Por Marco Antonio Pinto de Faria e Renata Martinez Galdão de Albuquerque
Muito tem se falado e escrito sobre a necessária reforma tributária. O tributo talvez mais abordado é o ICMS, com a discussão sobre unificação de alíquotas e o momento da incidência, se na origem ou no destino. Porém, o lado obscuro e perverso desse tributo, responsável por aproximadamente 30% do total arrecadado, não tem sido sequer mencionado: a substituição tributária do ICMS.
Muito tem se falado das desavenças entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, mas nada tem se falado de quando eles comungam para descabidamente aumentar a arrecadação, tendo como único lesado o contribuinte.
Na década de 70, os governos estaduais, sedentos em arrecadar e inoperantes em coibir as sonegações, engendraram o impensável: o ICMS Substituição Tributária, que consistia em receber o ICMS relativo a toda cadeia produtiva e comercial antecipadamente apenas do fabricante, utilizando-se, para isso, um preço final de venda presumido.
Assim, pegando como exemplo o segmento de cervejas, o fabricante recolhia ICMS sobre um preço presumido e estipulado pelo governo, e o restante da cadeia comercial não tinha como sonegar, pois o imposto já havia sido cobrado na fonte. Como distribuidores, revendedores, atacadistas, bares, adegas, padarias, supermercados, enfim, uma lista extensa de varejistas praticavam alguma sonegação, a nova sistemática trouxe um aumento espantoso na arrecadação dos Estados.
Como a sede de arrecadar é insaciável, e em virtude da praticidade obtida pelo mecanismo da substituição tributária, os Estados passaram a aumentar constantemente o preço presumido, que chegou, no caso de cerveja, a ser fixado à estratosférica alíquota de 240% sobre o de revenda, para apurar a base de cálculo para o ICMS.
Na década de 80, com inflações galopantes, os contribuintes começaram a procurar o Judiciário contra tais abusos e, principalmente, contra tal mecanismo, que tributava a mercadoria sem ela ter circulado, contrariando o que preconiza o seu próprio nome.
Com décadas de atraso, o governo aplacou o seu autoritarismo e introduziu em nossa Constituição a possibilidade da tributação do ICMS por substituição tributária por meio da Emenda Constitucional nº 03/93. Para isso, teve de incluir também em nossa Constituição o direito que assegura a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Em 1998, o Estado de Alagoas impetrou no STF — Supremo Tribunal Federal — a ADI 1851 para não restituir ICMS para as concessionárias de veículos por preços praticados abaixo do presumido, pois tal segmento já tinha uma compensação econômica por ter assinado um Convênio para esse fim.
Em maio de 2002, a perversidade impregnou-se: O STF, ao julgar a ADI 1851, negou a restituição de diferenças às concessionárias de veículos, porém, espontaneamente, estendeu tal decisão para todos os outros produtos tributados pelo ICMS — Substituição Tributária. Sob o pretexto de “não abalar o fundamental mecanismo da substituição tributária”, o STF considerou, resumidamente, que:
“todos os produtos têm seu preço final previamente fixado pelo fabricante ou importador ou tabelados pelo governo.”
“o preço final de venda é previsto antecipadamente com absoluta margem de segurança.”
“apurar diferenças entre o preço final e o presumido seria inviabilizar o instituto da substituição tributária.”
“eventuais diferenças no preço presumido não oneram o contribuinte nem prejudicam o Fisco.”
Parafraseando o eminente ministro Ilmar Galvão, “desnecessária muita agudeza de raciocínio para perceber” que as premissas utilizadas são totalmente indevidas, pois:
nenhum fabricante, importador ou o próprio governo tem como prever ou estipular o preço final de um produto. Quem determina o preço final de qualquer produto é o último contribuinte de uma longa cadeia comercial.
nenhuma margem de segurança existe em previsões, muito menos de preço. Um sorvete é vendido por R$ 0,70 em um supermercado e por R$ 5,00 em um restaurante. Um litro de gasolina é vendido por R$ 1,72 em um posto e, no comércio vizinho por R$ 2,05.
nenhuma margem de segurança existe em previsões, muito menos de preço. Um sorvete é vendido por R$ 0,70 em um supermercado e por R$ 5,00 em um restaurante. Um litro de gasolina é vendido por R$ 1,72 em um posto e, no comércio vizinho por R$ 2,05.
atualmente, o Governo do Estado de São Paulo determinou um preço presumido de R$ 0,98 para uma lata de cerveja Brahma. O comerciante que vende essa mesma lata por efetivos R$ 0,70 não está sendo onerado? E o Fisco não está sendo prejudicado (e a sociedade?) quando permite a venda da mesma cerveja por R$ 8,00 (em restaurantes estrelados), sem qualquer complemento de ICMS?
Aproveitando-se da inusitada decisão do STF, os Estados voltaram rapidamente a praticar o que faziam na década de 80: aumentar violentamente os preços presumidos de todos os produtos tributados pelo ICMS — Substituição Tributária.
Enquanto o PIB nacional teve um declínio de 0,1% no primeiro trimestre desse ano, a arrecadação de ICMS, que deveria ter um comportamento compatível ao PIB, cresceu R$ 4,72 bilhões, sendo o tributo que mais contribuiu para o recorde de 41,23% da nossa carga tributária.
Entre os meses de outubro de 2002 e maio de 2003, o PIB apresentou declínio, como vimos, e os fabricantes de cerveja produziram menos que em períodos anteriores, porém, o Estado de São Paulo elevou o preço presumido da cerveja em 36,90%, enquanto que o Estado de Santa Catarina elevou em 30,50%. Isso porque, não há mais controle, e nenhum ICMS deve ser restituído por determinação do STF.
O Estado do Rio de Janeiro, apenas um mês após a fatídica decisão da ADI 1851, incluiu centenas de produtos de 21 setores diferentes no regime da substituição tributária. Os Estados de São Paulo e de Pernambuco impetraram duas ADIs no STF, pedindo que os efeitos da ADI 1851 retroagissem em 10 anos e que todos os contribuintes devolvessem ICMS desse período aos cofres públicos.
Por tudo isso, só podemos considerar que o julgamento da ADI 1851 foi um daqueles que o ministro Nelson Jobim confessou publicamente ser por “baciada”, ou seja, nenhuma análise criteriosa foi dispensada à tão importante forma de tributação.
E, também, por tudo isso, consideramos que um dos grandes problemas, que poderia ser resolvido com uma séria reforma tributária, nem está sendo questionado ou debatido, que é esse caos instalado pelo STF para o ICMS — Substituição Tributária. Isso porque, é inócua qualquer discussão, por exemplo, sobre unificação de alíquotas, se cada Estado pode estipular quais produtos, e seus respectivos preços presumidos, que serão tributados por essa sistemática de arrecadação, mantendo, assim, a indesejada guerra fiscal e, principalmente, uma permanente elevação da carga tributária de pequenas e médias empresas que, sem alternativa, têm fechado suas portas, com conseqüentes demissões de funcionários.
Por outro lado, consideramos que erros não devem se perpetuar, principalmente sendo bisonhos, e, portanto, passamos a acreditar que a partir do julgamento das ADI 2675, de Pernambuco, e 2777, de São Paulo, o STF pode começar a se redimir, dando a devida atenção à tão delicada sistemática de tributação e, principalmente, ao contribuinte.
Acerca de 6 semanas consecutivas tem-se tentado incluir as ADI 2675 e 2777 para julgamento nas Sessões do Plenário do STF, porém, a pedidos dos Governadores de São Paulo e Pernambuco, os julgamentos dessas ADI foram adiados, por inúmeras vezes, até que no dia 26 de novembro de 2003, deu-se início a este histórico julgamento — histórico porque o mesmo levantou questões até então adormecidas e petrificadas em nossos tribunais, como por exemplo, o efeito vinculante, de um julgamento no STF, bem como, a questão dos “Amici Curiae “.
No julgamento iniciado, os primeiros a votarem foram os ministros relatores Carlos Velloso, da ADI 2675, e Cezar Peluso, da ADI 2777, ambos explicitaram magníficos votos requerendo pela improcedência das supra citadas ADI, com argumentos fortíssimos, como por exemplo, a prática efetuada por estes Estados, denomina-se “CONFISCO”.
O voto do senhor ministro Cezar Peluso durou cerca de 2 horas, o qual foi considerado uma verdadeira aula de direito tributário.
Diante desses dois votos, a tendência destes julgamentos, será pela improcedência das citadas ADI, assim temos esperança e convicção que na semana que vem este assunto esteja pacificado por nossa Corte Suprema, revelando a todos nós que o contribuinte, apesar da infinita fúria arrecadatória do fisco, pode ainda sentir-se protegido por nossa mais respeitada Instância Jurídica.
Marco Antonio Pinto de Faria é presidente do Grupo Skill
Renata Martinez Galdão de Albuquerque é advogada do Grupo Skill