Autores: Daniel Giotti de Paula e Allan Titonelli Nunes (*)
O sistema jurídico nacional vem passando por uma agenda reformista que inclui um novo Código de Processo Civil, o qual teve como norte conferir agilidade e maior efetividade à prestação jurisdicional. Da mesma forma, há uma preocupação crescente com mecanismos para aperfeiçoar o combate à corrupção e à sonegação, em tempos de debates sobre “lava jato”, zelotes e Panamá Papers, entre outros escândalos.
A impossibilidade de a forma dar conta de todos os problemas jurídicos torna-se um dado da realidade. Repensar as estruturas sociais, entre elas as jurídicas, virou a tônica da atualidade. Tal tarefa, porém, não pode prescindir da análise de temas mais práticos, como o preço da tributação para o país — o chamado “custo Brasil” —, algo que deve ser compatibilizado com dados que mostram, de um lado, o desperdício de receitas públicas pela via da corrupção e, de outro, a perda de arrecadação — receitas públicas não concretizadas ou postergadas — gerada pela sonegação ou ineficiência de recuperação dos créditos tributários e não tributários de dívida ativa.
Nesse pormenor, interessante revelar que, segundo estudos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a corrupção tem um custo médio anual entre 1,5% a 2,6% do PIB, o que corresponderia, aproximadamente, segundo dados atuais, entre 79 bilhões e R$ 137 bilhões[1], enquanto a sonegação resulta em perdas de 10,1% do PIB anual, o que equivaleria a R$ 518,2 bilhões levando em conta o PIB de 2014, segundo estudos do Sinprofaz[2].
Quanto à ineficácia dos métodos atuais de cobrança (Processo Administrativo Fiscal e Execução Fiscal), estudos do Ipea, intitulados Custo unitário do processo de execução fiscal na Justiça Federal e o Custo e tempo do processo de execução fiscal promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), ilustram o fato.
Para se efetivar uma citação, demora-se, em média, 1.523 dias. Concretizar os atos de persecução do patrimônio do devedor demanda mais 569 dias na etapa de penhora e 722 dias na finalização do leilão. A soma desses períodos perfaz um total de cinco anos e dois meses. No plano dos fatos, esse lapso temporal permite que o mau devedor desfaça de seus bens no decorrer do processo, inviabilizando a recuperação eficaz do crédito[3][4].
É certo que as causas para esse colapso sistêmico decorrem da legislação ultrapassada e da ineficiência inerente à prestação jurisdicional. A respeito da prestação jurisdicional, o relatório Justiça em Números 2015, divulgado anualmente pelo CNJ e que nesse caso tomou como ano-base 2014, é bem elucidativo, informando que foram baixados 28,50 milhões de processos de um total de 70,83 milhões no acervo, resultando em uma taxa de congestionamento de 71,4%, de modo que, a cada cem processos aguardando julgamento, apenas 28,6 foram solucionados. Para complicar a já caótica situação, os processos em fase de execução continuam sendo um dos principais entraves do Poder Judiciário, responsáveis por 51% do total[5].
Segundo Bolívar Lamounier, a ineficiência do sistema de Justiça acaba gerando uma impunidade maior, uma vez que “um sistema deficiente de aplicação das leis (law enforcement) é, sem dúvida, o maior dos malefícios, pois deixa o campo aberto para a transgressão se alastrar e estimula a impunidade, retroalimentando a situação inicial[6]“. Por essa razão, enquanto não houver uma mudança de tratamento na forma de recuperação do crédito tributário, tendo em vista a ineficiência contumaz do Judiciário, que passe por mecanismo extrajurídicos de cobrança, será muito difícil alterar essa dinâmica.
Ocorre que a ineficiência do sistema vigente não se resume à prestação jurisdicional, mas afeta identicamente a tramitação do processo administrativo fiscal. No Brasil adota-se um modelo de contencioso fiscal hierarquizado, muito parecido com a estrutura geral do Judiciário. No plano federal, o Decreto 70.235/72 regulamenta esse processamento, estabelecendo que haverá duas instâncias e outra especial. O julgamento em primeira instância é de atribuição das delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJs); de segunda instância, do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf); e de instância especial, pelo ministro da Fazenda.
Essa prática acabou se disseminando pela demora da tramitação do processo administrativo fiscal, que, embora seja mais rápido que a via judicial, ainda assim apresenta-se moroso. Estudos do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas, coordenados pelo professor Eurico Marcos Diniz de Santi, indicam que o tempo médio de duração do processo administrativo fiscal federal é de cinco anos ou 60 meses. Constatando, da mesma forma, que, quanto maior o valor do débito, discutido maior a mora na tramitação, podendo chegar a sete anos[7].
Somando a média de duração do processo administrativo federal (cinco anos) com a média de tramitação do processo de execução fiscal na Justiça Federal (oito anos, dois meses e nove dias) chega-se a um tempo total de mais de 13 anos. Isso sem registrar que, se o processo de execução fiscal passar por todas as suas etapas, poderá durar 16 anos, que se somados ao tempo máximo de tramitação do processo administrativo federal (sete anos), resultará um tempo total de 23 anos[8].
Não se pode naturalizar a demora no deslinde de questões tributárias. Assim, soa claro que se perde muito tempo debatendo o mérito de um lançamento ou auto de infração. Sem contar que a hierarquização da tramitação administrativa tem se mostrado contraproducente, na medida em que o acesso à via judicial estará resguardado no final.
Essa superposição de instância pode ser diminuída, caso se opte, afinal, pela instituição de arbitragem nas relações tributárias no Brasil. Não se desconhece a resistência ao instituto, uma resistência hoje mais cultural do que propriamente normativa, já que a Lei Federal 13.129 de 2015 estabeleceu mudanças na Lei Federal 9.307, permitindo especificamente arbitragem pela administração pública direta e indireta na resolução de conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis (artigo 1º, parágrafo primeiro da LF 9.307), além de deixar claro que só se admite a arbitragem de direito (artigo 2º, parágrafo terceiro, da LF 9.307).
Para superar o entrave cultural, tomam-se de empréstimo os ensinamentos de Gustavo Binnebojm, que, pensando especificamente no instituto do poder de polícia, traz insight para se repensar todo o Direito Público. Para o autor, vivenciamos um tempo cuja necessidade exige dois giros nas relações jurídicas: um giro democrático-constitucional; e, outro, de cunho pragmático. Tem-se o primeiro como a influência de conceitos constitucionais na releitura de institutos jurídicos; o segundo, como a influência da ideia de soluções eficientes para problemas práticos[9].
Não há dúvida de que o giro democrático-constitucional já se deu pela Lei Federal 13.129 de 2015 e pelo novo CPC, mas o giro pragmático esperado anseia por superar o entrave cultural, que coloca sob suspeita qualquer tentativa de mudança do processo fiscal, bem como o uso de outros métodos adequados de solução de conflitos. De outro lado, se é verdade que a relevância pública apriorística nas questões de tributação deve indicar parcimônia no uso do instituto da arbitragem, a baixa arrecadação já aponta a necessidade de melhorar o arranjo institucional do sistema de cobrança.
Como se sabe, o novo diploma processual incorpora mecanismos adequados de solução de conflito, pensando-se na Justiça como um sistemamultiportas[10], pressupondo-se que existem conflitos de interesse diversos e, para cada um deles, existe um método mais adequado de resolução. Nesse cálculo, entra o giro pragmático, no sentido de se buscar soluções efetivas para problemas práticos. Entre esses mecanismos, o novo CPC deu ênfase à arbitragem, caracterizada pela liberdade de escolha, sigilo, segurança, tecnicidade, rapidez e neutralidade.
Quanto a ser a arbitragem um canal por favoritismos, somos da opinião de que esse é um pré-conceito sem lastro teórico e empírico, ou, se o é, seria assim em qualquer parte do mundo, pois, mais do que diferenças antropológicas ou sociais, o que faz os seres humanos agirem corretamente é a confiança no sistema social e os arranjos institucionais criados[11]. Ademais, o Brasil se encontra em estágio civilizatório de combate à corrupção, com as instituições funcionando cada vez melhor.
Parece-nos, ainda, que o receio de a arbitragem se transformar em um canal de arbitrariedade e iniquidade foi diminuído com o novo CPC, ao estabelecer, no artigo 927, uma série de precedentes vinculantes, ao ter realçado a necessidade de decisões devidamente fundamentadas — artigo 489, CPC —, e ter previsto mecanismos de distinção e superação de precedentes. Não se imagina que os árbitros e tribunais arbitrais possam tomar decisões sem a devida fundamentação — até porque a arbitragem é de direito —, sem respeitar os precedentes, salvo se forem utilizadas as técnicas da distinção.
Digno de nota ainda, na linha de Francisco Nicolau Domingos, apontar que uma das grandes vantagens da arbitragem é congregar árbitros com sólida experiência profissional e com formação em áreas como economia, gestão e contabilidade[12]. Tal opção legislativa confere ao poder judicial a capacidade para responder às complexas questões de natureza econômica que a aplicação da lei tributária hoje exige. No caso brasileiro, essa expertisee heterogeneidade dos árbitros pode ajudar em problemas correntes, como a definição de quais insumos geram creditamento na sistemática da não cumulatividade de PIS, Cofins e IPI, em processos industriais e prestação de serviços complexos.
Ainda se pergunta: como seria um tribunal arbitral de resolução de matérias tributárias? Pensando, por ora, apenas no âmbito federal, e sem acreditar que seja esse o modelo definitivo, pode-se conceber o estabelecimento de um sistema multiportas para o contencioso tributário.
Assim, o Carf seria transformado ou substituído por um autêntico tribunal arbitral, onde as DRJs continuariam a funcionar como instâncias de revisão dos autos de infração e lançamento, e, caso o contribuinte ficasse insatisfeito com a decisão, optaria entre ir para a instância arbitral ou, diretamente, para a instância judicial.
Por esse modelo, o uso da via judicial seria excepcionalíssimo, inclusive para a própria Fazenda Pública, que aceitaria a decisão daquele tribunal, para o qual também indica árbitros e, para cada caso ou classe de casos, seleciona julgadores, assim como os contribuintes.
Frise-se que, no curso da arbitragem, sobrevindo-se questão alusiva a direito disponível, como a constitucionalidade de um ato normativo de instituição ou majoração de tributo, o árbitro ou tribunal arbitral deve submeter a questão ao Judiciário, suspendendo-se o procedimento arbitral até que seja decidida a questão prejudicial[13].
O velho brocardo de que justiça tardia não é justiça se aplica à questão, pois retardar a recuperação do crédito público por anos, talvez dezenas deles, implica retirar a possibilidade de concretização de direitos fundamentais e políticas públicas com os tributos que seriam arrecadados, sendo preciso encontrar opções para romper com o modelo atual existente.
Autores: Daniel Giotti de Paula é procurador da Fazenda Nacional, doutorando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento da Uerj e pesquisador.
Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional, especialista em Administração Pública pela FGV e em Direito Tributário pela Unisul, ex-presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.