Prisão preventiva depois de decisão de segundo grau é retrocesso civilizatório

Autor: Diogo Malan (*)

 

Hoje tramita no âmbito do Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado 402/15, apresentado pelos Senadores Roberto Requião, Aloysio Nunes Ferreira, Álvaro Dias, Gleisi Hoffmann e Ricardo Ferraço, a partir de Anteprojeto encaminhado pela Associação Nacional dos Juízes Federais (Ajufe).

Esse disegno di legge, dentre outras inovações, almeja introduzir no Código de Processo Penal um artigo 617-A, prevendo que o Tribunal de segunda instância, ao proferir decisão condenatória por crimes hediondos, tráfico de drogas, tortura, terrorismo, corrupção, peculato, lavagem de dinheiro ou associação criminosa, poderá decretar a prisão preventiva do acusado.

A exposição de motivos do projeto em análise revela que suas principais fontes de inspiração foram a Seção 3.143, b, do Título 18 do United States Code e o artigo 367 do Code de Procédure Pénale francês, que supostamente conteriam previsões similares.

Os artífices dessa legislação projetada invocaram como pretexto a necessidade de “maior eficácia às sentenças condenatórias e aos acórdãos condenatórios no processo penal, evitando a eternização da relação jurídica processual, com graves impactos na aplicação da lei penal”.

Curioso notar que a comunidade acadêmica brasileira, ao que tudo indica, foi completamente alijada de qualquer participação na confecção desse Projeto de Lei, o que talvez explique seus inúmeros equívocos.

A uma, a importação de determinado instituto estrangeiro não pode ser feita de forma acrítica, ou indiscriminada. Para se proceder à operação desse jaez, imprescindível prévia compreensão de todas as nuanças do instituto a ser transplantado (origens históricas; natureza jurídica; conteúdo; abrangência; forma como ele se insere estrutural e funcionalmente no âmbito do sistema jurídico de origem etc.). Ademais disso, torna-se indispensável analisar a compatibilidade entre o instituto alienígena e o sistema importador (José Carlos Barbosa Moreira).

Isso é de suma importância no campo do Direito Processual Penal, em que reformas legislativas tendem a repercutir, de forma direta e intensa, no ambiente institucional de administração da justiça. A importação de determinado instituto estrangeiro deve considerar não só as suas qualidades intrínsecas, mas também a sobredita repercussão no ambiente institucional em que tal instituto irá operar.

Operações de importação envolvendo ordenamentos de diferentes famílias jurídicas (como Brasil e EUA) exigem cautelas redobradas, pois mesmo normas idênticas podem adquirir significado e repercussão diferentes, ao interagir com novo ambiente institucional (Mirjan Damaska).

É preciso evitar manifestações de colonialismo cultural jurídico, pois os sistemas processuais penais norte-americano e francês possuem características substancialmente distintas do nosso, que é de inspiração italiana.

A duas, nenhuma concepção civilizada de sistema de administração da justiça criminal (democratizado, humanista, racional etc.) pode ter como pauta única de política legislativa conferir “maior eficácia às sentenças condenatórias e aos acórdãos condenatórios”.

Ao contrário, o sobredito objetivo deve ser conjugado com a função precípua do Processo Penal: a proteção das garantias do cidadão acusado – dentre as quais avulta a importância da norma constitucional segundo a qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

O conteúdo dessa garantia, caso levado a sério, impõe relevante óbice às atividades do legislador e do intérprete/aplicador do Direito. Sob pena de brutal estupro semântico, não se pode interpretar a expressão “até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” como significando “até a condenação de segunda instância”.

A três, o Projeto de Lei em tela parece carecer do devido senso de perspectiva histórica. Isso porque nenhum sistema processual penal democratizado pode abdicar da presunção de inocência como regra de tratamento do acusado.

Esta tem como principal consequência transformar a prisão processual em medida de natureza excepcional, só cabível quando ela for estritamente necessária para resguardar os fins do próprio processo criminal. Nesse contexto, são manifestamente ilegítimas quaisquer outras finalidades, notadamente a punição antecipada do acusado.

O lento processo de conscientização democrática neste País vem progressivamente reconhecendo a força normativa do direito fundamental à presunção de inocência, tornando a prisão processual mais civilizada, racional e limitada.

Importante passo nessa direção foi dado com a revogação da hedionda prisão preventiva obrigatória para crimes com pena máxima igual ou superior a dez anos pela Lei 5.349/67. Outro relevante desdobramento foi o julgamento da ADI 3.112 pelo STF, que declarou inconstitucional a vedação de liberdade provisória contida na Lei 10.826/03 (Lei de Armas).

Nesse mesmo ano, a Lei 11.464/07 revogou a proibição congênere prevista para crimes hediondos na Lei 8.072/90. Igualmente foram de extrema relevância as revogações da prisão decorrente de pronúncia e da prisão decorrente de sentença condenatória recorrível pelas leis 11.689/08 e11.719/08, respectivamente.

O precedente mais importante é o julgamento do Habeas Corpus 84.078, pelo qual o STF pacificou que a garantia da presunção de inocência impede a execução antecipada da pena na pendência do julgamento dos recursos especial e extraordinário. Vale dizer: entendimento diametralmente oposto àquele adotado pelo Projeto de Lei em exame.

Ao julgar o Habeas Corpus 104.339, o STF declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da vedação de liberdade provisória contida na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas). Já a Lei 12.850/13 revogou a proibição de liberdade provisória para acusados de integrar associações ou organizações criminosas de qualquer tipo contida na Lei 9.034/95.

Cabe também observar que o Brasil está sujeito à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual já pacificou que as únicas circunstâncias legitimadoras da prisão processual são aquelas relacionadas à garantia da aplicação da lei penal ou à garantia da investigação ou prova (v.g. caso López Álvarez vs. Honduras, dentre outros).

Assim, é lícito concluir que o PLS 402/15: (i) representa ideia obscurantista, porquanto acarretará gravíssimo retrocesso civilizatório; (ii) nem sequer poderia estar sendo debatido pelo Congresso Nacional, pois fere de morte cláusula pétrea constitucional (a garantia da presunção de inocência); (iii) ensejará ilícito perante o ordenamento jurídico internacional, sujeitando o Brasil às sanções da Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso convertido em lei; (iv) deverá ser declarado materialmente inconstitucional pelo Poder Judiciário, pois é manifestamente contrário à jurisprudência pacificada pelo STF desde o julgamento do HC 84.078.

Autor: Diogo Malan é professor da UERJ e da FND/UFRJ


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