Autores: Luciano Feldens e Débora Poeta (*)
Ainda não temos o acórdão. Mas, do que se viu e ouviu, o Supremo Tribunal Federal, alterando a norma até então vigente acerca do artigo 5º, LVII, da Constituição, entendeu, por maioria, que o princípio constitucional da presunção de inocência não se configuraria, em si, como obstáculo à execução pena enquanto pendente de apreciação os recursos especial e extraordinário.
À primeiríssima vista, pareceu-nos, aos estupefatos, bem como àqueles que comemoram a decisão, que o cidadão condenado em segundo grau — com chance estatística de 25% de ver seu quadro inteiramente revertido nas instâncias superiores — estaria imediatamente sujeito à prisão (ou pena alternativa), mesmo antes do trânsito em julgado da decisão.
Embora possa ter tido esse propósito, a decisão não teve esse alcance.
Esperemos a publicação da decisão para entrar na análise da heterogeneidade dos argumentos que, somados, formaram a maioria vencedora. Economizemos na cláusula de estilo, um tanto óbvia, de que todos respeitamos a decisão do Supremo; e o próprio Supremo. E dispensemos, apenas por ora, o sentido garantista que despertam, em nosso meio jurídico-processual, as obrigações que o país assumiu internacionalmente, ao subscrever tratados de direitos humanos. Porém, assim como um tribunal de defesa da Constituição não pode se demitir de sua função contramajoritária, os professores de Direito não podemos nos demitir da nossa; da nossa função de denunciar os desajustes que impactam na segurança jurídica e, sobretudo, na liberdade individual.
A questão objetiva — a ser dirigida, talvez, ao próprio Supremo, em embargos de declaração — é a seguinte: a decisão em referência afetou a positividade jurídica do artigo 283 do Código de Processo Penal? Observe-se: o dispositivo legal em referência, muito além de repercutir a ideologia normativa da presunção de inocência lapidada no artigo 5º, LVII, da Constituição, assenta que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Primo politicamente pobre desta disposição legal — porque de origem pré-constitucional —, mas não menos válido juridicamente, é o artigo 105 da Lei 7.210/84, indicativo de que “transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade (…) o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”. O que dele dizer?
Em resumo: ou o Supremo terá declarado inconstitucional o artigo 283 do CPP e todos seus congêneres normativos — o que certamente não o fez —, ou nada mudou em termos de marco inicial de execução da pena privativa de liberdade. Direto ao ponto: a prisão de qualquer pessoa, excetuada a hipótese de flagrante delito ou de prisão temporária ou preventiva, segue legalmente condicionada ao trânsito em julgado da sentença condenatória. No particular, não importa que os recursos especial e extraordinário sejam destituídos de efeito suspensivo; essa “desinvestidura”, prévia à Reforma do Código de Processo Penal, que passou a condicionar a prisão-pena ao trânsito em julgado da decisão condenatória, não ostenta aptidão normativa para anular os efeitos da lei processual reformadora, em pleno vigor.
Bastante mais grave será se compreendermos que o Supremo alterou, pela via interpretativa, o próprio sentido da expressão “trânsito em julgado”, substituindo-o por “decisão de segundo grau”. Se fosse essa a hipótese, estaríamos navegando em mar aberto, entre mais de cinco dezenas de dispositivos e institutos do Código de Processo Civil, e outros tantos, embora menos apreciados, do Código de Processo Penal, que sujeitam sua incidência ao trânsito em julgado da sentença (por exemplo, artigos 63, 118, 119, 122, 123, 133, 334, 377, 379, 428, 581, XIX, 674, 686, 689, §2º, 691, etc.).
Decerto, em dado momento do Século XX acreditou-se que a Constituição e os juízes se constituiriam no dique de proteção da liberdade individual, frequentemente ameaçada por maiorias legislativas dominadas por governantes não sujeitos a limites superiores (direitos fundamentais). E não é que serão as maiorias legislativas que seguirão assegurando, no presente caso, a liberdade individual?
Autores: Luciano Feldens é doutor em Direito Constitucional, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS. Advogado. Sócio do escritório FeldensMadruga.
Débora Poeta é mestre em Direito, professora de Direito Processual Penal na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Advogada. Sócia do escritório FeldensMadruga.