Precatórios não podem ser cancelados por falta de documentos

Autora: Raquel Santos de Santana (*)

 

O precatório consiste numa requisição administrativa expedida pelo Poder Judiciário para pagamento de débitos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estadual, Distrital e Municipal, incluídas suas autarquias e fundações, em virtude de sentença judicial, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal.

Os débitos pagos mediante a expedição de precatório são aqueles que ultrapassarem o limite estabelecido por lei específica do ente federado para o pagamento de obrigações de pequeno valor, o qual não pode ser inferior ao teto fixado para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), nos termos dos §§ 3º e 4º do artigo 100 da Constituição Federal.

Em 2017, o teto do RGPS foi atualizado em R$ 5.531,31 pela Portaria 08/2017 do Ministério de Estado da Fazenda. Para tanto, o Juízo da Execução deve expedir, ao final do processo de execução, ofício requisitório ao Presidente do Tribunal com as informações e cópias necessárias, a fim de que seja gerado um processo administrativo (precatório) para que o pagamento seja realizado em ordem cronológica de apresentação deste ofício e à conta dos créditos disponibilizados pelo ente devedor.

Para a regular formação do precatório, a Resolução 115/2010 do Conselho Nacional de Justiça estabelece, em seu artigo 5º, as informações necessárias que devem ser prestadas pelo Juízo da Execução, conforme a seguir transcrito:

  • I – número do processo de execução e data do ajuizamento do processo de conhecimento;
  • II – natureza da obrigação (assunto) a que se refere o pagamento e, em se tratando de indenização por desapropriação de imóvel residencial, indicação de seu enquadramento ou não no art. 78, § 3º, do ADCT;
  • III – nomes das partes, nome e número de seu procurador no CPF ou no CNPJ;
  • IV – nomes e números dos beneficiários no CPF ou no CNPJ, inclusive quando se tratar de advogados, peritos, incapazes, espólios, massas falidas, menores e outros;
  • V – natureza do crédito (comum ou alimentar);
  • VI – o valor individualizado por beneficiário, contendo o valor e a natureza dos débitos compensados, bem como o valor remanescente a ser pago, se houver, e o valor total da requisição;
  • VII – data-base considerada para efeito de atualização monetária dos valores;
  • VIII – data do trânsito em julgado da sentença ou acórdão no processo de conhecimento;
  • IX – data do trânsito em julgado dos embargos à execução ou impugnação, se houver, ou data do decurso de prazo para sua oposição;
  • X – data em que se tornou definitiva a decisão que determinou a compensação dos débitos apresentados pela Fazenda Pública na forma dos art. 100, §§ 9º e 10, da Constituição Federal;
  • XI – em se tratando de requisição de pagamento parcial, complementar, suplementar ou correspondente a parcela da condenação comprometida com honorários de advogado por força de ajuste contratual, o valor total, por beneficiário, do crédito executado;
  • XII – em se tratando de precatório de natureza alimentícia, indicação da data de nascimento do beneficiário e se portador de doença grave, na forma da lei.
  • XIII – data de intimação da entidade de Direito Público devedora para fins do disposto no art. 100, §§ 9º e 10, da Constituição Federal, ou, nos casos em que tal intimação for feita no âmbito do Tribunal, data da decisão judicial que dispensou a intimação em 1ª instância.
  • XIV – em relação a processos de competência da Justiça Federal, o órgão a que estiver vinculado o servidor público civil ou militar da administração direta federal, quando se tratar de ação de natureza salarial, com a indicação da condição de ativo, inativo ou pensionista, e;
  • XV – em relação a processos de competência da Justiça Federal e do Trabalho, o valor das contribuições previdenciárias, quando couber.

A Resolução 115/2010 entrou em vigor em 29 de junho de 2010, momento a partir do qual o CNJ formalizou a lista dos documentos necessários à instrução do precatório.

Nesse diapasão, em virtude da inexistência de regulamentação anterior sobre a documentação necessária à formalização do precatório, os documentos constantes do art. 5º da Resolução 115/2010 poderiam ser exigidos no curso do andamento dos precatórios distribuídos em data anterior a 29 de junho de 2010 sem maiores transtornos.

Quanto aos precatórios distribuídos em data posterior à entrada em vigor da referida Resolução, estes não deveriam sequer ter sido distribuídos, porém, sendo realizada a distribuição com a irregularidade na documentação, há que se analisar a viabilidade da manutenção ou cancelamento do precatório.

O precatório é gerado por ofício expedido pelo Juízo de primeiro grau, o qual tem o dever de enviar ao Tribunal os documentos necessários exigidos pela Resolução 115/2010 do CNJ, havendo corresponsabilidade do Juiz Gestor do Departamento de Precatórios, que tem o dever de conferir a documentação antes de autorizar a distribuição do processo administrativo de precatório.

Logo, não há como transferir para os credores o ônus do não cumprimento de um dever por parte do Poder Judiciário, caso em que não seria viável o cancelamento dos precatórios irregulares nesse, especialmente no que tange àqueles que já foram alvo do pagamento de antecipações.

Tais processos sustentam, por certo tempo, uma situação irregular por ausência de alguns dos documentos elencados no dispositivo supramencionado, garantindo ao credor a consolidação daquela situação pelo decurso do tempo, inclusive com o pagamento de antecipações decorrentes de preferência por idade ou doença grave.

Em tais casos é pertinente a aplicação da teoria do fato consumado para evitar prejuízo aos credores quanto à ordem cronológica e maiores transtornos quanto aos valores já pagos em regime de antecipação em razão de preferência por idade ou doença grave, além de evitar uma grande quantidade de mandados de segurança propostos pelos credores.

A “teoria do fato consumado”, anteriormente, era uma construção jurisprudencial que justificava a manutenção de uma situação de fato constituída pelo deferimento de uma tutela de urgência, ainda que o provimento final pudesse ser desfavorável, por ocasião do extenso lapso temporal entre o deferimento liminar e a decisão final, que ensejou a consolidação dessa situação de fato de tal forma que sua desconstituição geraria prejuízos muito maiores que sua manutenção.

No dizer do Superior Tribunal Justiça (Resp. 441064/RS), a teoria do fato consumado seria “uma situação ilegal consolidada no tempo, em decorrência da concessão de liminar”.

Atualmente, o STJ deu uma nova roupagem à referida teoria, abandonando esse entendimento, a partir do informativo 598/2017, no qual restou consignado que, se houver contestação inicial das partes envolvidas no sentido de reputar o ato irregular, inclusive através das vias adequadas, e, em razão do extenso lapso temporal no procedimento para a apuração da legalidade do ato, sejam gerados efeitos concretos, uma vez confirmada a ilegalidade, deve o ato administrativo ser desfeito, preservando-se, tão somente, o que não puder ser restabelecido ao status quo ante pela consolidação fática irreversível.

De acordo com o informativo 598/2017 do Superior Tribunal de Justiça, extrai-se ainda a seguinte orientação:

“Em uma primeira linha, a teoria do fato consumado tem sido aplicada, no âmbito judicial, para as hipóteses em que, pela própria lei da natureza, não haveria como desfazer os acontecimentos decorrentes do ato viciado. Também tem sido reconhecida a incidência da teoria do fato consumado nas hipóteses em que a Administração permite, por vários anos, a permanência de situação contrária à legalidade estrita, atribuindo ares de legalidade a determinada circunstância, e, assim, fazendo crer que as pessoas agem de boa-fé, conforme o direito. Nessa perspectiva, a teoria do fato consumado guarda íntima relação com a convalidação dos atos administrativos, atualmente regulada pelo artigo 54 da Lei 9.784/99. Quanto aos comportamentos das partes ao longo do tempo, faz-se necessário, para que se tenha por aplicável a teoria do fato consumado, distinguir duas situações que podem ocorrer quando se pratica um ato equivocado. A primeira situação corresponde à hipótese em que um ato contrário à lei é praticado sem dolo e sem contestação, tendo vigência por anos a fio, e assim atribuindo à situação fática ares de legalidade, atraindo para si o valor da segurança jurídica. Há, nesses casos, de ser preservada a estabilidade das relações geradas pelo ato inválido, cuja regularidade manteve-se inconteste por anos, fazendo convalescer o vício que originalmente inquinava sua validade. Protege-se, com isso, a boa-fé e o princípio da confiança legítima do administrado, a ela associado.”

Isso quer dizer que o STJ tem entendido que, quando a Administração Pública permite a permanência de uma situação contrária à legalidade estrita por um longo período de tempo, sem oposição, fazendo com as pessoas creiam que aquela situação era de “legalidade” em virtude da boa-fé que se espera, conforme o direito, a fim de preservar a segurança jurídica, a boa-fé e a confiança legítima do administrado, há que se aplicar a “teoria do fato consumado”, convalidando-se o ato administrativo.

É exatamente nesse contexto que se enquadra o precatório que foi gerado pela Administração Pública sem observância dos requisitos formais elencados pela Resolução 115/2010 do CNJ, haja vista que, como foi o próprio Poder Judiciário que expediu a requisição e gerou o precatório sem atender às formalidades exigidas, fazendo com que o precatório tivesse uma posição em ordem cronológica estabelecida, criou-se, no credor, o que o STJ denomina de confiança legítima do administrado, o qual, crendo na boa-fé da Administração Pública, permaneceu anos a fio sendo credor de um precatório irregular sem qualquer dolo ou contestação por parte do Poder Público.

In casu, conforme dito pelo STJ no informativo acima citado, “a teoria do fato consumado guarda íntima relação com a convalidação dos atos administrativos, atualmente regulada pelo artigo 54 da Lei 9.784/99”, além do artigo 55 da mesma norma, abaixo transcritos:

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.

Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.

Embora tal documento não conste nos autos do precatório, ele deve existir fisicamente como prova da realização do ato jurídico, de forma a ser possibilitada sua juntada em momento posterior à distribuição do precatório, sendo necessário o cancelamento do precatório somente em caso de inexistência do documento nos cadastros internos deste Tribunal pelo fato de a execução ainda não ter sido concluída de forma regular, documento este cuja ausência venha a descaracterizar o próprio direito do credor, pois, se o documento não mais existir por deterioração, deve a Administração Pública promover sua restauração de ofício.

É importante salientar que o credor possui o direito à percepção do crédito decorrente de precatório por sentença condenatória transitada em julgado desde a época da distribuição do correspondente processo administrativo de precatório, porém, a irregularidade na documentação foi gerada por motivos alheios a sua vontade, ônus este que não deve ser suportado pelo credor, não podendo o Poder Judiciário transferir ao credor um ônus decorrente de equívoco em sua atuação.

Além da teoria acima referida, há que se observar o princípio da razoabilidade, já que o cancelamento do precatório após anos de tramitação e com posição demarcada na lista de cronologia, fulminaria o direito do credor, podendo até mesmo gerar o transtorno de devolução de valores aos cofres públicos.

A lei 9784/99, inclusive, elenca, em seu artigo 2º, o princípio da razoabilidade como vetor para a atuação da Administração Pública. Confira-se:

Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

É importante ter em mente que ato razoável é aquele que é praticado com racionalidade e aceitável pelos parâmetros do senso comum, leia-se aquele ato em sintonia com o entendimento de pessoas prudentes, equilibradas e sensatas e que atenda à finalidade precípua que a lei estabelece (MELLO, 2002, p.91).

Ainda que existam valorações distintas sobre uma mesma situação, o que é razoável deve situar-se dentro dos limites aceitáveis, daí porque o cancelamento do precatório não se mostra razoável. Poderiam ainda ser invocados os princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, razoável duração do processo, eficiência e segurança jurídica.

Tal interpretação pode ser feita, inclusive, em caso de ausência do trânsito em julgado dos embargos à execução e caso esse trânsito ocorra antes do momento do pagamento de antecipação ou em ordem cronológica sem alteração da sentença ou acórdão proferidos nos embargos à execução, pois terá sido implementada a situação de regularidade do precatório antes do seu pagamento, relembrando que o equívoco da determinação de expedição do precatório sem o trânsito em julgado dos embargos à execução e o equívoco da distribuição do precatório foram do Poder Judiciário.

Porém, caso o trânsito em julgado dos embargos à execução não ocorra no momento do pagamento da antecipação ou da ordem cronológica, ou, ocorrendo anteriormente, haja alteração do valor constante do ofício que gerou o precatório, deve-se promover o cancelamento do precatório diante da pendência de irregularidade que obsta o pagamento, observando-se, em qualquer caso em que seja realizado, na prática, o cancelamento do precatório por vício em sua formação decorrente de equívoco do Poder Judiciário, que, se ficar configurado prejuízo decorrente deste cancelamento, deve ser ressalvado ao credor prejudicado o direito de exigir perdas e danos.

Assim, inviável o cancelamento do precatório por ausência da documentação prevista no art. 5º da Resolução 115/2010 pelos motivos acima expostos, podendo haver requisição de tais documentos faltantes aos Juízos de primeiro grau à medida em que identificada a irregularidade no decorrer do manuseio dos processos, devendo o Juízo de primeiro grau, inclusive, encaminhar ofício, justificando a inexistência do documento se for o caso e promover o respectivo suprimento.

 

 

 

 

Autora: Raquel Santos de Santana é bacharel em Direito pela UNIT-Sergipe, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera e servidora Pública do Tribunal de Justiça de Sergipe.


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