Autor: Luciano Bushatsky Andrade de Alencar (*)
A legislação brasileira que regula as atividades de comércio exterior tem por base legal o Decreto-Lei 1.455/76 e o Decreto-Lei 37/66, ambos criados no decorrer da ditadura, refletindo o poder concentrado da administração, bem como o rigor e a inobservância aos direitos fundamentais, o que era comum à época.
Apesar do legislador ter buscado, com o passar dos anos, adaptar a legislação ao direito vigente, resquícios do período ditatorial remanescem, como, por exemplo, o procedimento para a aplicação da pena de perdimento de mercadorias.
Tal pena, importa dizer, vigora não só no Brasil, mas em todos os países que hoje compõem a Organização Mundial de Comércio, e nada mais é senão um método para eliminar o comércio de mercadorias contrafeitas, que causem danos à saúde, que sejam impróprias para o consumo, ou mesmo que sejam utilizadas para atividades ilícitas.
No entanto, a legislação brasileira, ao contrário das demais, prevê um processo que não observa o duplo grau de jurisdição, e que não permite o exercício da ampla defesa pelo suposto infrator, especialmente pelo escasso prazo para recurso, que é de 20 dias, ao contrário do processo administrativo ordinário, bem como pelo fato do julgamento se dar no mesmo órgão do qual se originou o auto de infração.
Em resumo, o procedimento no Brasil se dá da seguinte forma: a) mercadoria retida; b) procedimento de fiscalização iniciado; c) lavrado auto de infração para aplicação da pena de perdimento; d) particular intimado para apresentar defesa em 20 dias; e) defesa apresentada; f) processo julgado por autoridade integrante da inspetoria da alfândega da qual se originou o auto de infração.
Ou seja, a depender da ótica pela qual a situação pode ser abordada, sequer a imparcialidade do julgador será observada na prática. Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal, através de reiteradas decisões, convalidou o referido procedimento, inclusive se posicionando pela sua plena legalidade.
Em âmbito global, a Convenção de Quioto Revisada, que tem por objetivo formalizar um intercâmbio de informações entre as aduanas, bem como unificar os procedimentos, prevê a adoção de dupla instância para todos os processos administrativos para aplicação de penalidades aduaneiras, inclusive de perdimento.
Reza a referida Convenção que a legislação nacional deverá proporcionar um a apresentação de uma defesa inicial, além de, em caso de resposta negativa, permitir que o particular interponha um recurso dirigido a uma autoridade independente, sem que esse duplo grau vede que, ao final, o particular ainda possa recorrer a uma autoridade judicial.[1]
Não é diferente o que prevê o Código Aduaneiro do Mercosul, que apesar de ter tido ampla e intensa participação da aduana brasileira em sua elaboração, ainda não foi objeto de adesão formal por parte do Brasil, não tendo sido, portanto, internalizado para a legislação aduaneira brasileira.
O Código Aduaneiro do Mercosul, importa destacar, prevê, em seu artigo 175, que: “A pessoa que considere seus direitos prejudicados por aplicação da legislação aduaneira, pode recorrer sempre que sejam afetados em forma direta, pessoal e legítima”.
Ainda o diploma comunitário, em seu artigo 176, prevê o primeiro recurso para uma autoridade aduaneira, e o segundo para uma autoridade superior, privilegiando o duplo grau de jurisdição e a ampla defesa do potencial infrator.
De igual modo, a legislação aduaneira dos Estados Unidos da América, que mais que qualquer outro país visa a proteção de suas fronteiras, dado o marco de terror gerado pelo fatídico 11 de setembro de 2001, também prevê o duplo grau de jurisdição, especialmente no caso de aplicação da pena de perdimento[2].
Como se vê, a única similaridade do atual sistema normativo aduaneiro brasileiro é o fato deste, por força constitucional, possibilitar a revisão das decisões administrativas pelo Poder Judiciário, que é um direito fundamental garantido pela Constituição de 1988 em seu artigo 5º, XXXV.
A discrepância entre o procedimento para aplicação da pena de perdimento e o processo administrativo salta aos olhos, em especial quando comparada a legislação que fundamenta a aplicação da sanção máxima aduaneira frente à Lei 9.784/99, que em seu artigo 56 prevê o cabimento de recurso em face de decisões administrativas, e o Decreto 70.235/72, que prevê em seu artigo 33 o cabimento do recurso voluntário, com efeito suspensivo, em face de decisão que negar, total ou parcialmente, a impugnação do contribuinte.
Não há como, nos dias atuais, se defender a existência de um procedimento próprio para a imposição da penalidade de perdimento de mercadorias na seara aduaneira, como ainda remanesce no Brasil, vez que vários princípios restarão de pronto ofendidos, como a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal.
As palavras proferidas pelo ministro Joaquim Barbosa, em voto proferido na ADI 1.976/DF, consagram a necessidade de se observar o duplo grau de jurisdição para que haja uma plena efetivação dos direitos fundamentais dos particulares frente à administração: “Da necessidade de se proporcionar um procedimento administrativo adequado surge o imperativo de se consagrar a possibilidade de se recorrer dentro do próprio procedimento”.
A modernização em nada prejudicará o exercício da atividade fiscalizatória da Aduana, que continuará exercendo, na sua plenitude, o seu poder-dever de fiscalizar a entrada e saída de mercadorias do território brasileiro, mas possibilitará aos particulares um julgamento justo, com o exercício de todos os direitos a ele garantidos constitucionalmente.
Autor: Luciano Bushatsky Andrade de Alencar é advogado aduaneiro, sócio da Severien Andrade Alencar Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pelo IBET, mestrando em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas, membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da FGV-SP.