É importante passar a limpo alguns detalhes sobre os precatórios, especialmente para os principais interessados, os credores desses títulos. A verdade é que apesar de tanto se falar em precatórios, suas espécies, eventuais calotes, reestruturação das normas que regem esses papéis, muita gente com direito a esses créditos não sabe exatamente o que são e porque existem.
Vejamos. Precatório é uma espécie de “título” de crédito emitido pelo Judiciário contra os órgãos das fazendas públicas (União, Estados, Distrito Federal e municípios), suas autarquias e fundações, que expressa uma dívida originária de um processo judicial com trânsito definitivo em julgado.
Como os devedores públicos não podem efetuar pagamentos de dívidas judiciais sem que haja previsão orçamentária para tanto, esse procedimento torna-se necessário. Por exemplo, os precatórios emitidos pelo judiciário em um ano (2 de julho de 2004 a 1º de julho de 2005), dão origem a um relatório, o “Mapa Orçamentário”, cujos valores deveriam ser incluídos no orçamento elaborado em 2005 e pagos pelo ente devedor no máximo até 31 de dezembro de 2006.
Deste modo, o ente devedor tem mais 18 meses (2 de julho de 2005 até 31 de dezembro de 2006) para efetuar o pagamento e, segundo recente determinação do Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 298.616/SP), sem a incidência de juros moratórios, já que se há prazo determinado pela Constituição Federal para adimplir tais dívidas, não há porque pagar juros de mora no período em questão. Mas, se não for os valores devidos não forem pagos, voltam a incidir os juros.
Vale ressaltar que existem dois tipos de precatórios: de “Natureza Alimentar” e de “Outras Espécies”. Por isso, o Judiciário dá origem a dois mapas distintos de precatórios. Os de “Natureza Alimentar” podem ser emitidos tanto pela Justiça Estadual, quanto pela Justiça Federal.
E os precatórios decorrentes de acidentes, ações trabalhistas propostas por servidores estatutários e, mais recentemente, honorários advocatícios, que passaram a ser reconhecidos como de “Natureza Alimentar” são os mais comuns emitidos pela Justiça Estadual.
Já da Justiça Federal, os tipos mais comuns de alimentares são os emitidos contra a Previdência Social e pelos TRTs, em ações trabalhistas propostas por servidores públicos contratados pelo regime da CLT.
Mas o tema que deve nortear as discussões é sobre a inversão que esta distinção acabou gerando. Ora, os precatórios de “Natureza Alimentar” deveriam gozar de privilégio, mas, na prática, isso nunca existiu.
Segundo o artigo 100 da Constituição Federal, esses precatórios constituiriam uma classe especial que seria beneficiada pelo pagamento prioritário em relação aos demais, desvinculando-se, inclusive, da ordem cronológica dos de “Outras Espécies” e obedecendo apenas à sua ordem própria. Ou seja, não deveria existir no País nenhum precatório de “Natureza Alimentar” vencido e não pago.
Esse privilégio foi mantido na redação dos artigos 33 e 78 da ADCT, artigos que criaram uma modalidade de parcelamento para os precatórios de “Outras Espécies” e proibindo, assim, o pagamento parcelado dos alimentares, que acabaram sendo relegados a um plano de inferioridade em relação aos de “Outras Espécies”.
Essa afirmação é totalmente comprovada, uma vez que os credores de precatórios de “Outras Espécies” foram “beneficiados” pelos parcelamentos instituídos nesses artigos, que quando não cumpridos puderam e tiveram seqüestros de verbas atendidos para sua satisfação. Enquanto os credores de precatórios alimentares não podem ver seqüestrados valores para satisfação de seus créditos, exceto se houver quebra de ordem dentro de sua própria espécie.
Além disso, esse é o entendimento atual dado pelo STF, quando do julgamento da ADI 1662-7 São Paulo, que pôs por terra a resolução normativa 11/97 do TST, que previa o seqüestro de rendas para pagamento dos precatórios alimentares dos TRTs quando houvesse atraso, pagamento a menor ou a não inclusão no orçamento do ente devedor. Segundo determinação do pleno do STF, apenas a quebra de ordem cronológica dentro de cada “espécie” é que poderá determinar o seqüestro de verbas.
Isso, apesar da existência de jurisprudência do STJ (Sumula 144) e do STF (Sumula 655) que reconhecem a necessidade dos créditos alimentícios se sujeitarem ao ritual de emissão de precatório, mas, principalmente, reconhecem o privilegio de isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outras naturezas.
Em conseqüência, um credor de precatório alimentar, cujo valor atualizado seja de R$ 30 mil, vencido há 20 anos, estará sendo preterido por um credor de desapropriação, cujo valor seja de R$ 150 milhões e que tenha vencido originalmente em 31 de dezembro de 1994.
Ora, isso acontece porque se o ente devedor não efetuar nenhum pagamento alimentar, não terá quebrado a ordem cronológica dos mesmos, porém, estará obrigado por força dos artigos 33 e 78, a efetuar os pagamentos dos precatórios vencidos e das parcelas dos precatórios de “Outras Espécies”, sob pena de sofrerem seqüestros de verbas para pagamentos desses precatórios.
É por isso que se um ente devedor de precatório alimentício vencido há décadas não tiver “quebrado” a ordem dentro de sua própria espécie. Por exemplo, poderá e deverá continuar a pagar ações de desapropriações, cujos valores são infinitamente superiores aos créditos alimentares, sem que sofram nenhuma penalidade por isso.
Assim, o que seria um privilégio previsto pelo legislador, tornou-se o maior entrave para os pagamentos que precisam ser priorizados, tanto devido à interpretação do Judiciário como ao trato dado pelo Executivo do país.
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Juarez Lopes dos Santos é perito em cálculos judiciais, especializado em precatórios