Princípio da insignificância nunca se aplica ao crime de contrabando

Autor: Carlos Alberto Vieira Lima de Almeida (*)

 

Recentemente, a legislação penal foi alterada com a entrada em vigor da Lei 13.008/2014, que delineou os atuais contornos jurídicos dos crimes de contrabando e descaminho. Historicamente, esses dois tipos penais se confundiam e o texto da lei permitia um leque de interpretações.

A distinção entre os dois delitos se fazia necessária. De fato, a abrangência de ambos os crimes é essencialmente diferente. O tipo penal de contrabando sempre teve alcance maior do que a conduta típica de descaminho, basta ver que no primeiro há outros bens jurídicos a serem tutelados além do âmbito fiscal.

Alterado o artigo 334 do Código Penal, ampliou-se o rol de mercadorias tidas como proibidas no território nacional. No entanto, a expressão mercadoria que dependa de registro, constante no inciso II, do §1°, do artigo 334-A, necessita de interpretação conjunta com atos normativos emanados pelos órgãos fiscalizadores.

O legislador fez menção ao que se denomina por “mercadoria que dependa de registro” e “mercadoria proibida pela lei brasileira”.

No caso do cigarro, por exemplo — que representa 67% de toda mercadoria que ingressa ilegalmente no país (fonte: IDESF) — a interpretação deverá ser feita em paralelo com as resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e instruções normativas da Receita Federal, órgãos que possuem competência para regular a comercialização, importação e exportação — dentre outras atividades — de produtos ditos especiais.

A Resolução da Diretoria Colegiada 90, expedida pela Anvisa, determina que “é proibida a importação, a exportação e a comercialização no território nacional de qualquer marca de produto fumígeno que não esteja devidamente regularizada na forma desta Resolução”. Em seu artigo 3°, a Anvisa impõe, ainda, que “é obrigatório o registro dos dados cadastrais de todas as marcas de produtos fumígenos derivados do tabaco, fabricadas no território nacional, importadas ou exportadas”.

Já a RDC 346, proveniente também do citado órgão regulador, estabelece que “para iniciar a comercialização de uma marca nova de produto derivado do tabaco, fumígeno ou não, as empresas fabricantes nacionais, importadoras ou exportadoras deverão apresentar no Setor de Protocolo da Avisa, solicitação de cadastro para cada marca de produto” — artigo 4°. Os artigos 15 e 16 da Instrução normativa 770/2007 da Receita Federal ratificam a regra e atribuem ainda a necessidade de “selo de controle” a ser conferido ao produto.

Desta maneira, a conclusão natural é a de que a importação, comercialização e manutenção em depósito de produtos derivados do tabaco, que não tenham passado previamente pelo crivo da Anvisa e da Receita Federal são considerados mercadorias proibidas no território nacional e configuram o crime de contrabando.

Logo, não se trata de tutelar apenas o recolhimento dos impostos devidos, mas também, e principalmente, de proteger o interesse público relacionado à saúde coletiva. Este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 120.550/PR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2013; Primeira Turma).

Aspecto relevante a ser ressaltado é o de que, antes mesmo da alteração do Código Penal, quando ainda prevalecia confusão entre a abrangência dos crimes de descaminho e contrabando, o Supremo Tribunal Federal já manifestara o entendimento de que o princípio da insignificância não se aplica ao tipo penal de contrabando de cigarros, tendo em vista a natureza desta mercadoria. (Segunda Turma, HC n°117.915/PR; Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 15.10.2013).

Após a alteração do Código Penal, esta diferenciação restou ainda mais evidente no texto da lei. Além disso, consolidou-se o entendimento de que o princípio da insignificância poderia ser aplicado apenas ao crime de descaminho, caso o valor sonegado ao fisco não ultrapassasse o limite de vinte mil reais estabelecido pela legislação tributária (Lei 10.522/2002, Artigo 20 e Portaria 75, de 2012, do Ministério da Fazenda, Artigo 1°).

Esta norma tributária, entretanto, vem sendo suscitada para respaldar a aplicação do princípio da insignificância, analogamente, ao crime de contrabando. A interpretação se mostra equivocada. Há que se considerar a questão da saúde pública e não a bagatela do valor devido à Fazenda (Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, HC 119.171, Rel. Min. Rosa Weber, j. 15.10.2013).

No âmbito do Ministério Publico Federal, percebe-se — por meio da análise dos procedimentos administrativos instaurados para apuração do crime de contrabando — que este entendimento ainda não está consolidado. Ainda há resquícios da prevalência da aplicação do princípio da insignificância ao crime de contrabando de cigarros em detrimento do direito fundamental à saúde pública. Inúmeros procedimentos estão sendo sumariamente arquivados a depender da quantidade de mercadoria apreendida em cada caso.

Esses arquivamentos, entretanto, tem sido revistos em sua maioria após manifestação judicial no sentido da impossibilidade de aplicação do princípio aqui referido. Esse movimento causa, naturalmente, óbices ao desenvolvimento da atividade do Ministério Público, uma vez que condiciona o desenrolar do procedimento à análise prévia da insignificância do delito, tema já superado no âmbito dos tribunais superiores.

Segue-se daí que apesar da significativa quantidade de votos coletados em sede de revisão fazer menção à natureza especial das mercadorias derivadas do tabaco, há ainda casos em que, equivocadamente, é suscitada a incidência de norma prevista na legislação tributária — a qual deveria ser utilizada somente em relação ao crime de descaminho — com intuito de aferir a insignificância em cada caso concreto.

Conclui-se, então, que o Ministério Público Federal tem, agora, uma grande oportunidade de unificar o seu entendimento sobre a matéria, a fim de contribuir para otimização da atividade de seus membros e, ainda, combater o crime de contrabando com o rigor que o ordenamento jurídico, a doutrina, a jurisprudência e, enfim, a sociedade brasileira, sempre clamaram.

 

 

 

 

Autor: Carlos Alberto Vieira Lima de Almeida é advogado, especialista em direito processual e atuante na área de consultoria criminal, membro da OAB-RJ.


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