Autor: Jean P. Ruzzarin (*)
A pretexto de reverter o déficit das contas públicas, o governo federal elaborou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016, também conhecida como “PEC do Teto”, já aprovada na Câmara dos Deputados e teve seu relatório recentemente acatado pelo Senado, onde tramita sob o título de PEC 55/2016.
A proposta limita o aumento dos gastos públicos à inflação acumulada no ano anterior, calculada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ou por outro índice que venha a substituí-lo. O chamado “Novo Regime Fiscal”, se vingar, terá duração de 20 anos.
A ideia é que, limitando o crescimento dos gastos públicos à inflação – que se refere à perda do poder de compra do dinheiro em determinado período – haja maior controle do dinheiro público, evitando-se, assim, que a União gaste mais do que arrecade. A partir dessa fórmula, o governo federal pretende impulsionar a recuperação econômica do país. Ademais, a proposta estabelece que o aumento nas despesas será controlado por cada órgão orçamentariamente autônomo da União — Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública —, para não haver interferência de um sobre o outro.
Caso a PEC seja aprovada, se o limite ao aumento de gastos for desrespeitado poderá ser proibida a “concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de servidores públicos, inclusive do previsto no inciso X do caput do artigo 37 da Constituição”, conforme a redação proposta ao artigo 103 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
A proibição se aplicaria apenas ao órgão que aumentou suas despesas acima da inflação do ano anterior. Vale ressaltar que a proibição de reajustes na remuneração não se aplica a aumentos originados de decisões judiciais ou de leis aprovadas antes da entrada em vigor da PEC. Assim, projetos de lei em trâmite, se não forem aprovados antes da entrada em vigor da PEC, sofrerão os efeitos do limite de aumento dos gastos.
Embora alheia às críticas de muitos especialistas, a tramitação da PEC parecia transcorrer sem problemas no Congresso. No entanto, a Consultoria do Senado Federal emitiu parecer apontando como inconstitucional a PEC, por violar as cláusulas pétreas do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação dos Poderes, e por afrontar direitos e garantias fundamentais, sobretudo à educação e à saúde.
No entanto, ainda não se abordou especificamente a patente inconstitucionalidade no âmbito do direito dos servidores públicos. Tal pretensão da PEC, de impedir que sejam majorados os vencimentos dos servidores, é inválida por não fazer a necessária observância das duas formas de alteração da remuneração dos servidores: o reajuste e a revisão geral.
O primeiro diz respeito ao aumento na remuneração propriamente dita, sendo aplicável apenas a uma ou mais categorias, a partir de lei específica, cuja edição é uma faculdade do órgão da administração pública. Mas a revisão geral, ao contrário, é uma obrigação imposta pela Constituição, já que apenas compensa os impactos negativos da inflação, e deve ser concedida a todos os servidores da União, no mesmo percentual, por meio de lei proposta pela Presidência da República, em regra. Ou seja, reajuste importa em aumento real, ao passo que revisão apenas mantém o poder de compra dos salários.
Essa falta de distinção faz com que a PEC tenha inconsistências. Por exemplo: na hipótese de ser concedida revisão geral anual, que é direito de todos os servidores da União, como ficarão os servidores lotados em órgão que extrapolou o teto de gastos? Não terão eles direito à revisão de sua remuneração, a partir da nova redação proposta ao artigo 103 do ADCT? Ora, se é geral a revisão, haverá flagrante violação ao princípio da igualdade numa eventual discriminação.
Outra contradição lógica da PEC consiste no fato de que, sendo extrapolado o teto de crescimento das despesas, o órgão é impedido de aumentar os gastos com pessoal, especialmente na forma de acréscimos à remuneração. Todavia, a lei que determina a revisão geral anual é proposta pelo presidente da República e, uma vez aprovada, abrange os servidores dos demais Poderes. Dessa forma, o chefe do Executivo acabaria por impor aumento de gastos a órgãos proibidos — em tese — de revisarem a remuneração de seus servidores.
É preciso ter em mente, ainda, que a revisão geral anual objetiva garantir a irredutibilidade da remuneração dos servidores, já que a inflação corrói seu poder de compra. E a irredutibilidade da remuneração não se garante apenas com a ausência de redução do valor nominal constante do contracheque: é necessário, também, manter o mesmo poder de compra, diminuído pela inflação.
A Constituição Federal determina que o salário minimamente digno é aquele capaz de atender às necessidades vitais básicas com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, inclusive para a família, mas, principalmente, que existam “reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo” (inciso IV do artigo 7º).
Dessa forma, a irredutibilidade da remuneração, que objetiva garantir existência digna aos servidores e seus familiares, só pode ser entendida como um direito fundamental, tratando-se, portanto, de cláusula pétrea que não pode ser suprimida ou mitigada, por força da Constituição.
É importante destacar, ainda, que a última revisão geral anual foi concedida em 2003, por meio da Lei 10.697/2003, e foi da ordem de 1%. Desde então, a inflação acumulada, calculada pelo IPCA, atingiu 132,4%. Portanto, a irredutibilidade da remuneração não tem sido garantida.
Embora muito se fale que uma elite de servidores percebe remuneração que atinge ou beira o teto salarial do serviço público, a grande maioria sobrevive com quantias próximas do salário mínimo. Mas todos, indistintamente, serão prejudicados com a aprovação da PEC.
Autor: Jean P. Ruzzarin é advogado especializado em Direito do Servidor, é sócio do Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados.