Luiz Vicente Cernicchiaro
A sanção jurídica confere eficácia à norma. Há de ser, por isso, materialmente considerada, supressão de direito (pena de morte), restrição ao exercício de direito de liberdade (prisão), ou patrimonial (multa). Repetem-se nas várias áreas do Direito, embora, em conseqüência das características do respectivo setor dogmático, predominar em uma, mais do que em outras.
A prisão civil é prevista em nossa Constituição para os casos de depositário, infiel e injustificado não pagamento de prestação alimentícia. A segunda hipótese, aliás, é contemplada também na Convenção de San José de Costa Rica, subscrita pelo Brasil e promulgada pelo Congresso Nacional. Não registra a restrição quanto ao depositário infiel. O Supremo Tribunal Federal, por maioria, não obstante, mantém a vigência da norma da lei sobre alienação fiduciária, autorizadora da prisão.
No Brasil, quando o obrigado ao pagamento de alimentos deixa de fazê-lo, injustificadamente, autoriza a prisão civil por três meses, que se interrompe com o cumprimento da obrigação. Evidencia, por isso, forma coativa de proteção do alimentando. Dada a sua natureza, sem dúvida, precisa ser analisada diferentemente quando evidencia meio para obrigar alguém, sob ameaça de prisão, a cumprir algum contrato. O tema merece acurado estudo a fim de desatualizar, para sempre, a narração de Shakespeare, no Mercador de Veneza. O credor, como reação ao inadimplemento do devedor, exigira parte da carne da perna do devedor.
O Direito, como unidade, não encerra contradição lógica. A observação merece ser repetida, ponto de partida que é para solucionar os conflitos de normas jurídicas. Pouco importa em que setor do Direito se encontrem. Notadamente quando o mesmo instituto interessa, é disciplinado em mais de uma área. É o que acontece com o inadimplemento da obrigação de prestar alimentos. Fazem-se presentes o Direito Civil e o Direito Penal. Disciplinam-se, por isso, as relações entre ascendentes e descendentes e cônjuges. O vínculo entre tais pessoas impõe o dever de assistência mútua. É também mais um contato do Direito com a Moral.
A Constituição veda a prisão civil por dívida, ‘‘salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.’’ (art. 5º, LXVIII).
A sanção será a prisão civil até noventa dias.
O Código Penal, por seu turno, define o crime de Abandono Material (art. 244). Tipo de conteúdo variado, contempla também ‘‘Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou valetudinário… faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada…’’.
Dessa forma, Direito Civil e Direito Penal se unem. Até aí, tudo bem. Não é a primeira e única vez que acontece. Não se pode esquecer, entretanto: a sanção penal é mais rigorosa do que a sanção civil. Diga-se o mesmo da prisão penal confrontada com a prisão civil. Logicamente, situação menos grave deve gerar sanção menos grave, relativamente à mais grave. Imperativo do princípio da proporcionalidade.
O Código Penal, para o cumprimento da pena, considerando a qualidade e a quantidade da sanção, distingue três regimes: fechado, semi-aberto e aberto, conforme os requisitos objetivo e subjetivos. O primeiro leva em conta a pena aplicada.
O regime aberto é contemplado ao ‘‘condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos.’’ (art. 33, § 2º, C)
A pena cominada ao crime de Abandono Material (CP. art. 244) é de detenção,de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.
O máximo da sanção, resultante do princípio da proporcionalidade, só se aplica excepcionalmente, salvo se circunstâncias especialíssimas recomendarem pena tão elevada. Ademais, não é imposta a réu primário.
O condenado, por isso, terá direito ao regime aberto.
Cumpre, então, ponderar, mais uma vez, a severidade maior da sanção penal em confronto com a sanção civil.
A sanção civil não pode ser mais rigorosa do que a sanção penal. Se esta enseja o regime aberto, a pena é cumprida ‘‘em casa de albergado ou estabelecimento adequado’’ (CP. art. 33, § 1º, c). O condenado, com isso, resgata a sanção fora de estabelecimento de segurança máxima ou média, próprio do regime fechado, e de colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, adequado ao regime semi-aberto.
Daí, uma conclusão se impõe: o cumprimento da prisão civil será, necessariamente, menos rigoroso do que a sanção penal. O inadimplente de obrigação civil, certo, não pode ser trancafiado no estabelecimento prisional comum. Caso contrário, ocorrerá contradição lógica, o que será contra-senso jurídico.
Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça, professor titular da Universidade de Brasília e autor do livro ‘‘Questões Penais’’