O Estado precisa de reformas. Todos concordam com isso. O problema é como fazê-las, a fim de que não saia “a emenda pior do que o soneto”. As propostas de reforma administrativa apresentadas ao Congresso e que resultaram na Emenda nº 19 orientaram-se pelas “Diretrizes da Reforma do Aparelho do Estado”, o “Livro Branco”, feito pela Câmara de Reforma do Estado. Este documento critica o que chama de “administração pública burocrática” por sua “ineficiência”.
Não obstante, marca sua qualidade fundamental, “a efetividade no controle dos abusos” e alguns de seus princípios orientadores (e.g., a impessoalidade, a profissionalização e a idéia de carreira). É dito que a administração burocrática controla por demais o processo de funcionamento da Administração, tornando-a lenta e ineficiente. Como solução, apresenta a “administração pública gerencial”, cuja estratégia é a definição dos objetivos e o controle a posteriori dos resultados. Parte-se de uma confiança inicial (durante o desenrolar do processo) e realiza-se controle posterior, punindo-se eventuais abusos.
Vale notar que “burocracia” é um termo técnico, mas que adquiriu má fama. Não há administração sem alguma forma de burocracia. O problema não é o nome mas como os procedimentos se realizam. A forma não pode ser o principal, embora seja necessária. O perigo, em nossa opinião, é que se não houver cuidado, a pretexto de se acabar com a chamada “burocracia”, a reforma pode abrir espaço para o nepotismo. Nepotismo é, o Dicionário ensina, “protecionismo”, “favoritismo” (MEC-FAE, RJ, 1992). Significa conceder o governante, a parentes, amigos ou correligionários, qualquer favorecimento.
A prática, inobstante imoral, ilegal e receber grande repulsa popular, ainda assola o serviço público nos três Poderes da República. O que o povo quer é um país em que qualquer um, conheça ou não o governante, possa ingressar no serviço público, realizar um serviço ou obra, tudo sem favores ou predileções. Devem valer apenas o mérito e a igualdade de todos perante a lei. Nisso, aliás, o STF dá o exemplo, pois proibiu a nomeação de parentes dos seus ministros para os cargos daquele Tribunal.
Analisando a proposta de reforma administrativa, duvidamos inicialmente da propalada ineficiência do sistema constitucional em vigor e que foi alterado pela EC 19. Parece que a falha não é de mérito mas de execução. Provavelmente a Constituição não esteja funcionando porque não é corretamente cumprida. Ora, não é porque meu automóvel não funciona que desistirei desse meio de transporte. Quem sabe a causa não é falta de gasolina?
Muitos dos problemas hoje identificados no serviço público são frutos das malfadadas reformas dos últimos governos, da desvalorização do servidor público (moral e remuneratória), da falta de investimento em recursos humanos, do nepotismo, do uso da máquina administrativa para fins eleitoreiros etc. Se esses males não forem corrigidos, nenhum sistema administrativo logrará êxito. Ainda na questão cultural e histórica, vale lembrar que, lamentavelmente, não se vê suficiente controle posterior nos casos de abusos que a imprensa noticia. Será que isso vai mudar com a simples adoção da “administração gerencial”?
Vamos citar um exemplo. Muitos argumentam que as licitações são prejudiciais à eficiência. Se há falhas, elas não são da Constituição. O art. 37, XXI, da Carta Magna quer, em essência, é que haja “igualdade de condições entre todos os concorrentes”. Isto para assegurar o princípio constitucional da impessoalidade (art. 37, caput, CF), que diz que a Administração não deve buscar o interesse pessoal do governante ou de terceiros (para prejudicar ou beneficiar quem quer que seja) mas unicamente o interesse público. Esse princípio deriva da própria idéia de República (tudo é de todos, o país não é de um grupo ou outro de pessoas, ou daqueles que estão momentaneamente no poder). Por tudo isso é que o administrador não pode escolher a seu bel-prazer quem vai realizar uma obra ou ingressar no serviço público. Quando precisar de algo, deve dizer a todos o que quer para, então, escolher, dentre os interessados, a melhor proposta. Para isso serve a licitação. Não fazê-la é permitir que o administrador contrate quem quiser e, assim, pode preferir contratar só parentes ou amigos.
A inclusão da eficiência de forma expressa no caput do art. 37 da Constituição, como um dos princípios aos quais deve a Administração Pública se curvar, além de ser tecnicamente criticável, em nada assegura que ela venha a ocorrer (tal como os demais princípios ainda estão longe de serem sólida realidade).
Pois bem, a Constituição exige a licitação mas seu excessivo formalismo é culpa da Lei nº 8.666/93, que é lei ordinária e para ser mudada não carece de emenda constitucional. Assim, o remédio (Emenda da Constituição) nada tem a ver com a doença (o excessivo formalismo da Lei nº 8.666/93). Com o remédio errado, ao invés de curar, o doente piora.
Veja-se que a preocupação nossa, como cidadãos, é a de que sejam respeitados os princípios da isonomia (igualdade) e da impessoalidade, ambos constitucionais e imutáveis (arts. 5º e 37, CF).
Quando se prega a administração dita gerencial, o que se pretende é a eliminação de controle durante o desenrolar da atividade administrativa, satisfazendo-se apenas com os resultados. Tal idéia pode funcionar bem na iniciativa privada, pois lá o empreendimento é particular. Se o dono de uma mercearia quiser contratar seu filho para ser gerente, nada há de errado. Basta que seu filho seja um administrador razoável e que o comércio dê lucro, que os fins sejam atingidos. Se for assim, tudo estará bem, inclusive para os empregados da mercearia, que não perderão seu emprego.
Acontece que a administração de um país é diferente. Não se quer apenas o lucro, mas a igualdade de oportunidade para todos. O povo não é como que um empregado, que se limita a torcer para que a escolha do patrão seja correta e os resultados sejam positivos. Numa democracia o povo é o patrão, é ele quem escolhe e pode ser escolhido para administrar o que é seu. Assim, na Administração Pública o povo não tem interesse apenas nos resultados, mas tem também o direito de participar da administração (democracia participativa também é isso).
Vejam bem: se existirem duas pessoas querendo fornecer alimentos para o governo, e desde que as duas ofereçam preços de mercado, haverá bom resultado final qualquer que seja a escolhida. Se dois cidadãos quiserem ser servidores públicos, e os dois forem capacitados, a escolha não influenciará no resultado. Ocorre que se existir liberdade absoluta para o governante, ele comprará alimentos vendidos pelos amigos e porá seu filho ou primo no cargo público. Salvo se houver superfaturamento ou o filho for um incompetente, o mero controle de resultados aprovará tudo.
Mas, e é isso que não se aborda suficientemente, qualquer cidadão tem o direito de concorrer ao cargo público, de ser melhor num concurso público que os parentes do governante; qualquer mercearia ou empreiteira tem o direito de concorrer, em igualdade de condições, com a empresa dos amigos do governante. Assim, na Administração Pública, ao contrário do que ocorre na iniciativa privada, os meios também interessam, também devem ser objeto de fiscalização e de normas. O povo tem o direito, numa democracia de verdade, de participar do governo, e não apenas de esperar os resultados dele.
Por isso é que criticamos a reforma administrativa nesse particular. A reforma não é clara no sentido de assegurar que o direito de igualdade entre os cidadãos será respeitado na hora do ingresso em cargos públicos e de se fazerem contratos de serviços ou obras com o governo. Do jeito que está, ao se querer controle apenas dos resultados, está aberta a porta para o nepotismo, câncer que a nação ainda precisa extirpar. No momento em que o povo quer acabar com o protecionismo aos parentes e amigos dos governantes, a proposta – do jeito que está — caminha na contramão da democracia.
O concurso público e a licitação podem dar algum trabalho mas asseguram a igualdade dos cidadãos e o interesse público. São instrumentos de combate ao nepotismo e ao uso da coisa pública para beneficiar os apadrinhados. Temos certeza de que o que é preciso é simplificar a lei de licitações e se editar lei regulamentando o concurso público. Só assim, estará no cargo público o mais competente e contratando com a Administração aquele que oferecer a melhor proposta.
A escolha de pessoas por mero currículo ou indicação é uma porta aberta para a imoralidade no serviço público e uma afronta a todos os que estudam. É um absurdo que órgãos e agências deixem de fazer concursos públicos regulares, a tempo e a hora, para refugiarem-se nos caminhos obscuros das seleções por currículo. É preciso que a população e os governantes atentem para o fato de que o concurso público e a licitação são grandes conquistas da democracia e da igualdade de todos perante o Estado. Conquistas que não podem ser perdidas.
Assim, em conclusão, manifestamos nossa preocupação cívica com os rumos que vêm sendo tomados pela chamada reforma administrativa, torcendo para que a discussão e o debate impeçam que dela advenham graves prejuízos para o desenvolvimento da democracia
William Doulgas é juiz federal, professor universitário, mestre em Direito, pós-graduado em Políticas Públicas e Governo e autor de diversos livros e artigos.