Prerrogativa do chefe do Executivo de não aplicar lei inconstitucional

Autores: André Luiz Maluf e Renato Barcellos (*)

 

Com o fim do período eleitoral e a eleição de inúmeros novos titulares nas administrações públicas municipais, uma questão se impõe aos gestores eleitos: como lidar com a “herança legislativa” das antigas administrações? No Brasil, infelizmente, não é raro que os novos chefes do Poder Executivo se vejam diante de leis municipais inconstitucionais, muitas vezes aprovadas como o reflexo da forma mais rasa do populismo eleitoral que domina a política nacional. Destarte, uma das ferramentas mais polêmicas e delicadas que ressurge nesse cenário é a possibilidade do chefe do Poder Executivo negar aplicação à lei considerada inconstitucional mediante a expedição de Decreto Autônomo.

Inicialmente, a possibilidade do exercício de tal prerrogativa deve ser analisada sob uma perspectiva histórica. Segundo André Ramos Tavares a aceitação do controle de constitucionalidade repressivo realizada pelo chefe do Poder Executivo (através da não aplicação de lei considerada inconstitucional) passou a ser firmada após a Emenda Constitucional 16/65, em razão da legitimidade exclusiva do procurador geral da República, naquele período, para provocar o controle de constitucionalidade junto ao Judiciário. Tal admissão seria uma forma de evitar que o Chefe do Poder Executivo fosse obrigado a cumprir lei inconstitucional.

Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal admitiu o exercício dessa prerrogativa pelo chefe do Poder Executivo em julgado posterior à promulgação da Constituição de 1988. Segundo a corte, os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais. Também o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no mesmo sentido afirmando que a negativa de ato normativo pelo Chefe do Executivo reflete um poder-dever.

Parcela da doutrina endossa tal posicionamento: Elival da Silva Ramos, Hely Lopes Meirelles, Luís Roberto Barroso e J.J. Gomes Canotilho

. Gustavo Binenbojm, em obra que teve origem na sua dissertação de Mestrado afirma que o Poder Executivo não está autorizado e, muito menos, obrigado a “lavar as mãos” diante de um ato normativo que se lhe afigure inconstitucional, compactuando com a violação da Lei Maior.

Vale ressaltar que a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, através do Parecer 01/2011, de lavra do procurador André Rodrigues Cyrino, aprovado pela Procuradora Geral do Estado à época, Lucia Léa Tavares, manifestou-se favoravelmente à tese ora defendida. Em apertada síntese, o documento aduz que a possibilidade do não cumprimento de lei considerada inconstitucional pelo chefe do Poder Executivo é um poder-dever que a autoridade possui. Ademais, sustenta que o Decreto autônomo do chefe do Poder executivo deve ser precedido de Parecer da Procuradoria Geral opinando pela inconstitucionalidade e Representação de Inconstitucionalidade junto ao Tribunal de Justiça como forma de espancar definitivamente a lei considerada inconstitucional e dividir o ônus com o Poder Judiciário. Também a Procuradoria Geral do Município de Teresópolis, em parecer de lavra do primeiro autor, no bojo do Processo Administrativo 27388/2016, opinou no mesmo sentido.

Aqueles que criticam o uso de tal prerrogativa afirmam que tratar-se-ia de uma atuação inconstitucional que não faz mais sentido na ordem jurídica hodierna face à possibilidade de provocação do controle concentrado pelo chefe do Executivo e porquanto não existir dispositivo expresso na Constituição que permita o seu exercício.

Analisando a Constituição de 1988 de forma sistemática verificamos que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas (artigo 23, I). Quando falamos em entes federativos, tal incumbência se direciona aos agentes públicos que externam a atividade estatal. O artigo 84, XXVII aduz que compete privativamente ao Presidente da República (e por simetria aos Governadores e Prefeitos) exercer outras atribuições previstas na Constituição. Destarte, é possível extrair do texto constitucional norma que possibilita ao Chefe do Executivo negar aplicação à lei que considere inconstitucional.

Ricardo Perlingeiro vai além afirmando que não há apenas um dever de controle de constitucionalidade pelo administrador, mas, inclusive, de convencionalidade. Além disso, o autor cita como referência o parágrafo único do artigo 2º do Código Modelo de Processos Administrativos — Judicial e Extrajudicial — para Ibero-América que expressamente afirma que a autoridade administrativa poderá deixar de cumprir a lei ou o ato que considerar inconstitucional ou anticonvencional, representando ao órgão competente para a declaração de inconstitucionalidade ou de anticonvencionalidade.

Dois casos recentes merecem destaque. No município de Macaé (RJ) o prefeito editou o Decreto 175/2015 suspendendo o pagamento de determinados benefícios a servidores em razão de considerá-los inconstitucionais. O sindicato da categoria daquele município se insurgiu contra o ato normativo impetrando Mandado de Segurança. A liminar foi indeferida (posteriormente concedida mediante agravo de instrumento) e a segurança denegada em julgamento de mérito em 11/7/2016. O magistrado Josue de Matos Ferreira sustentou em sua fundamentação que a prerrogativa do chefe do Executivo negar cumprimento à lei ou qualquer ato que considere inconstitucional encontra respaldo doutrinário, não tendo sido revogada pelo advento da Constituição. A base que respalda o exercício daquela prerrogativa é a supremacia constitucional, de modo que, segundo o seu entendimento, aplicar lei inconstitucional significa negar aplicação à Constituição.

Também no município de Teresópolis (RJ) o prefeito editou o Decreto 4.832/2016 negando aplicação à lei municipal 3.474/2016 por entender que há violação da separação dos Poderes, da competência privativa da União, do princípio da juridicidade e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na ADI 1.923-DF.

Antes de finalizar esse ponto, sob a ótica do processo legislativo, três observações merecem destaque. Primeiramente, caso a lei seja sancionada pelo chefe do Executivo sem vetos, obviamente não poderá posteriormente negar aplicação a ela, já que o ordenamento jurídico considera abuso de direito o comportamento contraditório (venire contra factum proprio) e a supressio.

Em segundo lugar, notadamente, se o chefe do Executivo que sancionou a lei sem vetos tiver deixado o cargo e outro sucedê-lo, entendendo o segundo pela inconstitucionalidade, não há óbice para que o mesmo expeça decreto de não aplicação da lei ou ato normativo considerado inconstitucional.

Finalmente, e de forma análoga, no caso de sanção tácita, poder-se-ia expedir decreto de não aplicação da lei, eis que não houve manifestação expressa sobre tal ponto, e, sendo a inconstitucionalidade uma questão de ordem pública que é essencial para a coerência e integridade do ordenamento, não há óbice para o exercício de tal poder-dever nessa hipótese.

A fim de dirimir qualquer dúvida sobre a legalidade do exercício de tal prerrogativa, cumpre esclarecer que a negativa de aplicação de lei considerada inconstitucional não configura crime do chefe do Poder Executivo. O Decreto-Lei 201/67 foi recepcionado pela Constituição de 1988, como Lei ordinária e traz no seu artigo 1º crimes comuns (de caráter pessoal) aos quais o prefeito está sujeito a julgamento pelo Judiciário. Todos eles exigem a presença do elemento subjetivo doloso para que se configurem. O inciso XIV do artigo referido aduz que a conduta de negar execução à lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente é punível com a pena de detenção, de três meses a três anos.

Em obra sobre o tema Giovani da Silva Corralo, aduz que o chefe do Executivo não incorre no tipo do artigo 1º, XIV, quando a lei for manifestamente inconstitucional, de modo que se trata de exceção à incidência daquele tipo penal. Neste sentido, estando fundamentado o decreto que negue aplicação à lei considerada inconstitucional e desde que haja comunicação ao órgão legislativo competente, não há que se falar em prática de crime por ausência do elemento subjetivo dolo, o que claramente exclui a tipicidade. Ademais, em razão de estarmos diante do exercício regular de um direito (conforme extraído das regras constitucionais, da doutrina e dos julgamentos permissivos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça), igualmente é possível afastar a ocorrência de crime por ausência de ilicitude.

Para além das teorias dos diálogos constitucionais, do constitucionalismo difuso e do constitucionalismo administrativo a prerrogativa do chefe do Poder Executivo de negar aplicação à lei que considere inconstitucional, segundo a sua interpretação — no exercício de verdadeiro controle de constitucionalidade —, significa a abertura para o constitucionalismo executivo, inclusive como método de efetividade de direitos fundamentais. Basta pensar na hipótese onde a Câmara Municipal derruba o veto jurídico do chefe do Poder Executivo e aprova projeto de lei que, além de violar a sua competência privativa, atinge o núcleo essencial de um direito constitucional dos servidores públicos. Nesse caso o prefeito municipal, ao negar aplicação àquela lei inconstitucional via Decreto Autônomo, e determinar que os seus órgãos subordinados sigam esse entendimento, possibilita que aqueles servidores tenham seu direito constitucional garantido, além de reequilibrar a balança entre os Poderes. Como a teoria dos diálogos constitucionais prevê que o sentido da Constituição passa pelo Judiciário, pelo Legislativo e pela sociedade civil, repreendendo qualquer forma de interpretação unilateral, nada mais coerente que o Executivo também participe ativamente desse processo, sobretudo em razão da ausência de conhecimento técnico e burocrático dos demais agentes políticos em searas delicadas como saúde e orçamento. Privilegia-se, portanto, a sua capacidade institucional específica.

A prerrogativa vertida no presente artigo claramente abre portas para um diálogo institucional entre os três Poderes face à necessidade de divisão do ônus entre o Judiciário e Executivo além da necessária comunicação ao Legislativo. Protege-se a Constituição diante da competência comum dos três Poderes em zelar pela sua guarda (artigo 23, I). Criar-se-á uma triangulação interpretativa, não havendo que se falar em conduta autoritária ou anarquista do Executivo em face do Legislativo, mas, sim, em atitude compatível com o Estado de Direito que tem a Constituição no seu ápice, eis que toda a interpretação e aplicação de qualquer norma ou ato deve necessariamente passar pelo seu filtro.

Outrossim, em virtude da incidência dos mecanismos de checks and balances, o decreto poderá ser submetido à apreciação do Judiciário, mediante Representação de Inconstitucionalidade no tribunal, não podendo ser olvidado que a própria lei que deu ensejo ao Decreto Autônomo deverá estar sub judice junto ao mesmo tribunal antes da expedição do referido ato, o que, naturalmente, atrairá o julgamento por dependência da segunda Representação.

Com a nova composição das câmaras municipais e das prefeituras após as eleições de 2016, a prerrogativa ora analisada certamente ganhará corpo junto aos executivos municipais, de maneira que os gestores e as procuradorias locais devem estar atentos para as consequências políticas e jurídicas do seu exercício. Revela-se imprescindível que sejam observados os requisitos específicos para que a expedição do Decreto Autônomo siga os trâmites legais e as formalidades devidas, sob pena de banalizar e prejudicar relevante ferramenta institucional dialógica que garante a supremacia da Constituição e dos direitos fundamentais.

 

 

 

 

Autores: André Luiz Maluf é advogado, sub-procurador geral do Município de Teresópolis (RJ). Membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Estudou Direito Público Comparado na Universidade de Siena (Itália).

 Renato Barcellos  é advogado no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense.


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