Otília Maria da Cruz Araújo
Desde a Antigüidade o homem, per si, sentiu a necessidade de criar regras que limitassem seus próprios atos para poder viver em harmonia dentro de uma sociedade. No entanto, ele sempre buscou uma maneira de burlar essas normas, fazendo sua vontade valer em detrimento de outrem, através, por exemplo, da violência.
Sempre houve extremo rigor no combate aos crimes sexuais no Brasil. Nas Ordenações e Leis do Reino de Portugal ou Código Philippino, apesar de os delitos estarem disposto de forma diferente da atual, sem ser dividido em capítulos e títulos, a violência com o propósito de satisfazer os prazeres sexuais constava no Quinto Livro, sob a rubrica do Título XVIII: “Do que dorme per força com qualquer mulher, ou trava dela, ou a leva per sua vontade”.
O Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, cuidava dos crimes sexuais em seu Capítulo II, sob a rubrica “Dos crimes contra a segurança da onra”, que protegia a liberdade do corpo em função das relações sexuais, dividindo-os em Secção, a saber: Secção I: Estupro; Secção II: Rapto; Secção III: Calúnia e Injúria.
Mais tarde, o Código de 1890 repreendia a violência com fim da satisfação sexual, sob a rubrica do Título VII, Capitulo I, a saber: “Da violência carnal”.
Desde então, foram criados novos preceitos, com o objetivo de defender a liberdade sexual, que surgiram como conseqüência da evolução do homem e do ordenamento jurídico, tornando sua conduta cada vez mais delimitada, a qual por sua vez, reflete nas sanções cominadas.
Nas Cartas Penais citadas acima, o crime de estupro era punido inicialmente com pena de morte, posteriormente foi cominada pena de prisão de três a doze anos acrescido do pagamento de dote. Logo depois, a punição aplicada era de prisão de um a seis anos. Atualmente, a pena é de reclusão de seis a dez anos.
A seguir será estudado a violência empregada na satisfação da libido e do apetite sexual, quando empregados contra um menor de quatorze anos.
O art. 224 do Código Penal prescreve sobre presunção de violência, em sua alínea “a” refere-se à menoridade.
Porquanto se alguém cometer um crime sexual contra vítima menor de quatorze anos, a violência poderá ser real ou presumida. A violência real ocorre quando não há o consentimento da vítima, aplicando a força ou grave ameaça. A violência presumida ocorre quando há o consentimento da vítima, todavia esse consentimento é inválido.
Importante saber se essa presunção é relativa ou absoluta. Entende-se que presunção absoluta ou juris et juris é aquela que não cabe prova em contrário e presunção relativa ou juris tantum é aquela que é cabível prova em contrário.
Para os que entendem ser essa presunção absoluta ocorrendo a situação ocorrerá necessariamente o crime independente do consentimento da vítima, é que conhecemos como a teoria innocentia consilli que consiste na consciência inocente do sujeito passivo, ou seja assume-se que a mesma não tem maturidade suficiente para discernir seus atos, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento.
Essa tendência é no mínimo fundamentada numa hipocrisia atual, nos tempos em que vivemos os meios de comunicação nos conduzem a uma vida desregrada onde prevalece o sexo e a sensualidade da mulher chegando-se confundir a promiscuidade e a vulgaridade .
Cada vez mais cedo devido a essa influência as meninas tendem a mostrar seu corpo ou usar a sensualidade com mais freqüência imitando o que é transmitido através da mídia como “marketing” para vender produtos. Esses produtos são baseados na fantasia que o mundo da mídia cria.Essas fantasias se configurariam em novelas, filmes, minisséries, teatro, músicas, revistas, show que tornam as atrizes poderosas exercendo um certo poder de sedução e atração perante e “diante” dos homens, ou melhor, conseguindo despertar o desejo masculino. Percebe-se, então, que existe todo um conjunto de antecedentes que são necessários observar antes de avaliar a maturidade sexual, uma presunção absoluta no caso em discussão seria no mínimo inviável.
A primeira grande falha acolhida pelo nosso Código Penal é que o Direito Penal de culpa não se adequa com presunções fáticas. Tendo em vista que cada um deve ser culpado pelo que faz conforme sua culpabilidade e intencionalidade (ou seja, pode-se culpar o autor por uma coisa que ele não tenha feito, acabando assim com o princípio que cada um é inocente até que se prove o contrário “presunção de violência”).
A verdadeira interpretação que se deve fazer do dispositivo supra é dando – lhe uma interpretação relativa, de onde se verifica se a vítima era realmente inocente, ou se sabia o que estava praticando, analisando a vida pregressa da vítima verificando sua forma de namoro e seu comportamento diante da sociedade, descaracterizando o crime quando a menor se mostrar experiente em matéria sexual ou por alguma forma despudorada, sem moral e corrompida.
Deve ser acima de tudo apurada a verdade real dos fatos, defender o princípio constitucional da presunção da inocência, no qual ninguém é considerado culpado antes da sentença final transitada em julgado, não devendo presumir fato que não existe, nem culpar ninguém em razão de tal presunção.
Seguindo o princípio processual penal da busca da verdade real, em que se deve procurar no fato do que realmente aconteceu sem presunções absurdas que levariam a uma conseqüente injustiça.
Para a psicologia do comportamento, o ser humano desenvolve–se em um dado meio e o seu movimento defronta–se continuamente com estímulos de toda a natureza. Constrói–se de forma a reagir sob a influência destes estímulos, tanto internos quanto externos. Todas estas excitações provocam respostas, que aprendidas ou não modificam o meio. Tais modificações induzem excitações que não provocam outras respostas, as quais serão cada vez mais adaptadas à situação ou à demanda. Portanto o meio o qual a criança se insere, influenciará diretamente em seu comportamento perante a sociedade.
Devido ao sentimento de segurança propiciado pela presença afetiva dos pais, e as referências que estabeleceu no ambiente, a criança faz a experiência de seu corpo enquanto meio de ação, faz a experiência do espaço e dos objetos. No namoro precoce a criança associa a imagem do pai à do namorado sentindo–se segura e acreditando piamente nas doces palavras que lhe forem proferidas, muitas vezes entregando seu corpo e consentindo realizar o desejo de seu parceiro, daí ocorre a presunção legal da violência, pois esse consentimento estaria maculado pela inocência da criança.
O círculo de pessoas com quem a criança convive, por conseguinte a qualidade das comunicações no seio da família desempenha também um papel determinante no comportamento da menor e conseqüentemente, na expressão e no desenvolvimento de suas possibilidades.
A meio caminho, saindo da infância e entrando no mundo adulto enfrenta–se a chamada adolescência que é um estágio de transição.
Este termo é geralmente usado para se referir a pessoas que se situam em um lapso temporal do final da infância (o início desta fase é perto dos 12 anos), e o início da fase adulta dá–se por volta dos dezenove anos.
Este período é marcado por profundas mudanças, tanto de ordem fisiológica como também na ordem psicológica. Com o fim das mudanças fisiológicas, da puberdade, e obtenção sociológica do status pleno de adulto encerra–se a adolescência.
Analogamente é difícil definir o ponto onde termina adolescência e dá–se início a idade adulta, já que esta passagem está relacionada tanto a fatores fisiológicos (final da puberdade) como também e principalmente, a fatores sociológicos. Esses fatores sociológicos são dos tipos mais variados podendo mudar com determinadas situações.
Desta forma os fatores fisiológicos dizem respeito a transformações no corpo do indivíduo em transição, traduzindo–se na puberdade.
A sociedade possui todo um conjunto de crenças, idéias, rituais e práticas que marcam a entrada das crianças na adolescência. Essas condutas são essencialmente culturais variando de povo para povo, que produz uma mudança de status nas crianças que a partir daí serão vistas de formas diferentes, integrando–se ao seu grupo social também de uma forma diferente que era anteriormente.
Certas sociedades possuem um conjunto de ritos de iniciação ou de puberdade que tornam bem clara essa transição, como, por exemplo, os Massais (africanos), levando as crianças para caçar; outras tribos africanas mutilavam o clitóris da criança, para que ela não sentisse nenhum prazer sexual; no mundo ocidental nós temos a festa de quinze anos, onde as moça é apresentada a sociedade como debutante, podem assumir aspectos de observância religiosa, como o Crisma Católico e o Bar Mitzvah Judaíco, sendo interessante observar a variação de detalhes, intensidade e dureza com que esses ritos são executados todos possuindo um objetivo semelhante.
Todas essas iniciações dramáticas visam esclarecer a descontinuidade no ciclo do desenvolvimento, fazendo com o que o mesmo se processe em patamares bem definidos, criança, adulto e velhice.
A adolescência como um desses patamares do desenvolvimento humano, tem uma história relativamente curta, tendo em vista que o conceito de criança e família mudou muito de um período cultural para outro.
Um dos fenômenos mais preocupantes relacionados a uma visão equivocada da sexualidade é a gravidez precoce e as doenças sexualmente transmissíveis, que traz sérias conseqüências para a vida dos adolescentes envolvidos e de suas famílias.
Relação sexual é um tipo particular de integração social possuindo limites individuais e sociais. Os parâmetros de uma sociedade dependendo da época e da cultura poderá sofrer variações, podendo ser aceitos ou não pelos indivíduos. Muitos conflitos sexuais surgem da não aceitação dos tabus que a sociedade criou sob a sexualidade humana, gerando uma certa dificuldade para passarmos sobre o que poderia ser considerado como normal ou como patológico, em uma relação sexual. Assim a convivência humana é determinada pela cultura, mas ao mesmo tempo, o ser humano, também interfere e a modifica. Portanto, a sexualidade é um conceito cultural dinâmico que está em constante mutação, ou seja, a sociedade estabelece um padrão cultural, tanto sexual como em outras áreas do comportamento humano, exemplificado pela área afetiva e emocional, mas existem pessoas que podem sair deste padrão e estabelecer um comportamento próprio avançado ou além do seu tempo, como também existem pessoas que tendem a amadurecer mais rápido através das experiências vividas em seu meio social. Ocorre dessa maneira quando a criança é abandonada pelos seus pais e fica perambulando pelas ruas, ou orfanatos ou até mesmo na casa de seus parentes, sendo obrigada a cuidar de se mesma desde cedo, adquirindo assim uma larga vivência, muitas vezes tornando–se rude.
Nunca o adolescente teve tanto acesso a informação como está tendo nos dias atuais, ao mesmo tempo, paradoxalmente, os adolescentes estão com índices alarmantes de gestações indesejadas e abortos clandestinos. Fenômeno que se repete tanto no Brasil como em outros países mais desenvolvidos.
Os meios de comunicação trazem para dentro de casa uma infinidade de informações e estímulos que nem sempre o adolescente tem condição de digerir. Os adolescentes e os pais são bombardeados por estes conteúdos sem que tenham um espaço de debate ou questionamento destas informações, sem que possam formular perguntas e fazer críticas. Enfim, o diálogo não é difícil apenas entre pais e filhos, mas também entre comunidade médica ou escolas com os pais e adolescentes.
Na adolescência a sexualidade torna–se intensa devido a diversos fatores: alterações hormonais e conseqüentes alterações no aspecto físico, maturação e desenvolvimento dos órgãos sexuais, mudança no relacionamento entre jovens do mesmo sexo e de sexo diferente, busca de identidade e propensão a enfrentar desafios e novas experiências. A sexualidade implica na convivência do jovem com o seu corpo, com a sua mente e com as pessoas de sua relação.
As novas gerações se encarregaram de destruir muitos mitos e implementar novos conceitos, em relação à sexualidade e o relacionamento entre os indivíduos. A busca da liberdade individual da possibilidade de tomar decisões e definir o que é ou não adequado, tem sido o preponderante.
Os pais dos atuais adolescentes foram protagonistas de mudanças significativas nos conceitos de sexualidade e superam diversos mitos e tabus, como virgindade; papel masculino e feminino; significado do casamento e tantos outros. Entretanto, alguns deles têm dificuldades de assimilar os conceitos dos filhos quando estes revisam e aperfeiçoam as verdades que as gerações anteriores consideravam definitivas. Uma dessas novas conquistas é o “ficar” dos atuais adolescentes. O termo define um relacionamento entre um garoto e uma garota que sem dúvida é bem mais evoluído do que aquele que seus pais vivenciaram. Suas principais características estão no relacionamento sem compromisso e sem complicação, com prazo de validade durando apenas naquele local e momento, não exigindo um amanhã. Mas talvez, sua marca mais significativa seja a liberdade para que qualquer uma das partes tome a iniciativa; isto significa que também a menina pode fazer escolhas e o fato dela não ficar não imprime nenhum rótulo, algo que ocorria freqüentemente em outras gerações.
Em suma, o “ficar” é um passo adiante na trajetória aparentemente infinita na busca de relacionamentos mais satisfatórios para ambos os parceiros desde as primeiras descobertas. O “ficar” é um novo modo de fazer um importante aprendizado afetivo, permitindo o ingresso nos meandros da conquista e da descoberta da sexualidade. Na sabedoria dos jovens no momento antes de ficar em definitivo (namorar), é preciso experimentar sem medo de cometer erros.
Nas gerações passadas as meninas quando chegavam na idade escolar, os pais as mandavam para um colégio interno, e estas saiam de lá preparadas (prendadas) para o casamento. Nos dias de hoje não existem mais meninas de doze anos, e sim, moças que muitas vezes com esta idade já têm uma vasta experiência sexual. Destarte ocorre que em lugar delas pensarem em casar e constituir uma família, preferem “ficar” sem compromisso.
De todas as reflexões e estudo sobre a infância e a adolescência, se alguma coisa pode ser razoavelmente consensual é que, crescentemente, as crianças estão mais sozinhas ou mais na convivência com seus parceiros da rua, do que no seio familiar. O pai, a mãe, ou qualquer outro parente está se tornando uma figura rarefeita.
A evolução pela qual a sociedade brasileira passa, em especial desde 1940, quando foi publicado o atual Código Penal, é extraordinária. Desde os costumes, o comportamento, até à Ciência e à Tecnologia, tudo se modificou. O linguajar, a forma aberta com que o tema “sexo” passou a ser abordado, o grande acesso à mídia e, conseqüentemente, informações. As doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS, trouxeram ao público uma gama muito grande de informações a respeito de prevenção à doença, vulgarizando as relações sexuais. O problema da gravidez precoce também fez com que as escolas se preocupassem com o assunto, tentando orientar os alunos a respeito de métodos de contracepção.
As mudanças são inevitáveis. Os costumes mudam a cada ano, a cada dia. A velocidade com que os veículos de comunicação vêm trazendo novas informações, e a facilidade de acesso a elas, vem modificando a forma com que passamos a nos ver, e também agilizando o conhecimento e socializando a informação. Não só pela influência dos meios de comunicação, mas, também pela influência de nós mesmos, a cada tempo há uma revolução diferente a ser feita.
Todos esses problemas pelos quais passamos hoje trouxeram para a imprensa, de uma forma bastante veemente, orientações a respeito de sexo para os jovens (e também adultos desinformados), pois estes são o público alvo das campanhas de prevenção às doenças e à gravidez precoce. Por outro lado, não há que se esquecer que muitas vezes o assunto sexo foi banalizado por estes mesmos veículos de comunicação de massa.
Como exemplo dessa banalização, tem-se a Internet, que possibilita livre acesso a sites pornográficos, sem qualquer ressalva. Mesmo que, no Brasil, a Internet ainda não seja acessível a todos, este é um poderoso meio de comunicação que vem crescendo de forma espantosa nos últimos anos. Quanto mais a Internet se torna acessível, mais pornografia ela ostenta, pois não há nenhum critério de hospedagem de páginas pessoais, desde que não firam a lei (como a pornografia infantil). Quanto mais o tempo passa (em se tratando de tecnologia em computação, pode-se contar por meses) mais cedo as crianças têm acesso a esse tipo de “informação”, já que é difícil um controle por parte dos pais.
O sexo tornou-se para as adolescentes um ato que deve ser praticado somente para o prazer, pois é dessa maneira que se é abordado na mídia; o nudismo também é trazido de forma normal, como se vê em novelas ou filmes exibido na televisão.
Porém, é claro, não há que se esquecer que o País é de imensas terras e que não se pode contar com a acessibilidade da informação trazida pela imprensa por todos. Não se pode dizer que todos os adolescentes menores de quatorze anos têm um nível de informações que possibilita um consentimento válido, pois isso, seria excluir os que não têm acesso a essas informações (o que não se faz tão raro assim). Não se pode, pois, comparar um adolescente que vive em grandes centros, como as capitais São Paulo e Rio de Janeiro, com mesmo adolescente que mora no sertão nordestino. Esse, por muitas vezes não sabe sequer ler.
Frisa-se aqui a palavra adolescente, pois não vislumbro a possibilidade de a criança dar um consentimento válido, salvo raríssimas exceções, que devem ser analisadas com extrema cautela.
Porém, mesmo que a nossa legislação fixe uma faixa etária que considera ainda imatura para o sexo (menores de quatorze anos), ainda será possível, se o magistrado ou tribunal acreditar que se trata de presunção relativa de violência, provar que aquela vítima tinha plena capacidade de consentir com a relação e assim o fez. Portanto, a faixa etária serviria somente como um parâmetro para que se soubesse a partir de quantos anos não haveria, de forma alguma (a não ser por eventual incidência das outras alíneas do artigo 224 do Código Penal), a violência ficta. Por exemplo, pode-se dizer que se a “ofendida” for maior de quatorze anos, não haverá violência ficta, portanto, não haverá crime. Se a vítima for menor de quatorze anos, pode se dizer que talvez tenha havido um crime com violência ficta, desde que não reste provado que essa vítima tinha autodeterminação sexual. Isso seria o ideal. Dessa forma, havia uma individualização do crime, respeitando as particularidades de cada ofendido.
O melhor critério de fixação da autodeterminação sexual de uma pessoa é o critério da antiga União Soviética, que dizia da “madurez sexual da vítima”. Somente haveria violência ficta se a vítima não tivesse atingido a sua maturidade sexual.
Para que se possa afirmar que nos casos de violência ficta os princípios da Vitimologia possam ser usados, necessário se faz demonstrar que em muitos casos uma menor de quatorze anos pode dar um consentimento válido. Isso se mostra imprescindível pois, se restar provado que, em nenhuma hipótese, a menor anteriormente mencionada é capaz de dar o seu consentimento, não há que se falar em comportamento provocador dessa vítima.
Por outro lado, quando se afirma que uma pessoa estava em plenas condições de dar o seu consentimento, de que tinha completa certeza do que estava fazendo, é claro, pode-se dizer que essa pessoa pode ter um comportamento provocador. Aqui, não há que se dizer somente da menor de quatorze anos, mas também do alienado mental, que pode, em algumas hipóteses, ter plena ciência dos assuntos relacionados ao sexo, pois não é raro que o doente mental seja alheio somente a alguns assunto e que seja completamente capaz de discernir a respeito de outros, como acontece com as pessoas que têm distúrbios irregulares, esporadicamente, mas que vive uma vida normal e na maior parte do tempo sabe exatamente o que estar fazendo.
A Legislação brasileira resguarda a liberdade sexual do indivíduo com bastante seriedade, imputando severas penas a quem infringe os preceitos nela vigentes. De uma forma bastante interessante, o legislador pátrio protegeu também, e de maneira ainda mais rigorosa, a sexualidade de certos indivíduos que, de acordo com a lei penal, não são capazes ou não podem dar seu consentimento para ato de tal natureza.
Porém, este conceito vem sendo modificado, principalmente com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, que vê as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e obrigações. O ECA entende que o adolescente tem capacidade de discernir quanto às infrações penais, imputando medidas sócio-educativas aos infratores, como a internação em estabelecimento educacional.
Se este moderno Estatuto tem uma visão mais ampla e atual quanto ao crime, como não considerar as evoluções no campo sexual do indivíduo? Como não concordar que o adolescente de hoje tem plena capacidade de consentir com uma relação sexual? Se o adolescente pode ser punido com medidas sócio-educativas pelo ato infracional que cometer, por que não poderia dar um consentimento válido em uma relação sexual?
Se o legislador considerou que um adolescente tem capacidade para discernir o certo do errado, que pode ser até internado porque cometeu ato infracional, isso mostra que o legislador de 1990 já acreditava que o adolescente dessa época já tinha sim capacidade de dar um consentimento válido porque, se tomarmos o exemplo de um crime cometido por um adulto, e um adolescente colaborar para essa infração (havendo concurso de pessoas entre eles, art. 29, caput, do Código Penal) ele poderá ser punido com tal internação. Se ele foi punido porque aderiu à vontade ou proposta da pessoa adulta, considera-se então que esse seu consentimento seja válido.
Por que, então, não considerar válido o consentimento do adolescente menor de 14 anos quanto aos assuntos relacionados ao sexo? Se acaso ele possa consentir com um ato infracional (crime ou contravenção), com mais propriedade pode-se dizer que esse adolescente já tem capacidade para consentir com uma relação sexual. Percebe-se, então, que o legislador de 1990 (ECA) vê de forma bastante diferente do legislador de 1940 (Código Penal) a capacidade de compreensão do adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente está bem mais atualizado quanto aos novos costumes e maior nível de informação dos adolescentes de hoje, que já não mais conservam aquela inocentia consilli que o legislador de 1940 tanto tentou resguardar. O ECA traz a realidade à tona, mostrando que as legislações sempre devem se modernizar. Para se sujeitar a medidas punitivas do ECA a vontade do adolescente é válida. Para anuir a um ato sexual não seria? Que diferença fundamental existiria entre compreender o caráter ilícito do fato criminoso (dentro de certas limitações, é verdade) e compreender o caráter sexual de certos comportamentos, ainda mais quando se considera que esta última, em geral, surge antes daquela outra? Que sentido tem, destarte, depois do ECA, a presunção legal do art. 224, alínea “a” do Código Penal? No entanto, não há que se esquecer dos menores de 12 anos, que, mesmo pelo ECA, apesar de poderem cometer ato infracional, são punidas somente com medidas protetivas. Então, para os menores de 12 anos, o artigo supra citado, ainda é bastante válido. Não se pode dizer mais que o adolescente menor de quatorze anos é imaturo para a compreensão do caráter sexual do ato. A ficção jurídica do artigo 224, alínea “a” do Código Penal, que diz que esse adolescente ainda mantém sua inocentia consilli, não tem mais sentido, a não ser pela sua aplicação à vítima criança, ou seja, menor de 12 anos, analisando-se, como dito acima, cada situação.
A capacidade da vítima de responder pelos seus atos, na legislação brasileira, está ligada à sua faixa etária e/ou a sua sanidade mental. Os alienados mentais não têm capacidade de responder por algumas de suas ações, ou por qualquer uma de suas ações, dependendo da sua enfermidade. Portanto, não podem ser consideradas vítimas provocadoras, já que qualquer provocação que venha de sua parte é considerada nula, ineficaz. Por outro lado, aqui foi exposto que o adolescente menor de quatorze anos tem capacidade de consentir, porque, até mesmo para a nossa legislação, a mais recente (ECA), ele pode ser responsabilizado por seus atos e deverá cumprir uma pena, que poderá, inclusive, chegar à internação. Mas, como já foi dito, considera-se que a criança (menor de doze anos) não é capaz de responder por seus atos e, portanto, a seu comportamento provocador não pode ser considerado.
Tomando-se por base o artigo 224 do Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e os estudos de Vitimologia, chega-se à conclusão de que o adolescente menor de quatorze anos pode ter um comportamento provocador e, conseqüentemente, ser uma vítima provocadora. Mas, como no artigo 224, acima referido, a violência real não é usada, pois este trata somente da violência ficta, diz-se, então, que se esse adolescente manter relação sexual com alguém, ele não poderá ser chamado de “vítima”, porque sequer houve crime. Não houve violência real (e nem pode se considerar a violência ficta, devido a capacidade de discernimento desse adolescente), o adolescente tinha capacidade de entender o que estava se passando e dar um consentimento válido e, portanto, não houve crime.
Porém, mesmo que tenha havido um comportamento provocador por parte da vítima, a violência nunca é justificável. Não se pode “perdoar” um crime sexual porque a vítima provocou o agente. O que se pode, no máximo, é diminuir a pena cabível ao criminoso, já que, teoricamente, sem a provocação da vítima, não haveria o crime.
Deve-se, portanto, analisar de forma minuciosa a personalidade, caráter, cultura e comportamento da menor (maior de12 e menor de 14 anos), para que, somente assim, perceba-se se essa tem a capacidade de dar consentimento do ato praticado, para posteriormente, verificar se este ato é válido ou não perante a justiça.
Proposta de Lege Ferenda
No sentido de complementariedade, e ainda na predisposição de dar ao trabalho monográfico o tom de praticidade, resolvemos propor uma modificação legislativa. Tal iniciativa não visa isolar, mesmo porque somos cientes de nossas limitações, todos os problemas que enfeixam a temática da presunção da violência, especificamente quanto a menoridade, mas não poderíamos nos furtar a exercitar a chamada criação legal. Assim foi formulada a seguinte norma penal, em substituição ao disposto no artigo 224, alínea “a”, do Código Penal.
Art. 224 A violência presumida deve ser considerada:
I – absoluta:
a) Quando a vítima é alienada ou débil mental, e o agente tinha ciência de tal circunstância;
b) Quando a vítima não pode por qualquer outra causa, oferecer resistência;
II – relativa:
a) Quando a vítima não é maior de 14 anos, devendo incidir sobre a avaliação do discernimento juvenil os parâmetros sociais e culturais.
A justificativa de nossa proposta vem baseada em todo o contexto já anteriormente desenvolvido, observando criteriosamente que cada criança e adolescente tem sua personalidade construída através de vetores variáveis, que não podem ser valorados sem levar em conta as semânticas culturais e sociais.
Desta forma apura-se o sistema e o aproxima do razoável em matéria de norma complementar ao tipo criminal. Atualizando as formas, nos aproximamos dos conceitos de modernidade em termos de costumes, trazendo ao sistema o arejamento necessário. A justiça assim torna-se deveras perceptível, sendo este o nosso propósito.
CONCLUSÃO
O presente trabalho foi desenvolvido no intuito de demonstrar que a interpretação mais correta que se deve fazer da alínea “a”, do artigo 224, do Código Penal, dando-lhe conotação relativa a presunção de violência, em crimes sexuais, para “vítimas” menores de quatorze anos. O Direito é algo dinâmico, ele não pára no tempo, mas necessário se faz que ele se adeqüe a evolução da sociedade. E a sociedade vive em constante mudança! O comportamento sexual de adolescentes menores de quatorze anos na época em que foi redigido o Código penal, que entrou em vigência em 1940, mudou consideravelmente. Nesse sentido, pode-se extrair a seguinte conclusão de todo o exposto nessa monografia:
a) A criança é produto do meio, e se desenvolverá de acordo com as referências que estabeleceu com as pessoas de sua família;
b) O indivíduo na adolescência está construindo uma identidade própria, e sua vida, nesse período, é repleta de mudanças;
c) Os parâmetros de uma sociedade, dependendo da época e da cultura, poderão sofrer variações, podendo ser aceitos ou não pelos indivíduos;
d) Na adolescência a sexualidade torna-se intensa, devido a fatores hormonais e maturação dos órgãos sexuais;
e) O enorme acesso aos meios de comunicação faz com que os adolescentes sintam vontade de experimentar aquilo que lhe é mostrado. Dessa forma, o sexo tornou-se algo comum e banal e o “ficar” (mesmo sem conjunção carnal) é um fenômeno muito natural nessa fase;
f) A doutrina e a jurisprudência brasileira continuam aceitando a presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal. Uns a encaram como presunção iuris tantum e outros como iuris et de iure;
g) Referida presunção legal conflita com o princípio constitucional da presunção de inocência;
h) As presunções de violência das alíneas “b” e “c” do artigo 224 do Código Penal são de natureza relativa (iuris tantum);
i) Igualmente, a despeito do descabido critério utilizado pelo legislador, a presunção de violência da alínea “a” também é de natureza relativa;
j) Em 1990, como a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabeleceu-se a diferença em relação a idade, conferindo aos adolescentes (maiores de doze anos) uma “certa” capacidade de compreensão, e responsabilidade pelo ato infracional que vier a cometer, inclusive com a medida da internação;
k) Dessa forma, o adolescente pode consentir validamente frente a um ato sexual, dependendo do caso concreto, pois desde 1990, o adolescente tem vontade juridicamente relevante; o mesmo não pode ser dito, em princípio, quanto à criança.
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Otília Maria da Cruz Araújo é Bacharel em Direito