Autores:Hermes Zaneti Jr. e Carlos Frederico Bastos Pereira (*)
Em célebre ensaio, Arthur Schopenhauer afirma que é possível utilizar de estratagemas para vencer um debate sem ter razão. Um dos estratagemas mais conhecidos é atacar com o argumento do absurdo — a reductio ad absurdum —, que “consiste em provar a absurdidade de uma tese mostrando que ela leva a pelo menos uma consequência notoriamente absurda”[1].
O debate sobre a vinculação aos precedentes judiciais está polarizado no Brasil desde a tramitação do projeto no Congresso Nacional. De um lado, parcela da doutrina enxerga nos precedentes uma absorção inadequada de outra cultura, causadora de ruptura catastrófica com os princípios da legalidade e da separação de poderes — daí porque inconstitucional; a outra parte da doutrina visualiza nos precedentes uma mudança decorrente na teoria da interpretação e, consequentemente, na Teoria do Direito, e não uma mera importação do Common Law, de modo que a vinculação aos precedentes é imperativo da racionalidade, coerência, segurança jurídica e igualdade — constitucional, portanto[2].
As críticas estão direcionadas, principalmente, à suposta invasão na competência legislativa de produzir normas abstratas e gerais, alegando que o Poder Judiciário não está autorizado a “legislar” — salvo quando permitido pela Constituição Federal, como no caso das súmulas vinculantes. O rol do artigo 927 do CPC/2015, então, seria manifestamente inconstitucional[3].
Não se pode negar que o modelo de precedentes adotado pelo Código de Processo Civil de 2015 representa uma mudança de paradigma não só no Direito Processual do país, mas na cultura jurídica brasileira como um todo. Sendo assim, como toda e qualquer mudança de paradigma, é necessário que eventuais dogmas sejam questionados para que se tenha uma compreensão do tema. Perceba-se, desde logo, o que mudou foi a Teoria do Direito, e não uma colonização da cultura norte-americana em solo brasileiro.
Sempre foi disseminado que a formação jurídica brasileira pertence à tradição do Civil Law e, por conseguinte, se baseia única e exclusivamente no Direito legislado. Do outro lado dessa tradição estão os países do Common Law, cujo Direito não é pautado em legislações, mas nos precedentes judiciais, o chamado judge make-law.
Esse apego irrestrito à lei é um resquício da Revolução Francesa, momento histórico em que foi necessário quebrar o paradigma dos arbítrios estatais com a instituição da lei escrita para assegurar a liberdade individual dos cidadãos como instrumento de sua autonomia. Nesse contexto, a separação de poderes foi erigida a um patamar de fiel da balança na harmonia entre as funções do Estado: o Legislativo produz normas, o Executivo as implementa, e o Judiciário as aplica em casos concretos, sem alterar seu conteúdo ou interpretar as leis — poder nulo, juiz boca-da-lei.
Não foi diferente o destino dessa tradição no Brasil, visto que o CPC/1973 definiu a lei como fonte primária e única do Direito (artigo 126), relegando à jurisprudência um papel subsidiário e meramente persuasivo. Predominava a ideia de que o julgador deveria buscar a vontade concreta da lei ou do Direito para aplicá-lo (mens legis ou mens legislatoris), rechaçando a visão de que juízes efetivamente interpretariam textos normativos — dentre eles a legislação — para tomar suas respectivas decisões.
Contudo, os tempos são outros. O avanço na teoria da interpretação jurídica, mormente considerando a diferenciação entre texto e norma e a centralidade que esta assumiu no campo da Teoria do Direito[4], evidenciou que a atividade de julgar tornou-se indissociável da atividade de interpretar, afinal, interpretar é decidir. A lei e os demais atos normativos, portanto, são apenas o ponto de partida, sendo a norma resultado, e não pressuposto da interpretação.
Essas premissas são fundamentais para visualizarmos que em muitas oportunidades os juízes se depararão com textos vagos e normas ambíguas cuja aplicação reclama decisões interpretativas que tratam do significado da norma legal e a ela acrescentam um conteúdo reconstruído. Ora, os textos possuem um nível de indeterminação irredutível ao zero, por serem expressos em linguagem e pela impossibilidade de se atribuir um significado que perdure em uma sociedade complexa cujos hábitos, costumes e práticas mudam no tempo e no espaço.
Nestes momentos em que uma dúvida sobre o efetivo significado do texto normativo necessita de uma decisão do intérprete para dirimi-la, haverá a chamada interpretação operativa[5], conceito sugerido inicialmente por Luigi Ferrajoli e desenvolvido por Jérzy Wrobléswki para traduzir as hipóteses em que há reconstrução da norma pelo intérprete na atividade jurisdicional e a devolução ao ordenamento jurídico de conteúdo normativo reconstruído.
Com efeito, todas as vezes em que houver interpretação operativa abrir-se-á a possibilidade para a formação de um precedente (do ponto de vista material), desde que se enquadre nas hipóteses qualificadas como vinculantes pelo artigo 927 do CPC/2015 (do ponto de vista formal). Em sentido contrário, quando a norma for simplesmente aplicada, sem qualquer reconstrução do seu conteúdo, é a lei que será aplicada. O mesmo ocorre quando o leading case é aplicado sem alterar seu conteúdo normativo, a nova decisão com base no precedente não é ela mesmo um precedente, mas apenas uma decisão.
Para melhor ilustração, exemplificaremos um caso de intepretação operativa[6]. O artigo 700 do CPC/2015 prescreve que a ação monitória será ajuizada com base em “prova escrita”, um termo vago que impõe ao juiz proferir uma decisão diante desta dúvida interpretativa. O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu por meio de precedentes que o contrato de abertura de conta corrente acompanhado de extrato bancário e o cheque prescrito constituem exemplos de prova escrita, inclusive, sumulando o entendimento (súmulas 247 e 299). É exatamente nesses casos em que serão consolidados precedentes visando estabelecer o que é e o que não é uma prova escrita.
A compreensão de que os juízes, por meio da interpretação operativa, acrescentam ao ordenamento jurídico o conteúdo reconstruído dos textos normativos é de extrema relevância para combater a equivocada assertiva de que o Poder Judiciário, com a incorporação de um modelo de precedentes pelo CPC/2105, estaria “legislando”.
Essa expressão, por sinal, é uma contradição em termos por dois motivos.
A uma, porque não há violação ao princípio democrático e à separação de poderes. A criação da norma — geral e abstrata — é e continuará sendo uma prática privativa do Poder Legislativo, uma vez respeitados os aspectos formal, consistente na liberdade de conformação do legislador no devido procedimento legislativo, e material, correspondente à proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais (artigo 5º da CF). A reconstrução da norma, por sua vez, é tarefa ínsita à atividade jurisdicional em razão da impossibilidade de ser criada uma norma do vazio, devendo o Poder Judiciário reconstruir os significados normativos de acordo com a Constituição Federal, a legislação infraconstitucional e a tradição jurídica (artigo 1º do CPC/2015). A norma-precedente é geral e concreta, e não geral e abstrata, como alegam seus críticos.
A duas, porque não há violação ao princípio da legalidade. A legalidade neste particular deve ser compreendida não como lei em sentido estrito, mas como a conformidade com o ordenamento jurídico constitucional, aliás, como já consta do artigo 140 do CPC/2015. A atividade do julgador sempre será tendencialmente cognitiva, na medida em que partirá da lei e demais textos normativos para que um precedente seja construído. A lei, portanto, é o primeiro limite à discricionariedade judicial em um modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes[7].
Ao conduzir a questão ao argumento ad absurdum de que o Poder Judiciário passará a “legislar”, essa parcela da doutrina acaba por autofragilizar o próprio argumento de inconstitucionalidade do artigo 927. Ora, se as normas previstas no CPC/2015 são inconstitucionais, também seriam aquelas relativas às súmulas vinculantes, já que foram instituídas por emenda (constituinte derivada) e são igualmente passíveis de controle de constitucionalidade. Nem mesmo no controle de constitucionalidade o juiz está legitimado a legislar, a expressão “legislador negativo” não traduz a função “legislativa” do tribunal.
O CPC/2015 é um código do Estado Democrático Constitucional (artigo 1º), com um compromisso interno de prestar a tutela jurisdicional de forma tempestiva, adequada e efetiva (artigo 4º) e um compromisso externo de preservar a coerência e integridade do ordenamento jurídico (artigo 926). O cumprimento desses predicados somente ocorrerá mediante a consolidação dos dois discursos produzidos pela decisão judicial: o discurso do caso concreto, visando à tutela dos direitos para as partes envolvidas, e o discurso do precedente, em prol da unidade do Direito para o ordenamento jurídico[8].
O modelo de precedentes do CPC/2015 tem o potencial de ser a maior contribuição do Direito Positivo brasileiro aos anseios de um sistema jurídico mais racional, desde que a sua aplicação seja compreendida a partir da integração de trabalho entre juízes e legisladores, com a finalidade voltada para a tutela dos direitos.
Olha-se aqui pela janela, para o futuro do Direito; não pelo retrovisor, para aquilo que vivemos até hoje. A lei poderá significar uma importante mudança cultural, cabe aos juristas e aos tribunais assumir o compromisso interpretativo e garantir sua operabilidade.
Autores:Hermes Zaneti Jr. é promotor de Justiça no Espírito Santo e professor da Ufes. Tem pós-doutorado em Direito pela Università degli Studi di Torino, doutorado em Teoria e Filosofia do Direito pela Università deglie Studi di Roma Tre e doutorado e mestrado em Direito Processual pela UFRGS. É membro do International Association of Procedural Law (IAPL), do Instituto Ibero-americano de Direito Processual (IIDP) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).
Carlos Frederico Bastos Pereira é advogado no Espírito Santo, mestrando em Direito Processual pela Ufes e pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).