Princípio da autonomia da vontade x Princípio da boa-fé (objetiva): uma investigação filosófica…

Princípio da autonomia da vontade x Princípio da boa-fé (objetiva): uma investigação filosófica com repercussão na Teoria dos Contratos

1. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE COMO FUNDAMENTO DA TEORIA DOS CONTRATOS

Na sociedade moderna de cunho liberal, a vontade é considerada a sede da liberdade e da igualdade, com isso, o princípio da subjetividade, isto é, a idéia de uma vontade livre e igual, passa a ser uma categoria operacional decisiva na arquitetura do direito. A teorização do direito encontra apoio nessa noção de liberdade subjetiva, motivo pelo qual a autonomia da vontade e a igualdade das partes aparecem como princípios organizadores da teoria dos contratos. Sob a influência desses princípios, o contrato passa a ser concebido como o resultado da convergência de vontades totalmente livres e iguais.

O princípio da subjetividade neutraliza e equaliza as partes contratantes ao estabelecer que todos são igualmente livres e iguais para contratar. Assim, pela transformação do empregado em pessoa jurídica, equaliza-se empregado e empregador. Por intermédio dessa equalização, neutralizam-se as diferenças e aparece a possibilidade de aplicar os princípios da autonomia da vontade e da igualdade das partes na relação de emprego pela transformação do contrato de trabalho em contrato de prestação de serviços. Essa equalização, denominada terceirização e largamente utilizada pelos profissionais do direito a serviço do empresário, recebe o nome pomposo de “reengenharia empresarial com vista à qualidade total num sistema de parceria”.

A filosofia antiga não chega a elaborar a noção de liberdade subjetiva, portanto, a autonomia da vontade é algo estranho à cultura greco-romana. Essa cultura de liberdade pressupõe status (prestígio) e está conectada à ação política que agrega os cidadãos, não se trata, pois, de algo que se passa no interior da subjetividade. Convergem para essa noção de liberdade, as formas hierárquicas de domínio fundadas no prestígio (status civitatis, libertatis e familiae), que determinam a posição das pessoas na sociedade. Os contratos surgem vinculados ao status (nem todos podem contratar), conferem honras recíprocas e, com isso, reforçam o status dos contratantes.

No Direito romano, os contratos até se submetem a um pressuposto ético (bona fides), mas se liga primordialmente à idéia de status, enquanto posição ocupada por um indivíduo dentro de uma hierarquia. Mesmo com os contratos consensuais, que envolvem o tema da voluntariedade ou involuntariedade dos atos, a noção de liberdade não aflora como subjetividade. A liberdade dos antigos mantém-se nos padrões do ato voluntário como um processo de deliberação que não delibera sobre todas as coisas. Como diz Aristóteles (1973, p. 285): “deliberamos sobre as coisas que estão ao nosso alcance e podem ser realizadas”. É a modernidade, portanto, que propicia o aparecimento do livre arbítrio na esfera do direito e a equalização das partes, independentemente do status de cada uma.

1.1. A elaboração da autonomia da vontade

O deslocamento da liberdade para o interior da subjetividade ocorre na Idade Média com a separação entre querer e poder. O querer passa a ser considerado como uma espécie de optar, mas não necessariamente de realizar (quero, mas não posso). Segue-se a concepção de que a vontade é internamente livre no sentido de que ela pode exercer ou não exercer o seu ato voluntário (posso, mas não quero). A liberdade da vontade (querer) torna-se a condição essencial da igualdade humana, e a efetividade de seu exercício (poder), a condição das diferenças (FERRAZ JR., 2002, p. 87-88).

A autonomia da vontade ou liberdade subjetiva reside justamente nessa possibilidade do indivíduo querer ou não querer qualquer coisa. Já a boa-fé significa manter palavras e acordos, porque o homem de bona fides é o que “faz (fiat) o que foi dito”, ou seja, o princípio da boa-fé implica o cumprimento dos pactos e compromissos (pacta sunt servanda). Ao acoplar o princípio da autonomia da vontade ao princípio da boa-fé, a tecnologia jurídica estabelece que o contrato é lei entre as partes e imprime à pacta sunt servanda uma noção de inflexibilidade que os romanos jamais pensaram em imprimir. Dado, porém, que o homem é livre para querer qualquer coisa (autonomia da vontade), abre-se a possibilidade dele querer (no contrato) o seu próprio mal ou coisas que não dependam dele, não realizáveis.

A literatura explora as possibilidades dessa pacta sunt servanda inflexível e aponta seus efeitos desastrosos. Nesse sentido, a obra O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, faz menção à cláusula na qual uma das partes pode retirar um grama de carne mais próximo do coração da outra, caso esta não cumpra o contrato. Também na obra O Auto da Compadecida, de Guarnieri, aparece situação semelhante, ou seja, a possibilidade de uma das partes retirar das costas da outra uma “relha de couro”, no caso de descumprimento do pacto. Ambas demonstram a torpeza do liberalismo contratual quando se suprime da pacta sunt servanda a condicionante ética que os romanos tiveram o cuidado de construir.

Em Roma, o direito (jus) é o resultado de uma atividade (ação) conduzida pela virtude. A ação pressupõe liberdade para agir (jamais liberdade subjetiva) e é dominada pela palavra (discurso) e pela busca dos critérios da decisão justa, sábia, prudente e corajosa. Sob esse enfoque, o Direito romano se articula como o exercício de uma atividade ética, prudentia, virtude moral do equilíbrio e da ponderação nos atos de julgar, motivo pelo qual ganha relevância e recebe a qualificação de Jurisprudentia. Conduzida pela ética, a ação de decidir visa sempre ao bem do cidadão (bem moral) e ao bem da cidade (bem político); não faz sentido, portanto, no Direito romano, alguém desejar (querer) o próprio mal, o mal da cidade ou algo que não possa realizar.

Em suma, a liberdade como opção totalmente desvinculada não é tematizada no direito romano porque o querer aparece vinculado ao próprio bem e às coisas possíveis de se realizar. Na modernidade, algumas decisões, fundadas na autonomia da vontade e na pacta sunt servanda, apontam que é conforme o direito alguém querer o próprio mal ou o impossível, como é o caso dessas decisões que consideram válida a cláusula do contrato de financiamento que fixa a correção das parcelas pela variação cambial do dólar americano. É incompreensível alguém querer comprar um automóvel e pagá-lo pelo preço de dois. Isso implica querer o próprio mal.

1.2. Os limites da autonomia da vontade

A modernidade estabelece que no interior da vontade há uma ausência absoluta de coação (autonomia da vontade) e, ato contínuo, promove a crença de que todos são absolutamente livres e iguais para contratar. Ora, a liberdade como autonomia da vontade, na perspectiva do relacionamento de um ser livre com outro ser igualmente livre, permite perceber, principalmente no contrato de adesão, que o exercício da autonomia da vontade de um é sempre limitado pelo exercício da autonomia do outro. Desse modo, as relações contratuais fundadas na autonomia da vontade envolvem correlações de força, na qual uma das partes pode impor a sua vontade (poder) e, com isso, limitar a autonomia da outra ao extremo. Dado que ocorre sempre uma interferência limitadora da liberdade de um pela liberdade do outro, o princípio da autonomia da vontade é uma mera ilusão e, ato contínuo, a liberdade que equaliza as partes e estabelece o princípio da igualdade também não passa de uma simples aparência. São apenas formas de domínio mais sutis do que o puro exercício da força física. O vínculo entre as partes não se submete à vontade, trata-se de uma adesão inexorável.

De outra parte, a liberdade como faculdade (querer e poder) não anula o fato do relacionamento de um ser livre em face da natureza e da organização social. Os indivíduos estão imersos em um mundo dotado de leis naturais inexoráveis e de padrões sociais petrificados. Diante desse mundo circundante, não faz sentido escolher uma liberdade individual incondicionada, motivo pelo qual é fora de propósito imaginar que alguém possa querer livremente a comida que o alimenta. Há, pois, vínculos muito estreitos entre liberdade e necessidade.

Diante dos padrões sociais, é possível perceber que, também na sociedade moderna, os contratos se submetem, não à idéia de livre arbítrio, mas ao status enquanto posição econômica ocupada pelo indivíduo no interior da sociedade. A instituição financeira, por exemplo, submetida ao cálculo econômico, não financia a compra do imóvel ou do automóvel para qualquer um, portanto, nem todos são convocados para contratar, mas apenas aqueles que possuem, pelo menos potencialmente, reservas financeiras (status) que lhes permitem assumir determinadas obrigações.

O homem não delibera sobre a natureza ou a necessidade, e não faz sentido deliberar contra si mesmo ou contra o seu próprio bem. É certo que as relações contratuais pressupõem um certo movimento volitivo, mas isso não pode implicar o reconhecimento de uma vontade totalmente incondicionada. Além das condicionantes já especificadas, é preciso considerar a autonomia da vontade em face da heteronomia estatal, ou seja, o Estado pode até não constranger a liberdade subjetiva (vontade livre), mas pode constranger o exercício dessa liberdade.

1.3. Autonomia da vontade x heteronomia estatal

Para os modernos (Hobbes, Rousseau), é a liberdade subjetiva que justifica e legitima a criação do Estado pelo contrato social. Por isso, o Estado, na concepção liberal, é pensado como aquele que, ao mesmo tempo, abstém-se de constranger a vontade livre e confere a essa vontade as condições para o seu exercício. Mas, premida pelos fatos, a liberdade subjetiva vai cedendo espaço à heteronomia estatal (vontade jurídica), restando apenas a liberdade dita negativa que se fixa no princípio segundo o qual “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” ou, em outras palavras, “o que não está proibido está permitido”.

Nessa arquitetura, conforme aumenta o conjunto normativo de um ordenamento jurídico estatal, diminui a autonomia da vontade. Com essa solução, a autonomia da vontade sofre restrições, e, com ela, o aspecto da moralidade que si liga à subjetividade. O Estado, enquanto sujeito universal, prevalece sobre o cidadão, enquanto sujeito singular; disso resulta, no domínio da eticidade, a primazia da subjetividade de grau superior do Estado sobre a liberdade subjetiva de cada cidadão. O Estado, portanto, estabelece um conjunto de padrões objetivos que devem ser incorporados pela vontade individual como padrão. Essa solução pode aniquilar a liberdade subjetiva como autonomia da vontade, posto que, uma vez criado o Estado, este pode impor uma heteronomia tão ampla ao limite de restringir a liberdade negativa ao âmbito das condutas tidas como irrelevantes ou descompromissadas eticamente.

Por esses motivos, nas elaborações mais recentes da tecnologia jurídica, o princípio da autonomia da vontade é mitigado, submete-se à ordem positiva estatal porque depende desta o reconhecimento da validade e eficácia dos contratos realizados. A vontade só é autônoma quando a ordem positiva não a proíbe e somente nesse sentido é possível falar que o contrato estabelece leis entre as partes (pacta sunt servanda). Nesse contexto, os juristas fixam para os contratos os seguintes princípios: a) todos são livres para contratar ou não; b) ninguém é obrigado a ficar vinculado ao contrato para sempre; c) todos são livres para escolher com quem contratar; d) os contratantes têm ampla liberdade para estipular, de comum acordo, as cláusulas do contrato. Em virtude das condicionantes especificadas, o valor operacional de tais princípios é bastante reduzido.

2. O “NOVO” PRINCÍPIO ORGANIZADOR: A BOA-FÉ (OBJETIVA)

Na sociedade pós-moderna, o princípio da boa-fé vem se consolidando como base fundamental dos negócios jurídicos, flexibilizando a rigidez da pacta sunt servanda. Assim, na teoria dos contratos, em substituição ao princípio da autonomia da vontade, a tecnologia jurídica articula o princípio da boa-fé objetiva que implica um conjunto de deveres impostos pela lei às partes contratantes.

O princípio da boa-fé tem sua origem na ética dos deveres formulada pelos filósofos estóicos. Cícero o introduz no Direito romano como princípio regulador de todas as relações jurídicas, com repercussões não apenas nos atos dos contratantes mas também nos dos juízes, advogados, testemunhas, pretores e demais magistrados. Ocorre que a tecnologia jurídica, por vezes, ao articular o princípio da boa-fé, suprime a sua base ética. Essa supressão reduz a amplitude do princípio, de modo que a sua incidência, muitas vezes, fica circunscrita às cláusulas do contrato de consumo.

O princípio da boa-fé deve incidir sobre todas as relações jurídicas, com repercussão em todos os quadrantes do universo jurídico, e não apenas nas relações de consumo. Essa ampliação do seu campo de incidência depende da revelação da sua base ética ou filosófica.

3. ÉTICA DOS DEVERES

A ética estóica é subdividida em: a) moral do dever reto, identifica-se com o honestum, consiste na retidão da vontade (ou recta ratio), na firmeza moral, na convicção inabalável e no caráter incorruptível; b) moral dos deveres médios, consiste no cumprimento das ações conforme as tendências naturais que todo homem possui, como a tendência à conservação da vida e à sociabilidade, ou na escolha de coisas e condutas tidas como úteis, convenientes, preferíveis ou desejáveis relativas à vida prática ou cotidiana.

3.1. Ética ou moral do dever reto

O dever reto não surge espontaneamente, depende do saber filosófico (sabedoria), que possibilita compreender as relações que se estabelecem entre natureza (aquilo que é dado) e cultura (aquilo que é construído pela ação humana). Essa sabedoria se identifica com o honestum, a expressão de uma harmonia interior em conformidade com a harmonia da natureza.

A construção da sabedoria tem como ponto de partida as tendências ou inclinações naturais que os homens possuem desde o nascimento: a conservação da própria vida e a associação com outros homens. Essas primeiras tendências são a marca da imanência da natureza em todos os seres, a expressão da simpatia universal, o sinal da harmonia da parte com o todo. Todos os deveres têm, por ponto de partida, as primeiras tendências da natureza, e a própria sabedoria parte dessas primeiras tendências (CÍCERO apud BRUN, 1998, p. 76).

A ética dos deveres que tem nas primeiras tendências o seu ponto de partida, consiste em elevar-se gradualmente em direção à moral do dever reto; desse modo, o amor que o homem tem por si próprio deve se ampliar, por intermédio da reflexão (exercício dialético), em amor pela família, pelos amigos, pelos concidadãos, pela humanidade.

Os objetos das primeiras tendências, embora conformes à natureza, sendo relativos à utilidade pessoal, não consiste em um dever reto. Este começa a existir quando a escolha aconselhada pela razão (recta ratio) vem repetida e consolidada, mantendo sempre a sua conformidade com a natureza, até se tornar no homem um princípio de vida, uma disposição uniforme, convicta, constante, firme e inabalável, isto é, uma virtude (virtu ou força de vontade). O dever reto (firmeza moral e caráter incorruptível) é, no estoicismo, o supremo bem (a virtude).

Esse dever reto (firmeza moral e caráter incorruptível) que é, antes de tudo, o acordo consigo mesmo que se harmoniza com o universo, recebe o nome de honestum. As demais virtudes não são mais do que aspectos ou exteriorizações dessa virtude fundamental (BRÉHIER, 1978, p. 60).

O honestum se exterioriza por intermédio de quatro virtudes: a) a sabedoria é o honestum sobre o conhecimento da natureza, ao qual se liga a física, a lógica e a ética; b) a justiça é o honestum sobre a distribuição dos bens, à qual se liga a equidade e a liberalidade; c) a prudência é o honestum que incide sobre os desejos, impulsos e escolha das coisas, o conhecimento da oportunidade dos momentos certos para agir, à qual se liga a ordem e a conveniência; d) a coragem é o honestum que incide sobre aquilo que se deve suportar ou sobre os obstáculos, à qual se liga a firmeza e a constância. Os contrários (a ignorância, a injustiça, a covardia e a imprudência) são considerados vícios ou males.

Os homens são partes da natureza (o lógos divino), portanto, predispostos à virtude, motivo pelo qual é improvável que possam preferir os males em detrimento dos bens. Todo homem deseja ser sábio, justo, prudente e corajoso. Ninguém deseja ser ignorante, injusto, imprudente e covarde.

3.2. A ética ou moral dos deveres médios

Há, para os estóicos, um conjunto de coisas que não se enquadram nem na categoria de bens nem na categoria de males: a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a força, a riqueza, a reputação, a nobreza, bem como os seus contrários, a morte, a doença, o sofrimento, a fealdade, a fraqueza, a pobreza, a obscuridade, a origem humilde. Essas coisas são consideradas indiferentes porque não beneficiam nem prejudicam por si mesmas, podem ser boas ou más, dependendo do uso que delas se faz. Não são virtudes nem vícios, mas podem ser postas tanto a serviço da virtude quanto do vício. Enfim, o homem pode servir-se dessas coisas indiferentes para ser útil ou para prejudicar.

Dentre as coisas indiferentes, algumas são dignas de serem escolhidas ou preferidas em razão de sua utilidade. Dignas de escolha são aquelas que podem contribuir para uma vida equilibrada em conformidade com a natureza. Algumas coisas indiferentes possuem, portanto, uma certa potência ou utilidade mediata que contribui para a vida em conformidade com a natureza, nesse sentido: riqueza, glória, reputação, dotes naturais de habilidade, capacidade técnica, saúde, força física, boa complexão física, beleza e similares. Mas, como dito, essas coisas indiferentes podem ser boas ou más, conforme o uso que delas se faz. A riqueza, por exemplo, é um bem se for usada para promover o bem; se for usada para promover o mal, a riqueza é um mal (EPICTETO, 1953, Máxima 327).

É a sabedoria que orienta a escolha e o uso adequado das coisas indiferentes. Desse modo, pelo exercício dialético ou elaboração racional, o homem descobre o fim em vista do qual se manifestam as escolhas ou as ações úteis, preferíveis e convenientes. Assim, é preferível: morrer com honra do que viver desonrado; ser enfermo e virtuoso do que sadio e corrompido; ser pobre e incorruptível do que rico e corrupto.

Não faz sentido alguém preferir os males (ser corrupto, corrompido e desonrado) em detrimento dos bens (ser honrado, virtuoso e incorruptível). A moral dos deveres médios implica escolha das coisas indiferentes em conformidade com as virtudes (sabedoria, justiça, coragem e prudência). É, portanto, no domínio dos indiferentes, que o bom ou mau uso do lógos (razão) pode efetivar-se.

4. A PRÁTICA DOS DEVERES

Epicteto afirma que, de todas as coisas que existem no mundo, umas dependem de nós, e outras não. A essência do verdadeiro bem consiste nas coisas que dependem de nós. Dependem de nós os nossos atos e opiniões (EPICTETO, 1953, p. 35).

As coisas que não dependem de nós são aquelas que se subordinam ao curso da natureza, os fenômenos naturais envoltos no encadeamento necessário de causas e efeitos. Essas coisas não são melhores nem piores, simplesmente são. A natureza não pode agir de outra maneira, só pode agir da forma como age. Também não dependem de nós as coisas que estão fora do círculo dos nossos próprios atos, porque dependem de outras pessoas ou de circunstâncias que não podemos evitar.

O homem depara-se com obstáculos quando toma por livres as coisas por natureza necessárias, e por dele, as que dependem de outros; porém, quando se concentra nas coisas que dele depende, nada o impede de atuar conforme a sua própria deliberação. As coisas que dependem do sujeito, da sua ação ou deliberação, podem ser boas ou más; mas, como dito, não faz sentido agir ou deliberar a favor do próprio mal. É natural, portanto, o homem querer o próprio bem e as coisas que estão em seu poder realizar. Uma pessoa que prefere o próprio mal, desejando coisas impossíveis ou que não possam ser realizadas, encontra-se em estado de ignorância, insensatez ou loucura.

No domínio da moral do dever reto, o que depende essencialmente de cada pessoa é a vontade firme e inabalável de fazer o bem. Desse modo, a ampliação das tendências naturais transforma o bem individual ou pessoal em bem comum, coletivo ou da humanidade. Há, portanto, uma distinção entre o domínio da moral do dever reto, que consiste em agir de acordo com a razão (recta ratio) e em conformidade com a natureza, e o domínio da moral dos deveres médios, que consiste na escolha das coisas úteis e de alcance do sujeito a qual pode contribuir para uma vida melhor.

A ética dos deveres é uma teoria da ação. A ação política ou jurídica, portanto, deve ser conduzida pela virtude. Nesse sentido, a ética dos deveres além de orientar o exercício das profissões públicas (Magistraturas, Ministério Público) e o cumprimento dos deveres de cidadania, permite a elaboração de um código de condutas práticas (direito) fundadas em princípios genéricos: viver honestamente; não causar dano a outrem; dar a cada um o que é de cada um; proteger a vida; cuidar da saúde, da educação, das crianças, dos idosos e dos portadores de deficiência; cumprir os deveres de família etc. O cumprimento desses deveres corresponde a uma moral das ações úteis e preferíveis, extensiva ao gênero humano.

O que caracteriza a ação é a incerteza e a imprevisibilidade, porque, em parte, ela depende do sujeito, uma vez que a escolha convicta supõe uma intenção moral e, em parte, não depende, pois seu êxito resulta não só da vontade do sujeito mas dos outros homens ou das circunstâncias e acontecimentos. De qualquer modo, a teoria dos deveres permite ao homem orientar-se na incerteza da vida cotidiana ao propor escolhas razoáveis, tendo em vista o bem da comunidade humana (ASSIS, 2002, p. 324).

A virtude é a retidão da vontade (firmeza moral e caráter incorruptível) no sentido de fazer o bem. Contudo, a razão extraviada tenta resistir e opor ao bem universal o fantasma de um bem próprio (riqueza, beleza, glória, saúde etc), como se esse bem fosse virtude, não coisa simplesmente útil. Em síntese, os deveres médios (escolha das coisas indiferentes) encontram-se na esfera do útil, mas estão submetidos ao dever reto (virtude) que reside na esfera do honestum.

5. A MORAL DOS DEVERES E O DIREITO ROMANO

Coube a Cícero (106 – 43 a.C.) conectar a moral dos deveres com o Direito romano. Para Cícero, o honestum é o único bem, motivo pelo qual a “utilidade” não pode contrapor-se à honestidade. A estrutura básica do dever encontra-se na fórmula que implica identidade do honesto e do útil: “o que é honesto é útil, e não há nada de útil que não seja honesto”. A fórmula também aparece na forma de um juízo (proposição) hipotético que exprime uma relação entre um antecedente e um conseqüente, do tipo: “se A, então B”, ou seja, “se é honesto, então é útil”.

Recorde que o honestum se desdobra em quatro virtudes básicas: a) a sabedoria: é o honesto que se liga ao conhecimento; b) a justiça: é o honesto sobre a distribuição dos bens; c) a coragem: é o honesto sobre aquilo que se deve suportar; d) a prudência: é o honesto sobre a escolha das coisas. Essas virtudes podem ser enquadradas na fórmula da seguinte maneira: a) se é sábio, então conhece a virtude; b) se é justo, então dá a cada um o que é de cada um; c) se é corajoso, então enfrenta os obstáculos; d) se é prudente, então escolhe de maneira refletida.

A fórmula do dever subentende uma hierarquia. Assim, no caso de necessidade de se optar por um, entre dois deveres úteis, deve-se escolher, em primeiro lugar, o mais útil. Cícero coloca em primeiro plano as obrigações dos homens para com a humanidade em geral e, depois, para com aqueles a quem deve amparo material: primeiro, a comunidade (o bem comum, o interesse coletivo), em seguida, os pais (idosos), depois os parentes e os cônjuges.

A fórmula do dever é ajustada ao espírito prático dos romanos porque serve para resolver conflitos entre o honesto e o útil, decorrentes de situações concretas que envolvem o cotidiano das pessoas. Cícero, na verdade, propõe-se a ensinar como tomar decisões justas e como analisar os diferentes caminhos possíveis da ação, dado que a ação não deve conferir vantagens pessoais em detrimento do honesto.

Ao dissociar a honestidade (ética) da utilidade (direito), os homens podem perverter os pactos e acordos e, com isso, afrontar a lei natural. Tudo que for contrário ao honesto, diz Cícero (1999, p. 41), é torpe, e onde houver torpeza, não haverá utilidade, porque a utilidade e a torpeza não podem conviver no mesmo objeto.

5.1. O dever e a justiça

Para Cícero (1999, p. 13), a justiça é uma virtude essencialmente social, de modo que a sociedade dos homens deve se agrupar em torno dela. Em sentido amplo, justiça consiste em dar a cada um o que é de cada um, incide sobre a distribuição dos bens e se liga à equidade e à liberalidade.

Um dos fundamentos da justiça é a boa-fé, assim considerada a firmeza moral e o caráter incorruptível em palavras e acordos. Fé advém de fides, assim chamada porque “faz (fiat) o que foi dito”. O homem que “não faz o que foi dito”, que não mantém a palavra, que rompe ou não cumpre o contrato, perde a fides e, com ela, a própria reputação.

A justiça, em sentido estrito, consiste no ato de julgar, realizado por um homem bom (CÍCERO, 1999, p. 13). Homens bons, no Direito romano, são assim chamados, porque são justos no ato de julgar (Digesto, XIX. 2.24). Para Cícero, a realização da justiça depende da qualidade moral do julgador, ou seja, o homem que julga ou decide deve ser, acima de tudo, possuidor do honestum.

O homem justo é, ao mesmo tempo, sábio, corajoso e prudente.

Pois temos fé nos que julgamos mais sábios que nós e naqueles que acreditamos capazes de antever as coisas futuras e, no momento crítico, resolver os problemas tomando a decisão oportuna. E nos homens justos e fiéis, isto é, nos bons, a fé é tanta que não há lugar para suspeitas de fraude ou injustiça. Assim, julgamos acertado confiar a eles nossa salvação, nossos bens, nossos filhos. (CÍCERO, 1999, p. 94).

Há, segundo Cícero (1999, p. 14-15), dois gêneros de injustiça: a) injustiça comissiva, que resulta da prática de um ato injusto; b) injustiça omissiva, que resulta da omissão diante da prática de um ato injusto. Essas injustiças são motivadas pelas paixões, em especial a cobiça e o medo. Na injustiça, é preciso distinguir a menos grave (culposa), que é aquela que se pratica por alguma perturbação de ânimo, da mais grave (dolosa), que é aquela que se pratica de propósito e de modo premeditado. A injustiça dolosa pode ser praticada de dois modos: por fraude ou violência. A fraude é mais odiosa porque quem a perpetra se faz passar por “homem bom”. Cícero esboça o perfil da fórmula (dever de comportamento) para promover a justiça e evitar a injustiça: “ninguém pode se beneficiar à custa de outrem, pois isso viola o honestum e os laços naturais entre os homens”.

5.2. O dever e os contratos

A aparência de utilidade em alguns contratos leva Cícero a tratar do problema da boa-fé e as suas conexões com esses negócios jurídicos, campo em que o Direito romano faz enorme progresso por intermédio dos editos dos pretores que criam novos tipos de ações, como proteção contra a fraude maliciosa.

Esse progresso desperta em Cícero (1999, p. 148-152) a forte convicção de que a atuação dos pretores nada mais é do que a prática do direito conforme a fórmula do dever: “o que não é honesto não é útil”. Na disciplina dos contratos, anota algumas situações que parecem úteis, mas de fato não o são porque contrariam o honesto.

Na contraposição do aparentemente útil e honesto, cita um caso que merece posições contrárias de dois filósofos: Diógenes, da Babilônia e Antipatro, de Tarso. Trata-se do seguinte: um mercador leva de Alexandria para Rodes uma grande quantidade de trigo, estando Rodes imersa na fome e na carência de alimentos. Ocorre que o mercador sabe que muitos outros mercadores também deixaram Alexandria com navios carregados de trigo, e estão prestes a chegar à cidade de Rodes. O mercador deve comunicar esse fato aos ródios ou deve manter o sigilo e vender o seu trigo o mais caro possível? Para Antipatro, tudo deve ser revelado, a fim de que o comprador nada ignore daquilo que sabia o vendedor. Para Diógenes, o vendedor deve expor apenas os defeitos da mercadoria.

Cita outro caso: um homem vende uma casa por causa de certos defeitos que ele conhece, mas que os outros ignoram. Se o vendedor não revela os defeitos ao comprador, terá agido de forma desonesta e injusta? Para Cícero, nem o mercador nem o vendedor da casa devem omitir as informações, pois, se assim o fizerem, estarão dissimulando a verdade aos compradores. O silêncio, quando mantido deliberadamente para lucrar (utilidade) à custa de outrem, é contrário ao honestum. Nesse caso, há injustiça por omissão, ou seja, subtrai-se o princípio da boa-fé, que consiste no dever de informar.

Cícero lembra que o ius civile, com base na boa-fé, estabelece que o vendedor declare os defeitos, por ele conhecidos, da coisa que vende. Foi assim, diz Cícero, quando os áugures (sacerdotes), devendo tomar os auspícios na cidade, ordenaram a Tibério Cláudio Centumalo que demolisse sua casa no Monte Célio, cuja altura atrapalhava a observação do vôo dos pássaros. Cláudio pô-la à venda, e Púlbio Calpúnio Lanário comprou-a. Os áugures deram a este último a mesma ordem. Calpúnio demoliu-a e, logo depois, ficou sabendo que Cláudio pusera a casa à venda após ser intimado pelos áugures. Citou-o perante o árbitro reclamando “tudo que lhe devia dar e fazer em virtude da boa-fé”. Marco Catão pronunciou a sentença, decidindo que, como o vendedor tinha conhecimento da situação, e não a declarou, portanto, deveria pagar o prejuízo ao comprador. Decretou que a boa-fé exigia do vendedor dar conhecimento ao comprador do defeito conhecido.

Há casos que envolvem simulação (malas fides). Um banqueiro de nome Pítio, para vender sua propriedade à beira-mar por um preço mais elevado, no dia da visita do comprador, contrata um grupo de pescadores e simula um movimento que efetivamente não existe naquela área. A venda é realizada, o comprador descobre a simulação, mas não encontra amparo no Direito.

Nessa época, diz Cícero, “meu colega e amigo Caio Aquílio ainda não publicara suas fórmulas sobre o mau dolo”. Aquílio publica suas fórmulas para atender às exigências de restituição no caso de fraude em transações comerciais. Para Aquílio, o mau dolo consiste em “fingir uma coisa e fazer outra”. Cícero entende que Pítio e todos os que fingem uma coisa e fazem outra são injustos, desonestos e maliciosos, portanto, nenhum de seus atos pode ser útil, pois são todos maculados pelo vício. Assim, quer para comprar nas melhores condições, quer para vender, o homem de bem não deve simular nem dissimular nada.

Cícero cita vários exemplos de aplicação, no processo formular, da cláusula da boa-fé e da cláusula agir bem como entre homens de bem. Essas cláusulas emanam, segundo ele, da fórmula mais ampla: nada que não é honesto é útil.

A respeito da pacta sunt servanda Cícero estabelece a seguinte orientação: reconhece que o direito impõe a regra segundo a qual é preciso preservar os pactos e compromissos que, como dizem os pretores, não forem estabelecidos pela força nem pelo mau dolo. Mas, naqueles casos em que ações aparentemente dignas de um homem justo transformam-se em seu contrário, como, por exemplo, cumprir uma determinada promessa que prejudica o favorecido, é justo, segundo Cícero, evitá-las e não realizá-las. Considerando, diz ele, que as coisas mudam conforme a ocasião, o dever também muda, pois nem sempre é igual (rebus sic stantibus); convém, então, recorrer aos fundamentos da justiça: primeiro, a ninguém prejudicar, depois, servir à utilidade comum.

Assim, quando o pacto favorece em demasia ou prejudica uma das partes deve haver uma flexibilização da pacta sunt servanda. Cícero vai além da rebus sic stantibus e estabelece o princípio da boa-fé como fundamento último de todos os contratos. Nesse sentido, diz ele: pode acontecer que uma promessa ou pacto se torne útil apenas ao beneficiário ou àquele que prometeu. Não devem, assim, ser mantidas promessas que se revelam inúteis a quem se destinam ou que prejudiquem mais do que favorecem, posto que não é contrário ao dever antepor um bem maior ao menor.

6. REDESCOBRINDO O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ (OBJETIVA)

Na teoria dos contratos, a grande conquista das últimas décadas foi, indubitavelmente, o redescobrimento do princípio da boa-fé. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo, introduz no direito brasileiro uma nova concepção de contrato, com o intuito de proteger determinados interesses sociais, valorizando a boa-fé das partes contratantes, as expectativas e a confiança depositadas no vínculo. Também o Código Civil (CC) de 2002, ao tratar dos contratos em geral, estabelece que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé (art. 421).

As manifestações dos juristas contemporâneos sobre o real alcance e sentido do princípio da boa-fé estampado nos Códigos demonstram as ligações inexoráveis desse princípio com a bona fides do Direito romano inspirada na filosofia estóica.

Para Cláudia Lima Marques (2001, p. 181), fides significa o hábito de firmeza e de coerência de quem sabe honrar os compromissos assumidos, significa, mais além do compromisso expresso, a fidelidade e coerência no cumprimento da expectativa alheia, independentemente da palavra que haja sido dada ou do acordo que tenha sido concluído, representando, sob este aspecto, a atitude de lealdade, que é legitimamente esperada nas relações entre homens honrados, no respeitoso cumprimento das expectativas reciprocamente confiadas. O princípio da boa-fé significa o compromisso expresso ou implícito de fidelidade e cooperação nas relações contratuais, é uma visão mais ampla, menos textual do vínculo, a concepção leal do vínculo, das expectativas que despertam confiança.

Ruy Rosado de Aguiar Júnior (1995) entende que a boa-fé se constitui numa fonte autônoma de deveres, independentemente da vontade, e, por isso, a extensão e o conteúdo da relação obrigacional já não se medem somente nela (vontade), e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico com a admissão de um dinamismo que escapa ao controle das partes. A boa-fé significa a aceitação da interferência de elementos externos na intimidade da relação obrigacional, com poder limitador da autonomia contratual.

Nas palavras de Antonio Junqueira de Azevedo (1995), “o CDC tem o princípio da boa-fé refletido em inúmeros de seus artigos. Aqui, trata-se na verdade, da boa-fé objetiva que integra a formação do contrato, isto é, a boa-fé como regra (objetiva) de conduta”. Ainda nas palavras do citado jurista, o princípio da boa-fé na formação contratual pode se desdobrar em regras específicas, como é o caso do dever de informar, estampado no art. 6º.

A relação contratual fundada no princípio da boa-fé, irradia uma série de efeitos jurídicos antes, durante e depois da sua realização, motivo pelo qual o contrato faz nascer outros direitos e deveres, e não apenas os resultantes da obrigação principal. Como afirma Cláudia Lima Marques (2001, p. 183-184), o contrato não envolve só a obrigação de prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta. Liberar os contratantes de cumprir seus deveres de conduta, significaria afirmar que na relação contratual os indivíduos estão autorizados a agir de má-fé, a desrespeitar os direitos do parceiro contratual, a não agir lealmente, a abusar da sua posição contratual preponderante (MARQUES, 2001, p. 183-184).

Boa-fé significa, portanto, ação refletida que visa não apenas o próprio bem, mas o bem do parceiro contratual. A ação deve ser conduzida pela virtude, significa respeitar as expectativas razoáveis do parceiro, agir com lealdade, não causar lesão ou desvantagem e cooperar para atingir o bem das obrigações. É nesse sentido que o princípio da boa-fé se revela como fonte de novos deveres ou obrigações especiais, os denominados deveres de conduta, tais como: os deveres de esclarecimentos (incide sobre a obrigação de prestar todas as informações que se façam necessárias), deveres de proteção (incide sobre a obrigação de evitar danos), deveres de lealdade (incide sobre a obrigação de comportar-se com lealdade e evitar desequilíbrios), deveres de transparência (incide sobre a obrigação de, na publicidade e marketing, prestar boa, clara e correta informação), além de outros.

Alberto do Amaral Júnior (1995) leciona que o julgamento das cláusulas contratuais abusivas segundo o princípio geral da boa-fé, instituído pelo CDC (art. 4.º. , III, e art. 51, IV) exigirá do intérprete nova postura que consiste na substituição do raciocínio formalista pelo raciocínio teleológico na interpretação das normas jurídicas.

A interpretação dos textos legais foi marcada, durante longo tempo, pela predominância do raciocínio formalista, de caráter lógico-dedutivo, que se baseava na mera subsunção do fato à norma, procedimento que se personifica no estilo de julgar consagrado pela escola da exegese. O raciocínio de natureza teleológica ou finalística, ao contrário, enfatiza a finalidade que as normas jurídicas procuram atingir. Com isso, a relação concreta deduzida em juízo ultrapassa os seus limites formais para alcançar o conteúdo das prestações em causa. O ordenamento jurídico instaura, assim, novo estilo de julgar, que se preocupa com o conteúdo da operação econômica e não simplesmente com a sua forma.

Analisando o princípio da boa-fé para além dos atos das partes contratantes, Ruy Rosado de Aguiar Júnior (1995), em bem lançada síntese, explica:

Para aplicação da cláusula de boa-fé, o juiz parte do princípio de que toda a inter-relação humana deve pautar-se por um padrão ético de confiança e lealdade indispensável para o próprio desenvolvimento normal da convivência social. A expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um comportamento indissociável da vida de relação, sem o qual ela mesma seria inviável. Isso significa que as pessoas devem adotar um comportamento leal em toda a fase prévia à constituição de tais relações; e que devem também se comportar lealmente no desenvolvimento das relações jurídicas, já constituídas entre elas.

Premidos pelas paixões (medo ou cobiça), os homens responsáveis pelas instituições financeiras querem afastá-las das relações contratuais fundadas no princípio da boa-fé. Movidos pelo dever reto ou honestum (sabedoria, justiça, coragem e prudência), a marca virtuosa que os jurisconsultos romanos nos legaram, os homens do Superior Tribunal de Justiça determinaram: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras” (Súmula n. 297, DJU de 9.9.2004).

BIBLIOGRAFIA

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AMARAL JR., Alberto do. A boa-fé e o controle das cláusulas contratuais abusivas. Revista Direito do Consumidor, n. 6, abr. 1995.

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* Olney Queiroz Assis
Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP e Professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ)

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