Precisamos falar (novamente) sobre aborto no Brasil

Autor: Leonardo Vizeu Figueiredo (*)

 

Recentemente, a comunidade jurídica foi tomada de assalto por mais uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre aborto. A questão girou em torno da concessão de Habeas Corpus para acusados da prática de crime de aborto induzido em gestante, com o consentimento desta, além de formação de quadrilha. Em seu voto-vista, o ministro Roberto Barroso concedeu de ofício a ordem de soltura dos réus e considerou que a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. Entre os bens jurídicos violados, apontou a autonomia da mulher, o direito à integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero, além da discriminação social e o impacto desproporcional da criminalização sobre as mulheres pobres.

Data máxima vênia aos judiciosos argumentos lançados, discordamos dos mesmos pelas razões que passamos a expor.

Inicialmente, sob aspectos de Teoria dos Poderes Constituídos, há que se ter em mente que nosso legislador constituinte originário reservou à União competência privativa para legislar sobre direito penal, a teor do artigo 22, I, da Constituição da República Federativa do Brasil (artigo 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;). Assim, não cabe ao Judiciário, ainda que via Corte Suprema, criar uma excludente de ilicitude sem previsão legal, mormente por se tratar de matéria sob a privativa reserva legal do Congresso Nacional. As hipóteses em que o aborto pode ser legalmente realizado são as descritas no artigo 128, inciso I (aborto necessário para salvar a vida da gestante) e II (aborto no caso de gravidez resultante de estupro) do Código Penal. Não cabe a mais ninguém ampliar o rol de excludentes criminais, a não ser ao legislador ordinário, que detém e expressa competência constitucional para tanto. O que se presenciou na decisão do ministro foi, salvo melhor juízo e maior engando, usurpação de competência legislativa.

Pela ótica da Teoria da Norma, havendo regra expressa a ser aplicada, não cabe ao operador do direito, seja o julgador, o parecerista ou qualquer outro, suplantar a regra expressa e escrita, com base em princípios genéricos de conteúdo vazio. Observe-se que a fundamentação dogmática no ministro relator foram os diversos direitos fundamentais da mulher. Todavia, de acordo com a Organização das Nações Unidas, são direitos fundamentais da mulher, dentre outros, nos termos da Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher de 1948, a faculdade de decidir ter ou não ter filhos e quando tê-los.

Recentemente, a ONU defendeu a descriminalização do aborto para mulheres cujos fetos fossem acometidos do vírus da zika. Porém, ficou expresso na Declaração Política da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2016 sobre o Fim da AIDS que somente será admitido o aborto onde tais serviços são permitidos pela legislação nacional [1]. Conforme expresso nas Nações Unidas:

Buscando respostas transformadoras para a AIDS a fim de contribuir para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento de todas as mulheres e meninas (…)

61 (j): Remetemo-nos a todas as consequências para a saúde, incluindo as consequências para a saúde física, mental e sexual e reprodutiva, da violência contra mulheres e meninas, fornecendo serviços de cuidados de saúde acessíveis que sejam sensíveis ao trauma e que incluam medicamentos baratos, seguros, eficazes e de boa qualidade, suporte de primeira linha, o tratamento de lesões e apoio à saúde psicossocial e mental, contracepção de emergência, aborto seguro, onde tais serviços são permitidos pela legislação nacional, profilaxia pós-exposição para a infecção por HIV, diagnóstico e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, a formação de profissionais médicos para identificar de forma eficaz e tratar as mulheres vítimas de violência, bem como exames forenses por profissionais devidamente qualificados; (nossos grifos)

Assim, resta claro que não há, no âmbito das Nações Unidas nenhum reconhecimento do aborto como direito universal, humano ou fundamental da mulher. Some-se a isso que a legislação brasileira não reconhece a juridicidade do aborto como prática de controle de natalidade ou política de saúde pública, somente sendo excepcionalizado nas exceções do artigo 128, incisos I (risco de vida à gestante) e II (fruto de violência sexual) do Código Penal. Portanto, de acordo com a UNAIDS/ONU não há atualmente como se impor a prática de aborto na República Federativa do Brasil, mormente por meio de manifestação judicial.

Outrossim, a decisão do Supremo Tribunal Federal ignora por completo os direitos paternos do genitor, em ser ouvido e decidir sobre a vida do nascituro. Ora, se homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e se a concepção envolve o concurso de ambos, ainda que por vias de inseminação artificial, como se afastar o pai de uma decisão dessa relevância? Vamos simplesmente revogar sua paternidade e seus direitos inalienáveis como genitor?

Em relação aos aspectos biológicos, a ciência já comprovou, de forma irrefutável, que há vida na união do espermatozoide com o óvulo e pela sua nidação, ainda que a vida esteja em um estágio latente. Se não for aplicado qualquer medida para expulsar o embrião ou o feto, a tendência é que aquele organismo se desenvolva e se torne uma pessoa. Há que se ter em mente que se deve garantir a todos o direito de nascer, como corolário inexorável e inafastável do direito à vida.

No que tange a aspectos de direito comparado, os países do hemisfério norte tendem a ser mais tolerantes com o aborto, permitindo-o, até uma determinada fase da gravidez, por livre manifestação de vontade da gestante. Em outras regiões do globo, via de regra, pune-se o aborto como crime, autorizando-o somente em condições excepcionais, tais como em casos de risco à vida da mãe, problemas de saúde física ou mental, gravidez oriunda de estupro, defeitos ou má formação do feto, bem como por fatores socioeconômicos, no qual a gestante faz prova que não tem condições de criar seu filho. Atualmente, poucos países, como a Nicarágua e o Chile, proíbem o aborto sem qualquer exceção.

Nos Estados Unidos da América, a liberalização do aborto foi oriunda de duas decisões judiciais que se tornaram paradigma sobre o tema (leading case), ambas do ano de 1973, a saber, Roe vs. Wade, na qual a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucionais todas as leis estaduais que proibiam o aborto, e Doe vs. Bolton, esta de menor repercussão. Em Roe vs. Wade [2], Norma Maccorvey, mulher de pouca instrução, que já tinha tido dois filhos entregues a adoção, sob o pseudônimo de Jane Roe, recorreu à Suprema Corte americana para exigir o direito de abortar uma filha, alegando ter sido vítima de estupro. Anos mais tarde, Norma Maccorvey descobriu fora induzida ao erro por seus advogados, ávidos por fama e pela repercussão do caso. Interessante que, mesmo depois da vitória judicial, Maccorvey, alheia a todos os acontecimentos e que sequer compareceu a corte para as sessões de julgamento, não abortou a terceira filha. Só soube do resultado pelos jornais tempos depois e admitiu ter assinado uma série de documentos e confissões sem a devida assistência. Atualmente, Norma Maccorvey é uma militante do movimento contra o aborto nos EUA (pró-vida) e assinou em 2005, agora consciente do que estava fazendo, uma petição a Suprema Corte, que foi negada, pedindo a anulação do julgamento de 1973.

Em que pese à permissividade da legislação com a prática do aborto em casos pré-estabelecidos, tanto no Brasil quanto na maioria do mundo, a discussão sobre o tema está longe de ter fim. De forma bem maniqueísta, o debate ficou bipolarizado entre os pró-escolha, abortistas, e os pró-vida, não abortistas. Os defensores de sua prática indiscriminada valem-se dos mais diversos argumentos. Afirmam que a mulher tem livre direito de disposição de seu corpo, que as clínicas clandestinas de aborto colocam a vidas das gestantes em risco, que os países que liberaram o aborto experimentaram, ao longo do tempo, queda em suas taxas de criminalidade. Por sua vez, os partidários do movimento pró-vida, independentemente de seus credos e convicções, fixam seu raciocínio na defesa do direito à vida. Interessante notar que muitos dos defensores do movimento pró-vida se tratam de abortistas arrependidos, como Norma Maccorvey.

Por fim, não há nada de religioso em se posicionar contra o aborto e a favor do direito à vida. Trata-se de uma postura de dignidade da pessoa humana que é amplamente defendida por diversos segmentos sociais, religiosos ou não. Bernard Nathanson foi um médico especialista em ginecologia e obstetrícia, diretor, na década de 1970, do Center for Reproductive and Sexual Health, considerada, à época, a maior clínica de abortos do mundo ocidental. Segundo seus cálculos, foi responsável direto por 5000 abortos, incluindo se filho. No final da década de 1970, após assistir por ultrassonografia a luta de um feto, em processo abortivo forçado, por sua sobrevivência, passou a atuar ativamente contra o aborto e pela vida. Encerramos essa segunda parte de nossas reflexões, destacando que a defesa da vida não tem credo, tampouco religião. Em que pese Norma Maccorvey ter se convertido ao cristianismo, Bernard Nathanson declarava-se um pró-vida sem religião, até meados dos anos de 1990, quando se converteu ao catolicismo.

 

 

 

 

 

 

Autor: Leonardo Vizeu Figueiredo  é procurador Federal, mestre em Direito Constitucional e diretor da Escola da AGU da 2ª Região. Advogado constitucionalista e economicista, presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB-RJ. Ex-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ (2013-2015).


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