Prisão domiciliar cautelar deve ser deduzida do cálculo de fixação da pena

Autor: Guilherme Lobo Marchioni  (*)

 

O Código de Processo Penal, desde a alteração promovida pela Lei 12.403/2011, recebeu medidas cautelares pessoais diversas da prisão. Essas medidas permitem ao juiz substituir a prisão preventiva, imposta no curso do processo penal, por obrigações menos gravosas que possam assegurar a eventual aplicação de sanção criminal e garantir a ordem pública sem que o acusado tenha de ser recolhido ao cárcere.

A partir dessa alteração legislativa foi superada a dicotomia existente até então no processo penal pela qual o acusado era mantido preso preventivamente ou respondia o processo em liberdade. Nos termos atuais, a prisão preventiva passa a ser medida excepcional, tendo caráter subsidiário em relação às demais medidas cautelares pessoais.

Essas medidas cautelares pessoais estão previstas no art. 319, do Código de Processo Penal. São elas: o monitoramento eletrônico, a proibição de contatar vítimas e o recolhimento domiciliar, entre outras. A recente sistemática de medidas cautelares alternativas gerou, entretanto, questões sobre a influência do seu cumprimento em eventual pena definitiva.

A imposição de recolhimento domiciliar (art. 319, inc. V, CPP) é a hipótese mais gritante, pois representa uma limitação significativa na liberdade de ir e vir do acusado. Assim, é preciso questionar se essa medida cautelar deve ser considerada como cumprimento de pena para fins de desconto no total da condenação à restrição de liberdade.

Nesse sentido, de acordo com a legislação penal e de execução penal, o tempo de prisão preventiva, prisão provisória identificada como cautelar pessoal, será contabilizado diante de uma condenação. É a incidência da chamada detração penal, ou seja, o desconto do tempo de prisão provisória na pena privativa de liberdade, ao início de seu cumprimento (art. 66, III, c, da Lei de Execução Penal).

O Código Penal, em seu artigo 42, dispõe que será computado, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória.

O fundamento da detração reside, em princípio, na proibição do bis in idem – a dupla imputação, responder pelo mesmo fato por duas vezes. O ne bis in idem está caracterizado implicitamente no art. 1°, III, da Constituição Federal (a dignidade da pessoa humana). Muito embora não se trate de princípio explícito, sua incorporação ao ordenamento complementa os direitos e garantias individuais previstos na Constituição Federal.

De acordo com o instituto comentado, a prisão preventiva há de ser considerada no tempo de prisão definitiva, eis que a prisão processual representa, preventivamente, a aplicação de prisão aos fatos em apreciação judicial. Assim, ainda que a qualidade e a natureza das prisões provisórias e definitivas sejam distintas, a supressão do direito de locomoção deve ser compensada na pena final.

Todavia, quanto a decretação de medida cautelar pessoal diversa da prisão, não há previsão expressa indicando a aplicação ou não de detração penal, muito embora se trate de restrições de liberdade. É dizer que não haveria diferenciação para fins de detração na situação do acusado que responde em liberdade e do acusado submetido a restrições em sua liberdade diversas da prisão como o recolhimento domiciliar durante o curso do processo, eis que explicitamente a lei não determina desconto de pena no início do cumprimento de condenação definitiva.

A desigualdade na situação é evidente. Há um tratamento mais grave ao acusado cumprindo medida cautelar diversa da prisão em comparação àquele que responde em liberdade. Isto porque esse último não faz jus a descontos pela detração se condenado, enquanto aquele não tem segurança legal de que o tempo de cumprimento de medidas será de algum modo contabilizado na fixação de eventual sanção.

Igualmente desigual é a comparação com o acusado que foi recolhido ao cárcere durante o curso do processo. Esse último terá, certamente, reconhecido o desconto da detração à sua pena.

É oportuno pontuar que a detração penal tem por fundamento o princípio da equidade e a vedação ao bis in idem, de modo que é salutar que o instituto seja estendido a qualquer hipótese de intervenção do Estado em direitos que constringiam a liberdade de locomoção.

Essa lógica que determina a aplicação de detração em caso de aplicação de cautelar alternativa encontra repercussão no direito estrangeiro. O Código Penal espanhol, por exemplo, estabelece que as privações de direitos cautelares serão abonadas em sua totalidade no cumprimento da pena imposta.

Nessa legislação, mesmo quando as medidas cautelares e a pena imposta são distintas, o julgador irá considerar executada a pena imposta na parte em possa que considerar compensada (Código Penal espanhol: Sección 6ª, art. 58[1]).

Já o Código de Processo Penal italiano tem dispositivo expresso sobre a modalidade de prisão domiciliar, no sentido de que o imputado em arresto domiciliar se considera, para todos os efeitos, em estado de custódia cautelar. (Código de Processo Penal Italiano: art. 284, 5[2])

O Código Penal português contempla raciocínio semelhante. Prevê expressamente o desconto total do tempo de pena de prisão, caso o réu tenha sofrido no curso do processo detenção, prisão preventiva, ou obrigação de permanência na habitação (Código Penal Português: art. 80, 1[3]).

De fato, o direito comparado demonstra a razoabilidade de interpretar o instituto de modo a contemplar compensação entre a medida cautelar e eventual prisão definitiva. Isso principalmente nos casos em que a cautelar imposta limita demasiadamente a liberdade de locomoção, como é o recolhimento domiciliar e monitoramento eletrônico.

A lacuna apontada no direito tem prospecção de ser preenchida. Dois projetos de lei tramitam no Congresso Nacional com propostas de textos que dirimirem a dúvida na aplicação desse dispositivo.

De outro lado, tramita o Projeto de Lei 8.045/2010 (proposta de novo Código de Processo Penal) em que um dos dispositivos define que o tempo de recolhimento domiciliar será computado no cumprimento da pena privativa de liberdade na hipótese de fixação inicial do regime aberto na sentença condenatória. Acrescenta, ainda, que caso o réu comece cumprindo a condenação em regime fechado, substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, será computado o tempo de duração das medidas[4].

Também nessa temática, o Projeto de Lei 513 de 2013 em trâmite no Senado Federal é destinado a promover alterações na Lei de Execução Penal. Uma delas é a inclusão do de dispositivo pelo qual passará a ser computado na pena privativa de liberdade e na medida de segurança o tempo de cumprimento de qualquer medida cautelar, prisão provisória, prisão administrativa, e de internação em Hospital de Custódia ou estabelecimento similar.[5]

Não obstante os projetos de lei que visam esclarecer a problemática, a ausência de menção à detração para cautelares distintas da prisão no ordenamento não impede sua aplicação pelo juiz, desde que a medida cautelar restritiva cumprida tenha compatibilidade lógica com a pena restritiva de direitos aplicada ao final do processo.

Desta forma, seria possível descontar o tempo passado em prisão domiciliar da eventual pena de prisão definitiva em regime aberto ou o período processual no qual o réu foi proibido de frequentar determinados lugares da pena restritiva da mesma natureza, se essa sanção constar da condenação.

Caso a cautelar e a pena tenham naturezas distintas — como na hipótese da cautelar de recolhimento domiciliar e pena de prisão em regime fechado — o desconto pela detração deve também ser aplicado, haja vista ter sido o acusado submetido a privação em sua liberdade e considerando que, até o momento, a legislação não fixou modo diverso de detração (na forma proposta nos projetos de lei mencionados acima).

A doutrina tem admitido que apesar de a legislação calar sobre a detração de medidas cautelares alternativas, nos casos em que a cautelar envolve recolhimento domiciliar integral e monitoramento eletrônico se vislumbra possível a aplicação detração, justamente para descontar tempo de pena definitiva a ser cumprida em regime fechado[6].

Frisa-se, por fim, que um acusado submetido a recolhimento domiciliar integral e monitoramento eletrônico experimenta privação de liberdade que não pode simplesmente ser ignorada. A residência do acusado torna-se seu cárcere e não por outra razão é chamada de prisão domiciliar. Desse modo, o período de restrição à sua locomoção deve ser interpretado como circunstância passível de ser detraída em proporção de um para um.

Esse raciocínio tem sido trabalhado pela jurisprudência brasileira, tal como ilustra o trecho decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “não é o fato de o sentenciado encontrar-se em prisão domiciliar que afastará o direito à detração, afinal, da mesma forma que a prisão em estabelecimento prisional, o acusado é privado de uma série de direitos, notadamente sua própria liberdade”[7].

Inclusive no Superior Tribunal de Justiça verifica-se a constatação de que o tempo de prisão em recolhimento domiciliar é passível de detração penal. A corte superior ao se deparar com o tema estabeleceu o entendimento de que “o tempo de prisão cautelar efetivamente cumprida em regime domiciliar deve ser computado na pena privativa de liberdade para fins de detração”[8].

Ainda que o recolhimento domiciliar não seja integral, mas admita o trabalho externo, a conclusão seria mesma. Isso porque o trabalho do acusado deve ser incentivado e aflige direito fundamental qualquer interpretação que prejudique a intenção do acusado de empreender sua profissão.

Ademais, sendo a ressocialização um dos fundamentos declarados da legislação penal, se o indivíduo, desde o processo, se submeteu e cumpriu medidas cautelares diversas da prisão a ele impostas, fica nítido a sua mudança de comportamento no sentido de atuar conforme o ordenamento jurídico. Deve tal ato ser computado na detração penal, eis que se filia aos objetivos da pena.

O acusado submetido à prisão domiciliar e monitoramento eletrônico, além de outras medidas cautelares alternativas, durante a instrução criminal, faz jus à detração, mesmo silente a legislação a respeito do respectivo desconto na pena final, em respeito ao princípio da equidade e da vedação do bis in idem. Isso porque a detração deve ser aplicada sempre que houver intervenção do Estado em direitos, seja para restringir ou para privar a liberdade do indivíduo.

Por fim, apesar de inexistir objetividade na legislação, é certo que o cumprimento de medida cautelar alternativa que determine constrição relevante à liberdade de ir e vir, ainda que mais leve do que a prisão preventiva, deve ser levada em consideração em futura compensação em sentença condenatória. Sobretudo tratando-se de recolhimento domiciliar, em que há efetiva restrição da liberdade, é de rigor a incidência da detração para desconto de todos os dias de prisão domiciliar de eventual pena definitiva em regime fechado.

 

 

 

 

Autor: Guilherme Lobo Marchioni  é advogado criminal e sócio do Fernando Fernandes Advogados.


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