Por Patricia Barros Pimentel
o presente trabalho não tem a pretensão de tecer críticas favoráveis ou negativas à aplicação da teoria da imputação objetiva. Tem apenas o escopo de apresentar seus principais aspectos, fundamentos e dogmas para aqueles que ainda os desconhecem.
A teoria da imputação objetiva surgiu na década de 70, na Alemanha, com o escopo de aperfeiçoar a teoria da causalidade, dando melhores explicações às questões que o finalismo não consegue resolver [1]. Seus maiores precursores foram Claus Roxim e Günther Jackobs. No Brasil, foi ela introduzida no final da década de 90, por Damásio Evangelista de Jesus. Atualmente, essa teoria é amplamente aplicada na Alemanha e na Espanha.
Porém, há doutrinadores que afirmam que tal teoria surgiu no século XIX, originando-se dos pensamentos de Hegel.
A imputação objetiva tem seu principal fundamento na existência de riscos permitidos e de riscos proibidos.
O certo é que essa idéia de risco permitido não é nova. Hans Welzel, em sua obra Direito Penal, escrita em 1955, já a ele se referia ao tratar dos crimes culposos, fazendo também menção ao princípio da confiança na consideração mútua do trânsito.
Segundo Damásio Evangelista de Jesus, “imputação objetiva significa atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um risco relevante juridicamente proibido e a produção de um resultado jurídico” [2]. A imputação objetiva refere-se tanto a conduta quanto ao resultado.
Mas como saber quais riscos são permitidos e quais são proibidos?
Essa teoria parte do princípio de que a vida em sociedade, mesmo que todos atuem de boa-fé, é arriscada. Todo contato social gera riscos que devem ser suportados por todos, uma vez que uma garantia normativa que implique a total ausência de riscos não é factível [3].
O risco permitido estabelece hipóteses normais de interação/contato social e refere-se à concreção da adequação social. No entanto, esse conceito é muito genérico e, por isso, devemos levar em consideração os seguintes critérios para sua definição:
a) a natureza do bem jurídico de acordo com o fixado na Constituição;
b) sua utilidade social – relação custo-benefício desse risco;
c) inevitabilidade do perigo;
d) necessidade de certas empresas.
O Estado, por sua vez, atendendo os critérios acima elencados, cria normas que regulam as atividades sociais, fixando os limites entre riscos que devem ser suportados e riscos que são proibidos.
Em nosso ordenamento jurídico vige o princípio de que as pessoas podem fazer tudo aquilo que não é proibido por lei. Princípio este expressamente previsto na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso II.
Logo, essa diferença entre risco permitido e risco proibido reside no que é lícito e no que não é [4], devendo ser levadas em consideração, para sua fixação, todas normas existentes no ordenamento jurídico, inclusive as técnicas, administrativas, lex artis e o dever de informar-se.
Lex artis são aquelas que regulam o exercício normal de determinadas profissões as quais exigem conhecimentos especiais, tais como médicos e engenheiros. Dever de informar-se é aquele atribuído a todo profissional responsável pela realização de uma atividade especial o qual, antes disso, deve atualizar seus conhecimentos para que não cometa nenhum erro. .
Havendo dúvidas sobre o fato desse risco ser permitido ou juridicamente proibido, o Juiz deve decidir pro reo.
Podemos resumir as principais características dessa teoria da seguinte maneira:
Haverá imputação objetiva não somente quando a conduta é criadora de um risco juridicamente proibido, mas também quando essa conduta incrementa um risco anteriormente existente ou ultrapassa os limites do risco permitido (teoria do incremento do risco).
Essa teoria deixa de considerar o resultado naturalístico para por em destaque o resultado jurídico (afetação de um interesse protegido pela norma penal).
A conduta somente poderá ser imputada a alguém quando houver estreita correspondência entre o resultado produzido e a realização do risco juridicamente proibido, ou seja, quando criar um risco proibido do qual decorra a produção de um resultado jurídico, devendo haver uma relação risco-resultado. Esse risco há também de ser relevante, na ausência de sua relevância, deve-se aplicar o princípio da insignificância.
Esse resultado normativo deve estar dentro do âmbito de proteção da norma penal incriminadora, ou seja, dentro dos limites punitivos do tipo penal. O resultado da ação deve lesionar um objeto jurídico que esteja dentro da esfera de proteção da norma penal incriminadora. Em outras palavras, o bem jurídico afetado pela conduta do agente deve ser aquele que a norma penal procura proteger. Exemplo: se a norma penal procura proteger a integridade física do agente, este é o bem que deve ser lesionado ou exposto a perigo de lesão pela conduta do agente.
A imputação objetiva passa a ser elemento normativo do tipo, a ser analisado após o nexo causal (há doutrinadores que dizem que deve ser ela analisada antes do nexo). No entanto, esse elemento normativo não está expresso, mas encontra-se implícito no tipo penal, tal como o dolo é elemento subjetivo implícito no tipo. Assim, o fato típico passa a ter os seguintes elementos: conduta humana voluntária dolosa ou culposa; resultado; nexo causal; imputação objetiva e tipicidade. A ausência da imputação objetiva leva à atipicidade do fato.
Se o resultado for produzido em decorrência da existência de condições pessoais especiais da vítima desconhecidos pelo autor, não haverá imputação objetiva.
A teoria da imputação objetiva tem aplicação aos delitos dolosos e culposos, bem como aos delitos formais ou de mera conduta. No entanto, atualmente, de acordo com a doutrina e jurisprudência estrangeira, tem maior aplicação aos delitos de ação e resultado.
Nos delitos culposos, a inobservância do dever de cuidado objetivo necessário corresponde à realização de um risco relevante juridicamente proibido, ou seja, os dois têm o mesmo significado.
Nos delitos formais e de mera conduta, não há nexo de causalidade. No entanto, aplicada a imputação objetiva, o resultado jurídico é constituído pelo perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal.
Logo, podemos concluir que a realização de uma conduta criadora de um risco permitido, mesmo que dela decorra algum resultado jurídico, não pode ser imputada ao agente, tornando o fato atípico, por falta da imputação objetiva.
No entanto, aplicada a imputação objetiva, para que o fato seja típico, exige-se também que o agente tenha conhecimento das circunstâncias criadoras do risco e do perigo em si mesmo [5]. Vale dizer, o sujeito deve ter conhecimento que sua conduta é criadora de um risco juridicamente proibido e relevante. Nesse momento, não se deve perquirir se o agente agiu com dolo ou culpa, o que será analisado quando se tentar qualificar o delito como doloso ou culposo.
Também não ocorrerá a imputação objetiva quando o sujeito, com sua conduta, procurar diminuir o risco ao qual já estava exposto um bem jurídico. Ele não cria e nem aumento um risco já existente, mas procura reduzir sua intensidade. Neste caso, também haverá atipicidade da conduta.
Aplicada a teoria da imputação objetiva nas hipóteses de intervenções médicas ou cirúrgicas, de violência desportiva e ofendículos, haverá exclusão da atipicidade porque a conduta do agente não criou um risco relevante juridicamente proibido, deixando as referidas hipóteses de serem consideradas causas de exclusão da antijuridicidade por se tratarem de exercício regular de direitos.
Os princípios dogmáticos que regem a teoria do risco são os seguintes: princípio da confiança, proibição de regresso e ações a própria risco. A sua aplicação acarreta a exclusão da tipicidade da conduta pela inexistência de um risco juridicamente proibido.
O princípio da confiança estabelece que as pessoas, durante seus contatos/interações sociais, acreditam que o próximo age conforme o direito e toma todos os cuidados que lhes são exigidos. Confiam no atuar do próximo, sem terem qualquer obrigação de vigiar esse comportamento dos outros.
Assim, aquele que, embora agindo de acordo com o direito, dá causa a ocorrência de um resultado danoso em virtude de seu envolvimento com um terceiro o qual agiu descumprindo seu dever de cuidado, não pratica crime, pois, houve uma causa de exclusão da tipicidade, em virtude do princípio da confiança.
Esse princípio tem maior aplicação no tráfego de veículos automotores, no trabalho em equipe de profissionais e na realização de conduto dolosa ou culposa por parte de terceiro.
Segundo o princípio da proibição de regresso, aquele que estabelece com outro um relacionamento inofensivo não fica responsável por comportamento futuro realizado por ele, ainda que ilícito (proibição ao regressus ad infinitum). Significa que uma ação inicial correta não conduz seu autor a responsabilidade por condutas posteriores ilícitas [6]. Exemplo clássico é o do indivíduo que vende, legalmente, uma arma de fogo a terceiro que acaba, com ela, cometendo um homicídio. O vendedor, neste caso, não poderá ser responsabilizado pelo homicídio praticado pelo comprador da arma, visto que sua conduta não criou qualquer risco juridicamente proibido e relevante.
Nos delitos em que o dissentimento da vítima é elementar do tipo (Ex: Violação de Domicílio – art. 150 do CP), uma vez presente seu consentimento, não haverá crime por ausência de tipicidade. Nos delitos em que o dissentimento da vítima não é elementar do tipo, havendo seu consentimento válido e tratando-se de um bem disponível, atualmente, a doutrina entende haver uma causa supralegal de exclusão da antijuridicidade.
Aplicada a teoria da imputação objetiva aos delitos que não tem o dissentimento da vítima como elementar do tipo, o seu consentimento acarreta a exclusão da tipicidade da conduta por ausência da imputação objetiva (elemento normativo do tipo), deixando ele de ser considerado uma causa supralegal de exclusão da antijuridicidade.
Ações a próprio risco são aquelas em que o lesionado expõe-se unilateralmente ao risco de maneira que o evento jurídico só pode ser interpretado como obra sua e não como efeito de quem criou ou favoreceu a situação arriscada [7]. Nesses casos, a própria vítima, com a participação de terceiros, cria ou se expõe a riscos já existentes, sendo somente ela responsável pelo resultado advindo de seu comportamento.
As ações a próprio risco podem ser classificadas em:
a) auto-exposição a risco: o próprio ofendido ocupa uma posição central no fato;
b) hetero-exposição a risco: o autor ocupa a posição central no fato, mas a vítima consente com a prática da atividade arriscada.
A doutrina estabelece os seguintes casos de ações a próprio risco:
a) participação em fato que expõe a vítima a seu próprio risco – nesta hipótese, a própria vítima, com ajuda de terceiros, cria a situação que expõe seus interesses a riscos;
b) consentimento em ação realizada por terceiro que expõe a risco o próprio consensiente – nesta hipótese o terceiro cria um risco, mas a própria vítima aquiesce em colocar-se nessa situação de risco;
c) condutas perigosas de salvamento – nesta hipótese, um terceiro cria o risco juridicamente proibido e relevante, mas a vítima, tentando salvar o bem jurídico por ele afetado, acaba por se lesionar ou perder a vida;
d) criação de nova relação de risco por parte da vítima ao violar seus deveres de proteção própria – neste caso, a própria vítima viola seus deveres de própria proteção, dando causa a um resultado mais grave do que aquele que seria causado simplesmente com a conduta do terceiro;
e) conduta posterior de um sujeito que, em face de um comportamento anterior do autor, pode ser lesiva a seus próprios bens.
Estas são em apertadas palavras, as noções propedêuticas sobre a Teoria da Imputação Objetiva.
BIBLIOGRAFIA
GRECO FILHO, Vicente. Imputação objetiva: O que é isso? Disponível na Internet: www.ibccrim.org.br, acesso em 21/05/2004.
JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal, Trad. André Callegari, RT, São Paulo, 2000.
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__________________. Direito Penal, São Paulo, Saraiva, 23a. Ed, 2003.
KÖSTER, Mariana Sacher de, La evolución del tipo subjetivo, Buenos Aires, Ad-Hoc, 1998.
MESQUITA JR., Sídio Rosa de. Pequeno Passeio sobre a Imputação objetiva. Disponível na Internet: www.direitovirtual.com.br, acesso em 19/08/2004.
ORDEIG, Enrique Gimbernat, Delitos qualificados por el Resultado Y Causalidad, Madrid, Editorial Centro de Estudos Ramos Areces, 1990.
TERRAGNI, Marco Antonio, Causalidad e imputación objetiva em la doctrina y la jurisprudencia Argentina, Cuadernos de Doctrina y Jurisprudência Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc, 1997.
WELZEL,HANS, Direito Penal, Trad.Dr. Afonso Celso Resende, Campinas, Ed. Romana, 1a. Edição, 2003.
[1] Terragni, Marco Antonio, Causalidad e imputación objetiva en la doctrina y em la jurisprudencia argentina, Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc, 1997, 7:214.
[2] Jesus, Damásio Evangelista, Imputação Objetiva, São Paulo, Saraiva, 2a. ed., 2000, p. 24.
[3] Jakobs, Günther, A imputação Objetiva no Direito Penal, Trad. André Callegari, RT, São Paulo, 2000.
[4] Ordeig, Enrique Gimbernat, Delitos Qualificados por el Resultado y Causalidad, Madrid, Editorial Centro de Estudos Ramos Areces, 1990, p. 153.
[5] Köster, Mariana Sacher de, La evolución del tipo subjetivo, Buenos Aires, Ad-Hoc, 1998, p. 96.
[6] Jesus, Damásio Evangelista, Imputação Objetiva, São Paulo, Saraiva, 2a. ed., 2000, p. 49.
[7] Introducción a la imputación objetiva, Bogotá, Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofía del Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996, p. 143.