Precatórios – Aspectos interessantes

Antônio Flávio de Oliveira – Advogado e assessor de procurador de justiça em Goiás.

O precatório, criado como um artifício legal destinado a dar cumprimento às decisões judiciais, que tenham como comando a determinação do pagamento de quantias pelo Poder Público e, ao mesmo tempo, para obedecer a determinação legal de que toda despesa pública deve estar prevista no orçamento do respectivo ente público, acaba, na maioria das vêzes, tornando-se elemento motivador de uma situação de inadimplência pelos governos, por ensejar argumentações dirigidas ao fito de protelar o cumprimento dos precatórios.

A renitência em não fazer o pagamento de quantias resultantes de condenação, como não poderia deixar de ser, é sempre justificada, ora valendo-se do argumento de que a ordem de apresentação não pode ser quebrada, ora sob o argumento (quando se trata de condenação decorrente de direitos e vantagens de servidores) de que o pagamento da quantia importaria em extrapolação do limite de 60% (sessenta porcento) de gastos com pagamento de pessoal.

Tanto um quanto outro argumento são falhos em diversos aspectos, que passo a abordar.

I – A ORDEM DE PREFERÊNCIA
O primeiro argumento, de quebra na ordem de preferência, é geralmente utilizado para obstar todo é qualquer pagamento de precatório, pois ocorrendo de algum, ou alguns, dos credores desistir de continuar exigindo seu crédito, o ente estatal deles vale-se para negar atendimento aos demais.

Assim, relaciona-os, sem a intenção de solvê-los, em um cronograma de pagamentos onde em razão de sua antigüidade antecedem a todos os outros, entretanto não os pagam.

Como aqueles credores não tomam qualquer providência, a ordem de pagamentos permanece inalterada, originando contra os credores diligentes o argumento de que o seu crédito somente será pago após o cumprimento da ordem.

Ora, acontece que a ordem jamais será cumprida, pois como não se paga aos primeiros da lista, os últimos jamais sobem de posição.

A prevalecer o entendimento esposado pelos governantes que se mantêm inadimplentes com as obrigações de suas entidades federadas, estar-se-ia criando uma barreira intransponível para aqueles credores que, não obstante a demora, lutam incansavelmente para receber.

Entretanto, o entendimento, de que a ordem de preferência há de ser interpretada dessa maneira é equivocado, pois os precatórios, uma vez apresentados até primeiro de julho do exercício em curso, devem ser incluídos no orçamento do exercício seguinte e, consequentemente pagos até o seu encerramento.

Portanto, a determinação emanada do precatório independe de indagações acerca do cumprimento ou não da ordem de preferência.

Ao enfrentar o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela intervenção:

“EMENTA: Constitucional. Intervenção Federal. Art. 34, VI da CF.- Demonstrada a relutância do Poder Executivo Estadual em cumprir decisão emanada do Poder Judiciário, impõe-se o deferimento da intervenção federal.” (STF. IF 14/PR. Rel.: Min. Américo Luz. Corte Especial. Decisão: 1º/08/94. DJ 1 de 10/10/94, p. 27.054.)

“EMENTA: Constitucional. Intervenção federal.

(…).

3 – Comprovada a manifesta e reiterada situação de insubordinação à determinação judicial, carente de cumprimento por injustificável recusa do Sr. Governador do Estado em fornecer meios para tanto necessários, mister se faz deferir o pedido de intervenção federal.” (STJ. IF 13/PR. Rel.: Min. Bueno de Souza. Corte Especial. Decisão: 09/06/94. RSTJ, v. 63, p. 75. DJ 1 de 08/08/94, p. 19.544.). (Grifei).

Não raras vezes argumenta-se que a intervenção acarretaria em transgressão a autonomia da pessoa jurídica estatal, todavia, é de se ressaltar que somente em casos extremos admite-se a intervenção, os quais de forma taxativa estão elencados no art. 34, da Constituição Federal, sendo um deles o descumprimento de decisão judicial. Pode-se dizer até que a intervenção dirige-se não contra o Estado ou Município, mas contra o seu recalcitrante administrador, que se nega a dar cumprimento a uma decisão emanada do Poder Judiciário.

Desta feita, a intervenção não importa em transgressão ao princípio da autonomia, mas apenas em um momentâneo abrandamento de suas características, para fazer frente a um mal maior ocasionado pelo descumprimento de decisão judicial. Percebe-se, dessarte, que o legislador constituinte buscou proteger o cidadão do poder absoluto do estado, evitando a insegurança social e a quebra das bases sustentadoras do sistema de tripartição dos poderes.

ROSAH RUSSOMANO, tratando da questão desnuda a natureza e excepcionalidade do ato interventivo, com breve e incisivo comentário:

“Só se permite à União transpor as lindes da competência estadual, nos caso excepcionais e taxativamente previstos, que justificam, pela sua gravidade, que, ao aspecto federativo, se superponha a dimensão unitária do Estado Federal.”

(CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, Freitas Bastos Editora, 5ª edição, 1.997, p. 105)

Não há, portanto que pairar dúvida sobre a autonomia de qualquer dos entes federados, nem há porque considerar o ato interventivo uma manifestação que provoque o afastamento do princípio. Apenas, e tão somente, constitui a intervenção em ação restauradora da autonomia do próprio ente público, porquanto restabelece a eficácia das decisões de um de poderes que o compõem, o Judiciário.

II – A ALEGAÇÃO DE TRANSGRESSÃO AO LIMITE DE GASTOS COM PESSOAL
Melhor sorte não está reservada a alegação de que não seria possível o pagamento do precatório, quando este tem origem em débitos decorrentes de condenação em ação onde se pleiteou vencimentos e vantagens, porque somando-o ao montante pago ao funcionalismo ultrapassaria o percentual legalmente permitido de gastos com pessoal.

Os débitos dessa natureza, convertidos em precatório, geralmente ocupam a classificação de débitos alimentares, portanto encontram-se dispostos em ordem independente dos demais.

De conseqüência, além de sofrerem as alegações de obediência de ordem de apresentação, estão sujeitos a assertiva de que do seu pagamento resultaria infração ao percentual de 60% (sessenta porcento), que atualmente limita os gastos com pessoal (*deverá passar para 50% com a aprovação de nova Lei disciplinando a matéria).

Não obstante a aparente substância deste argumento, ele, tal qual o que se refere a obediência da ordem de apresentação, é frágil, pois falece imediatamente ante a confrontação com o teor da Lei 4.320/64, eis que as despesas com pessoal são liquidadas à conta da dotação 3.1.1.0 – pessoal, subdividindo-se em: 3.1.1.1 – pessoal civil; 3.1.1.2 – pessoal militar; e 3.1.1.3 – obrigações patronais, enquanto que as despesas com o atendimento de precatórios são debitadas à dotação 3.1.9.1 – sentenças judiciárias.

Portanto, não se trata mais de pagamento de despesa normal com pessoal, mas de pagamento decorrente de sentença, requisitado por precatório.

Embora possa parecer um tanto quanto estranha essa situação, ocorre que o orçamento, como ficção que é, assemelha-se a um pequeno banco, com diversas contas e sub-contas, onde as contas são os diversos setores (educação, saúde, segurança etc.) e as sub-contas as diversas dotações, estas assemelhando-se com o planejamento de gastos de cada titular correntista (pessoal, outros serviços e encargos, sentenças, obras e instalações etc.).

Assim sendo, continuando com a analogia, se o titular de uma determinada conta recebe uma determinação judicial de pagar o resultado de uma sentença, que se originou de um dos seus planejamentos de gasto, naquele exato momento esse gasto deixa de ser coberto pela sub-conta respectiva, para passar a ser coberto por aquela cuja destinação específica é dirigida ao pagamento de sentenças e precatórios.

Como visto, o débito, ainda que originalmente resultante de gasto com pessoal, transmuda, passando a se situar em uma outra categoria contábil, portanto fora da limitação de despesas com pessoal, de maneira que a impossibilidade aí fundamentada inexiste.

O art. 117, da CF, e a Lei Complementar n.º 82/95, que disciplinam a matéria aqui tratada, não são, portanto, incompatíveis. Aliás, a interpretação das leis deve ser feita de modo a compatibilizar com a constituição, sendo que em caso de impossibilidade ter-se-á revogação ou inconstitucionalidade da norma infraconstitucional.

III – CONCLUSÃO
Diante disto, o pagamento de precatórios, há que ser limitado por impossibilidades fáticas, não por falsos argumentos jurídicos a mascarar a falta de vontade política.

Não é possível que tenhamos democracia em toda a sua plenitude se não há respeito por parte do Poder Executivo às decisões judiciais.

A lei e a figura do precatório são boas, cabe-nos a tarefa de fazê-las aparentar o que realmente são, entretanto é necessário, para isto, a condução das ações políticas pelo caminho da ética e da moral.

Antônio Flávio de Oliveira
Advogado e assessor de procurador de justiça em Goiás.

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