária no momento da convenção para a escolha de candidatos. Isto é: a norma estatutária prevalece sobre o prazo mínimo legal? A resposta é afirmativa.
Como cediço, os partidos políticos possuem, a partir do advento da nova ordem constitucional, autonomia para disciplinar assuntos de organização e funcionamento (CF/ 88, art. 17, §1º). O referido regramento, nos dizeres de Vânia Siciliano Aieta, “trouxe à cena eleitoral o reconhecimento da ‘maioridade’ dos partidos políticos, que deixaram de ser ‘entidades curateladas’ para alcançar uma real autonomia organizacional”. [1]
Orides Mezzaroba, nessa mesma linha, aduz que “no §1º do art. 17, ficou expressamente determinado o direito de autorregulamentação dos Partidos Políticos. Com isso, pela primeira vez na história política brasileira, uma Constituição delega ao próprio partido a responsabilidade para que possa regulamentar questões interna corporis, como: a forma de estrutura, de organização e de funcionamento”. [2]
Respeitado o prazo mínimo legal, nada obsta, então, a existência de previsão, no estatuto partidário, de prazo de filiação superior a seis meses, por se tratar de legítima opção político-ideológica da agremiação, devendo os seus filiados, no momento da convenção partidária, leva-lo em consideração quando da escolha dos candidatos, afinal de contas, estão eles, inegavelmente, submetidos às regras estatutárias.
A problemática se apresenta, entretanto, na hipótese de determinado filiado ser alçado, em convenção, à condição de candidato sem possuir o prazo de filiação ânuo previsto no estatuto, embora respeite a exigência legal de seis meses de militância. Indaga-se: a temática poderia ser levada à apreciação judicial?
Fora a possibilidade de intervenção dos Diretórios hierarquicamente superiores, presente situação de clara violação ao estatuto partidário, é inegável a possibilidade de se levar ao conhecimento do Poder Judiciário a discussão em comento, na medida em que houve inequívoca lesão aos filiados que cumpriram a regra doméstica e a todo o corpo de filiados que, em decisão nacional e democrática, estipularam o prazo ânuo e optaram pela sua manutenção quando do advento da Lei 13.165/2015.
Do contrário, ao não se admitir a impugnação do registro de candidatura, o conteúdo normativo do princípio da inafastabilidade do poder judiciário restaria esvaziado, máxime em se tratando de discussão da mais alta relevância como é a disputa interna em convenções partidárias, propiciando um ambiente autocrático e nada republicano no seio das greis partidárias.
A propósito da autonomia partidária, o Pretório Excelso, no julgamento da ADI 1.063/DF-MC, de relatoria do ministro Celso de Mello, já se pronunciou no sentido de que “a autonomia dos partidos políticos, embora represente inegável conquista desses organismos tão essenciais à manifestação da soberania nacional e necessários ao aperfeiçoamento do regimente democrática, não confere às agremiações partidárias um regime de independência – vale dizer, de absoluta desvinculação – em face da autoridade normativa do Estado, especialmente naquilo que ao Poder Público compete disciplinar mediante lei, como ocorre na regulação legislativa das condições de elegibilidade”. [3]
Nesse sentido, complementarmente, Vania Siciliano Aieta obtempera que “os atos praticados pelos partidos políticos só serão objeto de apreciação judicial quando ferirem a lei, violando direitos assegurados” [4]. É o caso: violação ao artigo 20 da Lei dos Partidos Políticos, violando direitos dos demais filiados que disputaram as internas. Isto, entretanto, não confere legitimidade para que candidatos, partidos e coligações adversárias pretendam fazer o mesmo.
Do Direito Comparado, interessante a abordagem de J. J. Gomes Canotilho:
A liberdade interna dos partidos revela-se, sobretudo, em duas questões fundamentais: a) sobre os partidos não pode haver qualquer controlo ideológico-programática; b)não é admissível um controlo sobre a organização interna do partido (cf. Art. 51.º/3). Isto significaria a exclusão de qualquer controlo quanto à <<democraticidade>> interna ou ideológica de um partido. A revisão de 1997 veio estabelecer aqui uma importante inovação. A liberdade interna não pode neutralizar o princípio democrático (cf. L 2/2003, art. 5.º). A organização interna dos partidos deve obedecer, à semelhança de outras organizações sociais constitucionalmente relevantes (cfr. Art. 55.º sobre a democraticidade interna das associações sindicais), às regras básicas inerentes ao princípio democrático (cfr. Art. 223.º/2/h). Deu-se, assim, guarida, à ideia, defendida por alguns autores, de que a democracia de partidos postula a democracia nos partidos (cf. LTC, arts. 103.º-C, 103.º-D, 103.ºE). A democracia interna pressupõe, entre outras exigências, a proibição do princípio do chefe (Führerprinzip), a exigência da formação da vontade a partir das bases, o direito dos membros do partido a actuação efectiva dentro do partido, o direito à liberdade de expressão, o direito à oposição, o direito à igualdade de tratamento de todos os membros. [5]
Como não é possível, a quem não faz parte da grei, reclamar de ausência de democracia, a matéria insere-se, indubitavelmente, no âmbito interno das agremiações, tratando-se de questão interna corporis, por não acarretar, nem de longe, qualquer prejuízo aos demais concorrentes do prélio eleitoral.
Edson de Resende Castro, de forma muito feliz, adverte que “é possível dizer que o Direito Partidário tem autonomia legislativa e científica perante o Direito Eleitoral, embora se reconheça a acentuada proximidade desses dois ramos do direito”. [6] A hipótese em discussão é exemplo categórico disso.
É condição de elegibilidade, apenas e tão somente, a filiação partidária pelo prazo de seis meses. Eventual prazo de filiação superior previsto no estatuto, portanto, é tema exclusivo de Direito Partidário, impossível de ser invocado por quem não esteja nas fileiras partidárias, configurando-se seu desrespeito, pura e simplesmente, em violação estatutária, com reflexo apenas entre os filiados, ainda que possa surtir efeito no processo eleitoral.
Ao tratar da autonomia partidária, José Afonso da Silva adverte que os partidos “podem estabelecer os requisitos que entenderem sobre filiação e militância”. [7] Uadi Lammêgo Bulos assevera que são os partidos políticos que “devem prescrever seus estatutos e as normas internas, observadas as disposições constitucionais e o bom-senso”. [8]
Não é outra a orientação que promana do Supremo Tribunal Federal:
A própria Constituição, ao relacionar os pressupostos de elegibilidade em seu art. 14, §3º, permite que dessa se extraiam duas conclusões: (a) trata-se de matéria sujeita ao domínio normativo da lei formal, não se lhe havendo exigido, para efeito de sua plena eficácia jurídica, a forma de ato legislativo de natureza complementar e (b) cuida-se de tema que, sendo disciplinável mediante lei por expressa determinação constitucional, não é de submeter-se, em consequência, ao poder de disposição estatutária dos partidos políticos. [9]
Em idêntica manifestação, o mesmo Pretório Excelso já consignou que a “noção de elegibilidade (condição para o exercício regular do direito de candidatura) abarca o mandamento de que a satisfação dos seus requisitos, dentre os quais a filiação partidária, deve ser atestada de maneira prévia ao pleito eleitoral. O prazo estabelecido na legislação, muito embora não constitucionalizado, é fixado por delegação constitucional ao legislador ordinário”.[10][11]
Como se vê, revela-se incabível, parafraseando o ilustre eleitoralista baiano Rafael Mattos e querido colega da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), “delegação da delegação” em tema condição de elegibilidade.
Portanto, não há como dar outra interpretação à ressalva do caput do artigo 20 da Lei 9.096/1995 senão a de que o prazo superior previsto no estatuto serve de parâmetro para a disputa interna, em convenções, mas jamais como fundamento legitimador de impugnação, por adversários, ao registro de candidatura de seu filiado, sob pena de se admitir, ao contrário da sólida posição do Supremo Tribunal Federal, delegação estatutária para criação de condição de elegibilidade, inclusive em desfavor da própria agremiação, passo que a Constituição Federal, no dizer de seu guardião e intérprete final, não deu.
Dito de outra forma, é condição de elegibilidade, apta a ser fiscalizada por todos os atores do processo eleitoral e impeditiva do registro em caso de descumprimento, apenas a filiação partidária mínima exigida na legislação.
Não é outra a conclusão de Joel J. Cândido: “Filiação Partidária. Também é da lei ordinária a missão de estipular o prazo mínimo da filiação partidária para cada eleição, para os que querem concorrer aos mandatos eletivos, enquanto condição de elegibilidade”.[12
Exigência temporária adicional, regulada em norma doméstica, é matéria afeta exclusivamente às convenções, as quais, no escólio de Marcos Ramayana, “são espécies de assembleias intrapartidárias fundadas em critérios estatutários e legais que objetivam a escolha democrática dos pré-candidatos ao pleito eleitoral”. [13]
Logo, prazo de militância superior, inserido em estatuto partidário, é insuscetível de arguição por candidatos, partidos e coligações adversárias, por se tratar de matéria afeta à economia doméstica dos partidos, cabendo apenas a estes e seus filiados, se for o caso, tomar as medidas que entenderem pertinentes.
Autor: Rodrigo Cyrineu é advogado e consultor jurídico de partidos e campanhas eleitorais.