Prestação de contas de campanha: um caso de inelegibilidade mal resolvido

Autor: Rodrigo Cyrineu (*)

 

No Direito Eleitoral, mais do que em qualquer outra área das ciências jurídicas, as coisas precisam ser chamadas pelo nome, mesmo cientes de que o ramo é detentor de certas peculiaridades pitorescas, a exemplo de uma ação com nome de recurso, como é o caso do RCED (recurso contra expedição de diploma), bem como a afirmação de que a inelegibilidade cominada decorrente de um ato ilícito não seria pena; sanção (STF, ADC’s 29 e 30), dentre tantas outras.

É o caso da punição decorrente do julgamento das contas de campanha como “não prestadas” pela Justiça Eleitoral, ou, melhor dizendo, as consequências decorrentes da omissão, por parte do candidato, no seu dever de prestar contas das arrecadações e dos gastos ao Judiciário.

A problemática começa pelo artigo 11 da Lei Geral das Eleições (Lei 9.504/1997), que exige, no ato de requerimento de registro da candidatura, a “certidão de quitação eleitoral” (inciso VI). O parágrafo 7º do mesmo artigo dispõe a propósito da aludida certidão, in verbis: “A certidão de quitação eleitoral abrangerá exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício do voto, o atendimento a convocações da Justiça Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, e a apresentação de contas de campanha eleitoral”.

A apresentação de contas de campanha eleitoral é o que interessa à discussão que ora se propõe. Sobre o assunto, o legislador elencou quatro hipóteses de julgamento de contas, indo desde a aprovação, passando pela aprovação com ressalvas, desaprovação e chegando até às contas não prestadas (Lei 9.504/1997, art. 30, incisos).

Como se viu, a quitação eleitoral, segundo a disciplina legal, englobará apenas a “apresentação” das contas de campanha, o que nos permite descartar a desaprovação como fator impeditivo à candidatura. O foco, portanto, é o julgamento das contas como “não prestadas”, a revelar descumprimento do dever de accountability no decorrer da disputa eleitoral.

No que se traduz o julgamento de contas como não prestadas? Simples: omissão no dever de prestação de contas, isto é, ato ilícito pelo qual o candidato é punido com o impedimento de obtenção da quitação eleitoral, sem a qual não pode concorrer a cargo eletivo. Surge, então, a problemática maior: trata-se de falta de condição de elegibilidade ou causa de inelegibilidade? Antes, porém, é preciso rechaçar veementemente as chamadas condições de registrabilidade, por absoluta ausência de amparo constitucional.

Deveras, é a Constituição Federal o locus inaugural dos impedimentos ao sufrágio passivo do cidadão. É esse documento político fundamental que tem o poder de estabelecer os requisitos a serem preenchidos pelo postulante (condições de elegibilidade) e os fatores impeditivos à postulação dos cargos de representação (causas de inelegibilidade), nada mais podendo ser disciplinado pelo legislador ordinário que vá além daquilo que disse o constituinte.

Não é outra a conclusão do professor Rodolfo Viana Pereira:

Inevitavelmente surgem as seguintes perguntas: qual a validade constitucional da imposição, por lei ordinária ou por resolução, de novos requisitos ao registro de candidatura que não derivam do mandamento constitucional? Pode o legislador ordinário, com fundamento na autorização legislativa prevista no artigo 14, parágrafo 3º, da CR/88 expandir as condições de elegibilidade? Ademais, pode o magistrado pressupor a existência de condições implícitas, extraindo-as indiretamente da Constituição de 1988? A resposta, a meu sentir, é um enfático “não”[1].

Nesse contexto, qualquer hipótese impeditiva criada pelo legislador ordinário que não tenha relação com aquelas hipóteses previamente estipuladas na Carta Magna estarão eivadas de inconstitucionalidade, daí porque não se sustentar a chamada teoria das condições de registrabilidade, na qual se tentou incluir, por longo tempo, a ausência de quitação eleitoral decorrente da não apresentação das contas.

Bom, mas se não é aquilo, algo deve ser. Voltemos, portanto, à pergunta que resiste a se calar. Com efeito, as ditas “condições de elegibilidade” são, na definição precisa de José Jairo Gomes, “exigências ou requisitos positivos que devem, necessariamente, ser preenchidos por quem queira registrar candidatura e receber votos validamente”[2]. Prossegue o autor asseverando que estão essas previstas no artigo 14, parágrafo 3º, da CF, a saber: (i) nacionalidade brasileira; (ii) pleno exercício dos direitos políticos; (iii) alistamento eleitoral; (iv) domicílio eleitoral na circunscrição do pleito; (v) filiação partidária; e (vi) idade mínima (a depender do cargo pleiteado).

O rol é exaustivo ou exemplificativo? Para o Tribunal Superior Eleitoral, “as condições de elegibilidade não estão previstas somente no art. 14, § 3º, I a VI, da Constituição Federal, mas também na Lei nº 9.504/97, a qual, no art. 11, § 1º, estabelece, entre outras condições, que o candidato tenha quitação eleitoral”[3].

Mais: há um argumento moralizador da corte superior, qual seja, o de que a “exigência de que os candidatos prestem contas dos recursos auferidos tem assento no princípio republicano e é medida que confere legitimidade ao processo democrático, por permitir a fiscalização financeira da campanha, verificando-se, assim, eventual utilização ou recebimento de recursos de forma abusiva, em detrimento da isonomia que deve pautar o pleito”[4].

Discordamos.

Quanto ao argumento moral (ou principiológico, como queira), parece ter mais razão o já citado professor Rodolfo Viana Pereira:

Pouco importa, nesse sentido, que a fruição do direito ao sufrágio passivo nasça do deferimento do registro. O fato é que o arcabouço jurídico que informa a análise e o (in)deferimento do registro deve derivar da permissão constitucional, sob pena de atentar contra a Constituição. Isto é, a circunstância de o direito de se candidatar derivar do deferimento do registro não significa que esta fase procedimental possa ser utilizada pelo legislador ordinário ou pelo magistrado como momento privilegiado para edificar plataforma moral não autorizada pela ordem constitucional[5].

Juridicamente, outrossim, tomamos a trilha diversa da predominante orientação da corte superior eleitoral. Sem dúvida, a Constituição apresenta hipóteses taxativas, não havendo espaço para a criação, pelo legislador, de hipóteses adicionais, devendo a interpretação, in casu, se dar de forma restritiva, sobretudo porque, a exemplo das “causas de inelegibilidade”, as “condições de elegibilidade” são “restrições, condicionamentos, em uma palavra, limitações ao direito político passivo”[6].

Conclusão idêntica chegou Rodrigo López Zilio ao asseverar não ser “cabível ao legislador ordinário criar condição de elegibilidade, além das existentes na Constituição Federal”[7]. Frederico Franco Alvim, com a precisão de sempre, afiança que a maioria doutrinária, com a qual concorda, “não reconhece a existência de condições de elegibilidade para além daquelas expressamente destacadas pelo art. 14, § 3º, da Constituição”[8].

Inevitável, portanto, a conclusão de que o impedimento decorrente da não prestação de contas de campanha eleitoral só pode ser, mas ainda não é(como se verá adiante), causa de inelegibilidade. Não só por não se configurar como “condição de elegibilidade”, mas porque ontologicamente a omissão no cumprimento de um dever legal e as consequências dela decorrentes não pode ser outra coisa senão uma punição, a configurar o obstáculo, então, inelegibilidade cominada.

A propósito do tema, leciona Adriano Soares da Costa:

Vem a talho aqui formular uma breve definição: a inelegibilidade cominada é a sanção imposta pelo ordenamento jurídico, em virtude da prática de algum ato ilícito eleitoral — ou de benefício dele advindo —, consistente na perda da elegibilidade ou na impossibilidade de obtê-la. Há perda, quando se corta cerce, pelo cancelamento do registro, a elegibilidade que se adquiriu, dada a prática ou benefício obtido de algum ato escalpelado pelo direito positivado; há obstáculo-sanção, quando o ordenamento especifica um determinado trato de tempo no qual o nacional fica impossibilitado de vir a registrar-se, como apenamento (= cominação de pena; sanção) decorrente de ato ilícito[9].

A não apresentação impede a diplomação (Lei 9.504/1997, artigo 29, parágafo 2º), tornando inócuo o registro e, ainda, impede, segundo a disciplina legal, a quitação eleitoral do candidato (Lei 9.504/1997, artigo 11, parágrafo 7º), sem a qual não poderá pleitear nova candidatura, de modo que se está, indubitavelmente, a se tratar de uma inelegibilidade.

Todavia, como se sabe, apenas a Constituição Federal ou lei complementar específica poderão dispor sobre causas de inelegibilidade (CF, artigo 14, parágrafo 9º[10]), de modo que a exigência de apresentação das contas como requisito para a quitação eleitoral prevista na Lei 9.504/1997, de statusmeramente ordinário, é chapadamente inconstitucional, daí o porquê de se falar de um caso de inelegibilidade mal resolvido.

Eneida Desiree Salgado, com a precisão de costume, reconhece que o constituinte “expressamente se refere à reserva de lei complementar para o estabelecimento de hipóteses de inelegibilidade infraconstitucionais”[11]. Como se vê, não há espaço para a previsão de hipóteses primárias de impedimentos ao sufrágio passivo na Lei 9.504/1997, o que acabar por congelar a eficácia da exigência, na certidão de quitação eleitoral, da apresentação de contas de campanha, porquanto tal providência deveria ser tratada na Lei Complementar 64/1990 (a qual dispõe sobre as inelegibilidades infraconstitucionais).

Disso resulta que todo e qualquer candidato que tenha suas contas de campanha não apresentadas não está impedido de se candidatar, revelando-se inconstitucional qualquer óbice que lhe for imposto nesse sentido, isto até que o Congresso Nacional, caso queira, discipline a matéria em lei complementar.

 

 

 

Autor: Rodrigo Cyrineu é advogado e consultor jurídico de partidos e campanhas eleitorais, além de membro-fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político).


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento