Autor: Mário André Machado Cabral (*)
Em 2015, fez-se 70 anos da publicação da Lei Malaia (Decreto-Lei 7.666, de 22 de junho de 1945). Tida por alguns como a primeira lei antitruste brasileira, a Lei Malaia, criada pelo último ministro da Justiça e Negócios Interiores do Estado Novo, Agamemnon Magalhães, foi uma lei vocacionada para a repressão do abuso do poder econômico. Ela elencou condutas tidas como ilícitas, a exemplo do cartel, e estabeleceu um controle prévio para fusões e aquisições em setores específicos, como o bancário, o de comunicações, o bélico e o elétrico, entre outros.
Também instituiu uma autoridade (a Comissão Administrativa de Defesa Econômica) incumbida, dentre outras atribuições, de (i) investigar e julgar os casos de abuso do poder econômico e (ii) analisar os pedidos de autorização para empresas se fundirem ou adquirirem umas às outras em setores como os mencionados acima. O apelido “malaia” adveio das feições físicas ligeiramente orientais de Agamemnon.
A lei provocou um rebuliço que marcou os momentos finais do Estado Novo. A UDN, por meio do brigadeiro Eduardo Gomes, em discurso proferido em Belo Horizonte em 15 de julho de 1945, asseverou que o decreto “alarmou as corporações econômicas, a generalidade das classes, a totalidade dos indivíduos”. Entidades representativas do comércio, da indústria e da agropecuária tornaram público manifesto contrário a Lei Malaia, como publicou o jornal Folha da Manhã, de São Paulo, em 25 de julho de 1945.
Segundo informações de Moniz Bandeira em Cartéis e Desnacionalização, de 1975, o Departamento de Estado dos Estados Unidos se queixou de que o decreto era a expressão de um nacionalismo econômico despropositado, por alegadamente reservar às empresas estrangeiras tratamento discriminatório. A imprensa, por sua vez, ecoou com especial ênfase essas reações à Lei Malaia. Em 27 de junho de 1945, o Diário de Pernambuco, por exemplo, publicou várias reportagens críticas ao diploma que ostentavam títulos como “Decreto-maligno”, “Desaparece a propriedade privada que é uma expressão da liberdade individual” e “A economia brasileira na mesma situação da economia alemã no tempo do nazismo”. Houve até quem evocasse um teor “apocalíptico” na lei, em razão de sua numeração (Decreto-Lei 7.666), segundo noticiou em 27 de junho de 1945 o jornal carioca Correio da Manhã.
As críticas feitas à época eram em parte pertinentes. Como diploma elaborado por governo ditatorial, não foi precedido de discussão parlamentar, muito menos de debate com a sociedade. Foi obra da cabeça do ministro — e Getúlio comprou a briga. Ademais, os entreveros entre Agamemnon e Assis Chateaubriand, dono do grupo Diários Associados, fizeram com que da Lei Malaia fosse dito que atentava contra as empresas jornalísticas e, por conseguinte, contra a liberdade de expressão. Anote-se, ainda, que o decreto dava à Cade poderes de intervir e até de desapropriar, sem necessidade de qualquer autorização judicial, empresas que praticassem atos considerados “contrários aos interesses da economia nacional”.
Por outro lado, o significado da Lei Malaia não pode ser omitido. Agamemnon cumpriu papel fundamental no início da construção da política antitruste brasileira. A Lei Malaia e sua repercussão fizeram com que palavras como “trust”, “antitrust”, “cartel” e “abuso do poder econômico” se firmassem no vocabulário do debate público nacional. Antes dela, dispositivos sancionadores de comportamentos anticompetitivos já encontravam previsão em outras leis, como no Decreto-Lei 869, de 1938, mas estavam previstos junto a regramentos de práticas como usura e gestão fraudulenta, carecedoras de caráter antitruste. O Decreto-Lei 7.666/1945 foi a primeira lei com conteúdo estritamente antitruste, voltada à fiscalização e sanção de cartéis e trusts.
O consenso em torno da necessidade de uma lei especificamente direcionada para o controle do poder econômico não foi construído sem resistências, como visto. E o início dessa construção contou com o protagonismo de Agamemnon e da Lei Malaia, apesar de sua brevíssima vida (foi revogada logo que o Estado Novo caiu).
A instituição de uma entidade administrativa especializada, responsável pela política antitruste no país, remonta à Cade, concebida em 1945. Hoje, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, criado pela Lei 4.137 de 1962, originada de projeto de lei de 1948, de autoria do então deputado Agamemnon Magalhães), que cumpre essa função de guarda da concorrência, desfruta de prestígio nacional e internacional.
Aqui, o Cade é tido como um órgão eficiente e estruturado, dispondo de um controle de concentrações célere e institucionalmente bem desenhado e de ferramentas efetivas para detectar e dissuadir práticas anticompetitivas como o cartel. Fora do Brasil, instituições como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e prestigiadas publicações como a Global Competition Review reconhecem o Cade como uma agência de alta performance, comparável às autoridades antitruste dos países desenvolvidos e um exemplo para os demais Brics e países latino-americanos.
Obviamente, mudanças que se deram nos anos 1990, com um antitruste mais ativo depois de anos de esvaziamento pela ditadura militar, bem como a recente reforma do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, a reboque da nova lei antitruste (Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011), foram imprescindíveis para a consolidação da política concorrencial no Brasil. Porém, essa história começa lá atrás. As homenagens aos homens públicos que iniciaram essa jornada precisam ser rendidas. Agamemnon Magalhães e a Lei Malaia não podem ser esquecidos.
Autor: Mário André Machado Cabral é advogado especializado em Direito Concorrencial e doutorando em Direito Econômico e Economia Política na Universidade de São Paulo, sócio da Advocacia José Del Chiaro.