Privilégios de empresa pública visam ao interesse comum

por Cristiane Rodrigues Iwakura

Como desdobramentos do Princípio da Isonomia, foram estabelecidos pelo legislador privilégios em benefício da Administração Pública, com o objetivo de resguardar o interesse público em face de interesses privados, sem prejuízo dos direitos e garantias constitucionalmente previstos.

Destarte, se determinada pessoa for dotada de personalidade jurídica de direito público (natureza esta, que em regra é estabelecida expressamente pelo ordenamento jurídico pátrio), estará automaticamente acobertada por uma série de prerrogativas, dentre as quais são destacadas para a análise do tema ora em debate:

a)Impenhorabilidade, imprescritibilidade e inalienabilidade relativa dos bens;

b) Regime de pagamento via precatório (em conformidade com as disposições previstas no art. 100 da Constituição da República);

c) Prazos processuais privilegiados (em dobro para contestar e em quádruplo para recorrer, nos termos do art. 188 do CPC);

d) Presunção de legitimidade e veracidade dos atos praticados pelos seus agentes;

e) Reexame necessário das decisões que lhe forem desfavoráveis (art. 475, II do CPC);

f) Imunidade tributária em relação a impostos que incidam sobre o patrimônio, a renda e os serviços (art. 150, VI, a e § 2° da CRFB).

A Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil atualmente vigente) expressamente prevê quais são as pessoas jurídicas de direito público interno. Neste rol figuram os estados, o Distrito Federal e os territórios, os municípios, as autarquias e as demais entidades de direito público criadas por lei (artigo 41 do Código Civil), sendo estas últimas de extrema importância para o deslinde do presente estudo.

Em contraposição às pessoas jurídicas de direito público interno estabelece o referido diploma legal no artigo 44 que são pessoas jurídicas de direito privado as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos.

No momento em que o legislador confere natureza pública ou privada a determinada pessoa jurídica, resta implicitamente especificado qual o interesse prevalecente nas relações jurídicas por ela estabelecidas, razão pela qual são concedidas prerrogativas às pessoas jurídicas de direito público.

Porém, a classificação das pessoas jurídicas não é tão simples quanto parece ser. Não basta um rol taxativo determinando quais terão natureza de direito público e quais terão natureza de direito privado. Em verdade, é a dinâmica das atividades de cada pessoa jurídica que será o principal fator determinante de sua natureza, e não tão-somente a classificação legal a ela atribuída.

Nas palavras do ilustre Professor Cândido Dinamarco:

“Fazenda Pública é a personificação do Estado, especialmente consideradas as implicações patrimoniais das relações jurídicas em que se envolve (…)” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, v. I, 2ª edição, São Paulo: Malheiros, pp. 179-180).

A partir de tal raciocínio, em recente julgado, firmou o Colendo Supremo Tribunal Federal o seguinte entendimento:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C.F., art. 150, VI, a. EMPRESA PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. – As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art. 150, VI, a. II. – R.E. conhecido em parte e, nessa parte, provido. (STF, 2ª Turma, RE 407099/RS, Relator(a): Min. Carlos Velloso, Julgamento: 22/06/2004, Publicação no DJ de 06-08-2004)

Observa-se no acórdão acima reproduzido que existe a possibilidade de se estender determinadas prerrogativas fazendárias a pessoas legalmente classificadas como de direito privado, se constatada em suas atividades a predominância do interesse público.

Utilizando-se inversamente o mesmo raciocínio, no julgamento do Recurso Especial n° 83.130–RS, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a exploração de atividade econômica em regime de concorrência, mesmo quando exercida por entidade de direito público (no caso em questão se tratava de autarquia) daria ensejo a sua equiparação a pessoa jurídica de direito privado, sob pena de fraude à lei.

Neste mesmo julgado, também restou expressamente prestigiado o entendimento de que as autarquias devem desempenhar missões caracteristicamente estatais, e a atividade econômica, ainda que eventualmente pudesse ser realizada pelo Estado, não deveria ocorrer em regime de direito público, sendo-lhe negado expressamente o manejo de execução fiscal quando atuante no ramo bancário.

Assim, não se revela absurda a possibilidade de atribuir a pessoas jurídicas de direito público o tratamento próprio daquelas de direito privado, e vice-versa.

No que tange à criação das empresas públicas e sociedades de economia mista, entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado (voltadas ao desempenho de atividades em caráter empresarial), vislumbra-se incontestável a possibilidade de utilização destas pessoas jurídicas para prestação de serviços públicos.

Entre as pessoas jurídicas de direito privado e as pessoas jurídicas de direito público permanecem as empresas públicas e as sociedades de economia mista – uma espécie de “zona cinzenta”, ante suas características inegavelmente híbridas, quando prestadoras de serviços públicos.

Ao tratar do presente tema, o Juiz de Direito Hélio do Valle Pereira considerou que:

“Contudo, quando se tratar de empresas voltadas à realização de serviços públicos (aqui invocável o art. 175 da CF), não se pode negar a elas uma parcela de autoridade pública, que excepciona o regime de direito privado. Em alguma medida, aplicam-se os princípios relativos ao direito público (responsabilidade objetiva, continuidade do serviço, cobrança de tarifas etc)

As empresas públicas e as sociedades de economia mista se inserem, cumpre insistir, na Administração Indireta. Não são entes alheios à estrutura estatal. Bem por isso, são permeáveis a infindáveis princípios comuns ao direito administrativo: ‘a forma é privada, mas o substrato é público’ ”(PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da Fazenda Pública em juízo, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 12)

Também neste sentido, a partir da jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, o Juiz Federal da Segunda Região Iorio S. D´Alessandri Forti chegou à seguinte conclusão:

“Diante da evolução jurisprudencial, abre-se, portanto, possibilidade interpretativa que sujeite ao reexame necessário as sentenças contrárias às empresas públicas, e mesmo sociedades de economia mista, quando prestadoras de serviço público, e desde que fora do regime de concorrência com outras empresas privadas, em razão de sua natureza jurídica equiparável à das autarquias” (FORTI, Iorio Siqueira D´Alessandri. Reexame Necessário, dissertação de pós-graduação em Direito do Estado apresentada à Universidade do Estado do RJ em 2005, não publicada, p.143).

A partir destas considerações, ressaltando-se a importância de se consultar na íntegra o leading case RE 220.906 (Neste mesmo sentido, consultar na íntegra o julgado proferido no RE 407.099), extrai-se uma tendência positiva a admitir a equiparação parcial das empresas públicas e das sociedades de economia mista no que diz respeito a algumas prerrogativas da Fazenda Pública, tudo com o fito de viabilizar ao máximo a melhor prestação dos serviços concedidos em regime de monopólio.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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