Bernardo Menicucci Grossi *
A questão que se discute acerca da deteriorização da privacidade em consonância com o desenvolvimento tecnológico e sua respectiva incorporação pela sociedade ainda é controvertida no mundo jurídico. Muitas são as dúvidas que afloram no momento em que tentamos entender um mundo novo através de velhos preceitos. Neste sentido, encontra-se o conceito de privacidade, apontado na obra clássica de Louis Brandeis e Samuel Warren. No entanto para analisar o assunto e seus diversos efeitos nas relações jurídicas, mister se faz apontar um conceito atual da privacidade, que vai muito além do antes preconizado direito de estar só.
Não há, na história da humanidade, momento no qual a privacidade tenha sofrido maiores abalos frente os avanços científicos. A criação de bancos de dados, o rastreamento do uso de cartões de crédito, o aparecimento de câmeras de vigilância em locais públicos e a monitoração dos empregados no ambiente de trabalho, para não falar em cookies e spam , são apenas alguns exemplos de como a esfera íntima do indivíduo sofre maiores violações hoje com o desenvolvimento de tecnologias digitais armazenando informações que persistem fidedignas com a ação do tempo, do que no passado. A habilidade de capturar informações e dados sobre a vida privada de determinado indivíduo tornou-se muito maior e eficiente. Este fato entra em disparidade com a letra morta da lei que, em muitos países, ainda não acompanhou a inovação tecnológica dos tempos atuais.
A maioria das nações ainda não incorporou uma política normativa de privacidade fundada em bases seguras, o que se traduz, necessariamente, na permissibilidade de certas práticas que se obstinam a violar nossa privacidade.
Partindo para uma análise mais específica da questão, podemos destacar alguns esforços estrangeiros no sentido de determinar uma aplicação mais eficaz do direito em questões ainda controvertidas na doutrina nacional, como o poder do empregador em monitorar os atos de seu empregado no uso de e-mail e internet.
O Reino Unido já adotou vasta legislação sobre o assunto.
Neste sentido, vale salientar que a Regulation of Investigatory Powers Act 2002 trata da interceptação de comunicações em sistema privado de telecomunicações. Dessa maneira, o empregador tem o direito de monitorar o uso que seu empregado faz do e-mail desde que autor e destinatário tenham consentido com a interceptação (lawful authority). Além disso, a Telecommunications Regulations 2000 , outorga o poder (lawful authority) ao empregador de interceptar as mensagens de seus empregados em circunstâncias específicas. De acordo com essa lei, desde que a monitoração seja de comunicação relevante à atividade do empregado, e que o empregador tenha tomado todas as providências necessárias e possíveis para dar ciência a todos os envolvidos de que as mensagens podem ser interceptadas, é permitido o monitoramento nas circunstâncias em que: a) se queira fazer prova de um fato; b) para verificar se os empregados estão agindo de acordo com o perfil previamente estipulado; c) para verificar ou demonstrar o padrão que consegue ou conseguiria atingir se o empregado usasse o sistema para seu dever, (e.g. casos de controle de qualidade e treinamento de funcionários); d) para prevenir ou investigar um crime; e) para investigar ou detectar uso não autorizado do sistema de telecomunicações; f) para assegurar a efetiva operação do sistema (proteção contra vírus, hackers, e para fazer backup); g) e para determinar se existem comunicações relevantes ao empregador (e.g. casos de ausência do empregado). A Data Protection Act (DPA) , em sua Parte II, seção 7 (1) (a) (b), dispõe que o indivíduo que terá seus dados manipulados por terceiro tenha (a) prévio conhecimento de que seus dados serão processados por ou em benefício do controlador das informações e (b) que lhe seja dada uma descrição (1) dos dados que foram colhidos, (2) dos propósitos aos quais servirão o processamento de dados, e (3) dos destinatários que terão ou poderão ter acesso a tais dados. Não obstante, a Human Rights Protection Act é o instrumento pelo qual o Reino Unido incorporou a Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais sob a égide de seu direito interno. Esta disposição aplica-se apenas a entes de caráter público, que devem observar o disposto no artigo 8° da Convenção de que ao monitorar o e-mail de empregados, deve ser respeitado seu direito à vida privada.
A Datenschutz , autoridade alemã responsável pela proteção de dados pessoais, recentemente compilou um conjunto de regras e referências que dizem respeito ao uso de ferramentas de e-mail e internet pertencentes ao empregador.
Este estudo norteia a regulação da matéria na Alemanha especificando que (1) o sistema de monitoração de um empregado que tem acesso à internet deve ser arquitetado de tal modo que nenhuma ou poucas informações sejam coletadas, sendo que o uso dessas ferramentas não deve levar ao controle absoluto das atividades do indivíduo; (2) os empregados devem ser informados sobre os propósitos que permitem seu acesso a internet no trabalho e de que estarão vinculados a tal política de controle; (3) o monitoramento de condutas suspeitas deve ser previamente regulado através de ajuste. A comunicação entre indivíduos, a priori, continua protegida contra o princípio do monitoramento; (4) é passível que se armazene dados para backup ou outro fim análogo necessário à segurança das informações ou ao habitual funcionamento das atividades empresariais em que o perfil de comportamento do usuário não seja usado individualmente; (5) caso seja permitido o uso de e-mail como uma ferramenta de trabalho, ele será protegido pelo segredo das telecomunicações. O empregador não deve analisar seu conteúdo, devendo tomar as devidas precauções técnicas e organizacionais para tanto; (6) O empregador não é obrigado a permitir o uso da internet no trabalho. No entanto, caso o faça, tal permissão poderá ser feita de acordo com os princípios especificados no estudo e dependendo do consentimento do empregado com o monitoramento; (7) As mesmas condições que regem o uso da internet devem reger o uso da intranet da empresa.
Na Dinamarca foi acordado, já no fim de outubro de 2002, entre a Dansk Handel & Service e a HK Service uma série de regras que deverão reger o uso da internet e do e-mail no ambiente de trabalho. Segundo o ajuste, os empregadores devem amoldar sua conduta de acordo com os seguintes princípios: (1) o uso de internet e e-mail de empregados deve ser monitorado apenas se houver relevante razão para tanto, devendo haver prévia advertência da monitoração; (2) a extensão do uso privado da internet deve ser claramente estabelecida; (3) o acesso a e-mails discriminados como ‘privados’ somente pode ocorrer com o consentimento do empregado. E se tal anuência não foi concedida tais e-mails devem ser abertos apenas se for crucial para razões válidas e documentadas ; (4) devem ser determinadas regras a respeito do acesso a e-mails de empregados dispensados ou ausentes do trabalho, assim como regras para seu arquivamento e eliminação; (5) deve haver clareza na determinação da permissibilidade do conteúdo de informações veiculadas, e em qual magnitude é permitido o download; (6)
Nos Estados Unidos, o primeiro precedente que diz respeito à violação da esfera íntima dos indivíduos conjugado com o uso de meios eletrônicos pode ser encontrado no caso Olmstead vs. United States . Nsta circunstância, passada no período da chamada “lei seca”, Olmstead era um comerciante que contrabandeava licor para o interior do país. Todos os cidadãos americanos tem o direito à privacidade garantido pela 4ª Emenda da Constituição. Agentes federais americanos usaram escutas telefônicas nas linhas próximas a casa e ao escritório de Olmstead coletando material que serviu de prova em seu julgamento. Em sua defesa Olmstead alegou que as escutas telefônicas violavam a 4ª Emenda, a qual protegia o direito das pessoas de estarem seguras em suas “pessoas, casas, documentos e efeitos”. O que em uma interpretação literal da lei dizia respeito apenas a buscas e apreensões que envolviam transgressão física da propriedade. Realmente, os agentes não tinham violado a propriedade de Olmstead ao posicionar escutas telefônicas nas ruas perto de sua casa, além do que, as conversas gravadas não consistiam em bens materiais, tais como documentos pessoais, e conseqüentemente não eram protegidos pela 4ª Emenda. Anos mais tarde a Suprema Corte dos Estados Unidos reviu sua posição no tema através do caso Katz vs. United States , julgando que a referida Emenda não protegia lugares, mas pessoas. Essa decisão valeu-se da expectativa subjetiva de privacidade que as pessoas têm quando agem ou estão em determinados locais. Segundo o Juiz Harlan, “a 4ª Emenda protege pessoas, e não lugares. (…) No meu entendimento, que surgiu de decisões anteriores, é de que há um requerimento dual. Primeiro, que a pessoa tenha exibido uma expectativa atual de privacidade. E segundo, que a expectativa seja aquela que a sociedade esteja preparada para reconhecer como razoável. Portanto, a casa de um homem é um lugar onde ele espera privacidade, contrapondo-se a objetos, atividades ou declarações que ele exponha à vista de outros, que não podem ser protegidos uma vez que nenhuma intenção de mantê-los privados foi caracterizada”.(tradução própria).
Essa expectativa de privacidade nos interessa no momento em que é transposta ao ambiente de trabalho. Segundo essa doutrina, há violação de privacidade caso o indivíduo, sujeito da monitoração, tenha razoável expectativa de que sua comunicação não está sujeita a interceptação por parte de terceiros. Neste sentido, a jurisprudência americana tem sido no sentido de garantir aos empregados uma expectativa muito baixa de privacidade, uma vez que, partindo do pressuposto de que a habilidade de monitorar mensagens eletrônicas é notória, não há razões para se acreditar que os e-mails não serão lidos (violados). Este argumento se firma no caso United States vs. Wesley J Slanina , onde se considera justa a invasão de privacidade no ambiente de trabalho, sendo desnecessário um mandado judicial para a inspeção.
Volvendo-se à ordem legal brasileira, e, mais especificamente, às decisões prolatadas pelos nossos Tribunais, uma vez que não há dispositivo legal específico que trate da matéria, podemos destacar dois veredictos recentes e que causaram grande alarde tanto na comunidade jurídica quanto na acadêmica.
Ambos trazem indícios de que passível é a monitoração do empregado, com algumas ressalvas, baseando-se no direito de propriedade dos meios de trabalho que lhe são cedidos dentro do ambiente empresarial.
O primeiro trata-se de Acórdão proferido pela 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, onde se determinou que:
“(…) “Email” não caracteriza-se como correspondência pessoal. O fato de ter sido enviado por computador da empresa não lhe retira essa qualidade. Mesmo que o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços, o poder diretivo cede ao direito do obreiro à intimidade (CF, art.5º, inc.VIII). Um único “email”, enviado para fins particulares, em horário de café, não tipifica justa causa. Recurso provido.” (ROPS – 20000347340 ano: 2000, publicado no D.J. em 08.08.00) (grifo nosso)
Veja a íntegra da decisão aqui .
Ora, considerando que o e-mail enviado no intervalo intrajornada não pode justificar a demissão por justa causa, estamos admitindo expressamente que aquela mensagem de caráter particular enviada no horário de trabalho justifica.
O segundo, e mais notório, trata-se de recente Acórdão articulado pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 10ª Região, no qual a questão foi mais bem discutida como se vê a seguir:
“Não há qualquer violação ao e-mail do reclamante, posto que isto não era de sua propriedade. Sendo o e-mail propriedade da reclamada, a mesma poderia ter amplo conhecimento da forma como estava sendo utilizado.” (grifo nosso).
(…)
“Considerando que os equipamentos de informática são disponibilizados pelas empresas aos seus funcionários com a finalidade única de atender às suas atividades laborativas, o controle do e-mail apresenta-se como a forma mais eficaz, tanto de proteção e fiscalização às informações que tramitam no âmbito da empresa, inclusive sigilosas, quanto de evitar o mau uso do sistema internet, que pode, inclusive, atentar contra a moral e os bons costumes, causando à imagem da empresa prejuízos de larga monta.” (grifo nosso).
Veja a íntegra da decisão aqui .
Neste caso a decisão fundamentou-se muito mais no direito de propriedade dos equipamentos do que num emergente poder diretivo do empregador de monitorar as práticas de seus empregados. Mas é claro que se levarmos em conta o princípio da propriedade a tal extremo, não deveríamos esquecer de que ela também deverá atender a sua função social, o que dá guarida ao uso dos equipamentos também para fins particulares.
A doutrina vem se firmando no sentido de garantir o direito do empregador de monitorar o uso da internet, e conseqüentemente da ferramenta de e-mail, sendo essa tendência acompanhada por inúmeros julgados estrangeiros.
Uma recente pesquisa realizada pela WebSense revela a realidade trazida pelo mau uso da internet ao mundo empresarial. Segundo essa pesquisa, a utilização da internet para fins diversos daqueles para os quais essa ferramenta foi fornecida ao empregado tem causado danos de, aproximadamente, US$ 85 bilhões/ ano às empresas americanas.
A questão que tem se discutido sobre os limites que o empregador deve observar ao monitorar o uso de e-mail e internet de seus funcionários é apenas uma vertente de uma questão ainda maior, a intrusão de terceiros na esfera íntima do indivíduo. Admitindo-se tal prática, como tem sido a tendência na maioria esmagadora dos países, estamos assumindo que houve uma redução considerável na quantidade, se é que se pode precisar em números, de privacidade que nos é provida pelo Estado.
Neste sentido, a monitoração do uso não só do e-mail, mas da internet como um todo, tem sido admitida tanto pelos primeiros julgados brasileiros acerca da matéria quanto pela uníssona jurisprudência estrangeira. Seja pelo direito de propriedade das ferramentas de trabalho (hardware e software) que são cedidas ao empregado, seja pela cautela em se resguardar de possíveis danos à própria imagem ou danos que deverão ser ressarcidos a terceiros, a monitoração eletrônica encontra fortes fundamentos. O que se faz necessário para que não se caracterize uma invasão desmotivada de privacidade é a prudência do empregador em estabelecer uma sólida política de monitoração precedida de prévia advertência a todos os funcionários que de alguma forma poderão suportar o ônus desta prática. Cientificação essa que deverá, se possível, constar em instrumento formal consubstanciado em Acordo ou Convenção Coletiva, ou até mesmo no próprio contrato individual de trabalho.
A forma com que tal monitoração é permitida varia de jurisdição para jurisdição, sendo exigida, em certos casos, política prévia que antecipe a monitoração ou uma simples advertência de que determinados tipos de conduta não serão permitidos com o uso de equipamento de propriedade da empresa. Sendo certo que tais condutas devem ser claramente definidas. A cautela se deve, especialmente, porque no decorrer da monitoração o conteúdo da mensagem de terceiros alheios à relação empregatícia em questão estará sujeito a violação. A relação de trabalho, além da propriedade dos meios utilizados, é a única caracterizadora do nexo de causalidade entre o envio de uma mensagem e a possibilidade de sua interceptação/monitoração por parte do empregador. Portanto, precauções de maior porte devem ser tomadas no momento em que passarmos a tratar da tutela privada de mensagens particulares de terceiros, quais sejam aquelas destinadas ou advindas de pessoas alheias à atividade empresarial.
Faz-se, neste momento, necessária a distinção entre duas condutas de relevante interesse para o presente estudo. A primeira diz respeito à mensagem de caráter privado, emanada de empregado, durante o horário de trabalho, enviada ou recebida através do correio eletrônico cedido pela empresa. A este respeito, temos que, como tem se demonstrado até a presente ocasião, com todas as ressalvas já feitas, há uma brecha entre este tempestuoso conflito de interesses que permite a monitoração das atividades do empregado através de meios eletrônicos. A segunda diz respeito à mensagem de caráter privado, emanada do empregado, através de webmail ou conta de correio eletrônico particular, não cedida pela empresa. Temos que, mesmo levando em conta que a monitoração de correio eletrônico traz consigo a monitoração da internet como um todo (ou seria o contrário?), esta mensagem estaria, sim, protegida pelo do sigilo das comunicações, uma vez que, apesar da relação empregatícia estar presente, e, apesar do hardware usado ser cedido pela empresa, há que se fazer uma ponderação de que nem a monitoração e nem a privacidade devem prevalecer como preceitos absolutos. A monitoração eletrônica não deve levar ao total controle das atividades desempenhadas pelo empregado.
Há que se pesar a influência do poder de monitorar do empregador quando o empregado não se valer apenas da estrutura cedida pelo empregador para se comunicar. Por esta razão não se cogita a hipótese de monitoração de conversas telefônicas provenientes de telefone celular do empregado quando este se situa nos limites físicos da empresa; premissa que se impõe a priori é a do sigilo das comunicações e do direito a intimidade, que apenas devem ceder em situações sui generis.
Revista Consultor Jurídico
Bernardo Menicucci Grossi é acadêmico de Direito na PUC/MG – Betim e estagiário no Aristóteles Atheniense Adv. Participante do Internet Law Program (Berkman Center for Internet & Society at Harvard Law School) em 2002.