por Antonio Carlos Bigonha
Ana sentiu que lhe erguiam o vestido. Abriu a boca e preparou-se para morder a primeira cara que se aproximasse da sua. Um homem caiu sobre ela. (…) Ela soltou um grito, fez um esforço para se erguer, mas não conseguiu. O homem resfolegava, o suor de seu rosto pingava no de Ana, que lhe cuspia nas faces, procurando ao mesmo tempo mordê-lo. (Por que Deus não me mata?) Veio outro homem. E outro. E ainda outro. Ana já não resistia mais. Tinha a impressão que lhe metiam adagas no ventre. Por fim perdeu os sentidos.
Li o romance de Érico Veríssimo pela primeira vez na década de 80, obrigado pelo colégio, na véspera da prova de literatura, sufocado na inocência dos 15 anos e enrubescido diante da rudeza de algumas passagens. Era um tempo em que os conhecimentos de meninos acerca das partes pudentas de uma mulher decorriam basicamente de fértil imaginação e tempestade hormonal. Hoje as crianças transpõem suas curiosidades mais picantes no programa matinal de TV, ou na web, e a inocência, lamentavelmente, é cada vez mais efêmera.
Seria pura inocência, nos padrões de ontem ou hoje, supor que a menor L, após 24 dias detida com mais de 20 homens adultos numa cela da delegacia de Abaetetuba (PA), não tenha tido inúmeros momentos de Ana Terra. Os padrões adotados pela autoridade policial para fazer cumprir a lei, no caso, afrontam o bom senso em qualquer ponto do planeta.
A questão da distinção de tratamento entre os sexos já foi objeto de calorosos debates, sobretudo após os anos sessenta, com a revolução sexual e a emancipação da mulher. Mas nem nas sociedades com padrões de comportamento mais vanguardistas — onde homens e mulheres partilham até o banheiro público —, tampouco nas mais conservadoras — onde a mulher não tem direito à convivência pública com homens —, de um extremo ao outro, não há como legitimar o critério adotado pela nobre delegada para manter a menor L. presa em semelhantes condições, em cumprimento de ordem emanada de uma juíza, sob o argumento da inexistência de cárcere feminino na localidade.
O episódio chama atenção para a ineficiência do controle da atividade policial no Brasil. O primeiro sistema que se mostrou ineficiente foi o controle interno. Durante o período que precedeu a denúncia anônima que deu publicidade ao escândalo, não se tem notícia de qualquer movimentação de chefias ou corregedorias internas que impedissem tamanha ilegalidade.
O controle judicial, tão decantado pelas lideranças políticas da Polícia e do próprio Judiciário como garantia do cidadão, a justificar a triangulação na tramitação do inquérito policial (delegado/juiz/promotor/juiz/delegado), também não demonstrou qualquer funcionalidade, fazendo letra morta a garantia constitucional de que aos presos é assegurada a integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX da C.F), dentre outras.
Não se tem notícia, de igual modo, da atuação de qualquer defensor público, estes que, segundo a Constituição, devem zelar pelo interesse do cidadão necessitado. Transgressões bárbaras e gritantes como esta bem que poderiam sensibilizar a nobre categoria dos defensores para a absoluta prioridade de concentrar energias na defesa dos milhares de cidadãos carentes e deixar de lado a pretensão expansionista de encampar as missões do Ministério Público e do Procurador-Geral da República.
A Ordem dos Advogados do Brasil, instituição que historicamente tem cumprido o importante papel de zelar pelo respeito aos direitos humanos, não deixou qualquer marca significativa de sua intervenção neste caso e, se nele atuou, não foi com a força retumbante que lhe é característica.
Ressalta ainda o débito do Ministério Público com a sociedade brasileira na implementação do controle externo da atividade policial, o que já alcança 20 anos desde a promulgação da Constituição. Regulamentado em lei complementar há quase 15 anos (mesma idade de L.), e recentemente disciplinado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, não sai do papel em decorrência da dificuldade de relacionamento das duas instituições, secundadas pelo corporativismo policial bem articulado no Parlamento Federal, hoje honrado com expressiva bancada de parlamentares egressos dos quadros da própria Polícia.
É preciso que fique claro: somente a partir de denúncia anônima o caso chegou ao conhecimento do Ministério Público e, com sua atuação, cessou-se a iniqüidade. O anonimato teve, neste caso, papel decisivo, embora seja, de certa forma, repudiado pela Constituição (artigo 5º, IV).
A chave de ouro do episódio é a pronta defesa da delegada e de sua corregedora, de puro realismo fantástico a justificar, mais uma vez, a alusão a Érico Veríssimo, um dos precursores desse movimento literário em nosso continente: a menina não é moça e não tem apenas 15 anos, já foi presa várias vezes e falsificou a certidão de nascimento. Faz toda a diferença. Melhor que fossem sinceras e dissessem: “uma fêmea já feita para os padrões de hoje, onde não há espaço para inocência; não foi presa por ser santa; oferecida, bem que gostou e, se não gostou, bem que mereceu”.
Arquive-se.
Antonio Carlos Bigonha: é presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)