Autor: Manoel Felipe Rêgo Brandão (*)
Após 32 anos dedicados quase integralmente à consultoria jurídica, com raríssimas incursões no contencioso, detenho apenas conhecimentos elementares do direito processual. Não obstante, tomo a ousadia de suscitar considerações pontuais sobre o processo administrativo disciplinar regido pela Lei 8.112, de 11 de Dezembro de 1990, e, subsidiariamente, pela Lei 9.784, de 29 de Janeiro de 1999, muito mais para provocar o debate do que para oferecer uma opinião abalizada que efetivamente não possuo.
A ausência de limites materiais e temporais nos atos instauradores de processos disciplinares talvez seja uma das poucas questões que recebe desaprovação unânime na boa doutrina administrativista. Sem os parâmetros balizadores de sua atuação, as comissões promovem violações descabidas da vida privada e funcional do servidor público. Investigam todo e qualquer fato, não importando se tem ou não correlação com o objeto do processo nem o tempo em que ocorreu. Tornam-se, assim, usurpadores do domínio da vida do investigado sob o silêncio conivente das autoridades superiores que se tornam sócias indiretas do assenhoramento indevido.
Nesse particular, não há como deixar de reconhecer a parcela de responsabilidade do Judiciário pela regressão do processo disciplinar ao nível próximo do processo inquisitorial. A partir de 2002, o Superior Tribunal de Justiça mudou a sua jurisprudência para afirmar a inexistência de nulidade do ato que instaura processo disciplinar sem especificar os fatos a serem investigados. Entendeu o tribunal que a descrição minuciosa deverá ser feita apenas quando do eventual indiciamento, após a fase instrutória (MS 6861/DF). Com base nesse entendimento, disseminou-se na Administração Pública a convicção, de honestidade intelectual duvidosa, de que é possível devassar a vida do servidor sem prévia descrição mínima dos fatos a serem apurados. O STJ não afirmou tal disparate em nenhum dos seus julgados.
A propósito da violação da vida do administrado para bisbilhotar aleatoriamente fatos em busca de eventuais irregularidades é asséptico reler trecho do voto do ministro Celso de Mello no Mandado de Segurança 23.851, que embora trate de quebra de sigilo fiscal aplica-se inteiramente ao processo disciplinar sem justa causa prévia e minimamente definida:
“A ruptura da esfera de intimidade de qualquer pessoa – quando ausente a hipótese configuradora de causa provável – revela-se incompatível com o modelo consagrado na Constituição da República, pois a quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público ou por seus agentes. Não fosse assim, a quebra de sigilo converter-se-ia, ilegitimamente, em instrumento de busca generalizada, que daria ao Estado – não obstante a ausência de quaisquer indícios concretos – o poder de vasculhar registros sigilosos alheios, em ordem a viabilizar, mediante a ilícita utilização do procedimento de devassa indiscriminada (que nem mesmo o Judiciário pode ordenar), o acesso a dados supostamente impregnados de relevo jurídico-probatório, em função dos elementos informativos que viessem a ser eventualmente descobertos”.
O princípio da estabilidade processual exige que o investigado conheça minimamente, desde o início, o raio da investigação, sem o que haverá apenas um simulacro de processo legal e uma defesa capenga. Mesmo quando a autoridade optar pela motivação emprestada de algum outro ato (motivação aliunde ou per relationem), impõe-se que informe se adota total ou parcialmente aquela motivação. O indolente “manifesto-me de acordo com …” pode ser suportado em despachos de rotina, não na instauração de um processo disciplinar, com todas as graves consequências que dele podem advir.
Preocupantes também as decisões judiciais que se recusam a corrigir ilegalidades sob o fundamento de não substituir a decisão administrativa sem que haja prova inequívoca de desrespeito ao devido processo legal ou algum outro vício de grave proporção. O STF já assentou que a apreciação pelo Judiciário do ato administrativo discricionário tido por ilegal e abusivo não ofende o princípio da separação dos poderes. Todavia, a tal prova inequívoca tem servido, quase sempre e lamentavelmente, de anteparo a justificar a negativa da tutela jurisdicional com a urgência que a realidade exige.
A par de tudo, parecer haver uma cultura perversa e disseminada entre julgadores brasileiros de que o servidor investigado é, por excelência, um culpado a provar sua inocência. Cultura que se traduz na vontade pródiga para conceder medidas restritivas de direitos e na avareza visível quanto aos seus pleitos do investigado para afastar medidas abusivas e ilegais, às vezes criminosas, das comissões inquisitoriais disciplinares. É dar uma olhada na jurisprudência e confirmar.
Outro grave vício dos feitos disciplinares diz respeito a dirigentes de órgãos de controle e de fiscalização que se recusam a adotar providências contra atos manifestamente ilegais em nome da autonomia absoluta das comissões disciplinares. A autonomia é inquestionável, mas não é autorização para o cometimento de ilícitos. Descumprida a lei, os atos podem e devem ser anulados, notadamente se necessário para afastar imediatamente riscos de danos irreversíveis.
Uma vez exercitado o direito de petição pelo administrado, a Administração Pública tem o dever de apreciar o pedido (Lei 9.784/99, artigo 48). Se a autoridade instauradora não detém tal competência, que o pleito seja submetido à autoridade imediatamente superior, inclusive, se for o caso, ao ministro de Estado a que esteja subordinado o órgão instaurador. Com efeito, não existe ato administrativo ilegal insusceptível de anulação pela própria Administração. São possíveis fatos do mundo real, decorrentes de atos ilegais, que se tornem imutáveis ou irreversíveis por diversas razões. Ainda assim, o ato ilegal pode e deve ser anulado pela Administração Pública, a qualquer tempo, como determinam o artigo 53 da Lei 9.784/1999 e o artigo 114 da Lei 8.112/1990. Exigir que a vítima, sempre e a todo instante, recorra ao Judiciário para anular ilegalidades não encontra guarida constitucional, especialmente pela ofensa ao princípio da eficiência.
Ademais, o princípio da legalidade insculpido no artigo 37 da Constituição da República é absoluto para a Administração Pública. Administrar é aplicar a lei, ensinou o insuperável Seabra Fagundes. Os demais princípios constitucionais podem até admitir algum grau de subjetividade — ainda que haja riscos de excessos —, mas o princípio da legalidade não. Só existe uma vontade, a da lei. Só existe uma subjetividade, a do legislador. Se a lei for desrespeitada, impõe-se ação saneadora imediata da autoridade administrativa, independentemente de haver ou não previsão expressa na legislação.
Outro tema preocupante é a banalização da quebra do sigilo fiscal do investigado. O inciso II do § 1º do artigo 198 do Código Tributário Nacional efetivamente autorizou solicitações administrativas de informações fiscais relativas ao sujeito passivo investigado em processo regularmente instaurado, todavia, tais atos devem: i) conter os requisitos de validade dos atos administrativos e todos os atributos do próprio dispositivo do CTN; e ii) serem precedidas de motivação e de fundamentação, fática e jurídica, como exige o artigo 50, caput, da Lei 9.784/1999.
Tive a honra de testemunhar a elaboração do anteprojeto de lei que resultou na Lei Complementar 104/2001 e que acrescentou o inciso II ao § 1º do artigo 198 do CTN. Posso assegurar, com absoluta honestidade intelectual, que em nenhum momento se pensou em autorizar a solicitação, por autoridade administrativa, de informações de terceiro que não fosse exatamente o sujeito ativo investigado em processo disciplinar regularmente instaurado.
Obviamente os hermeneutas dirão que a vontade ou a intenção do elaborador da norma não tem valor jurídico nenhum, importando tão somente o que restou estabelecido pelo legislador no texto da lei. É verdade. Nesse caso, porém, não há nenhum indício de que o legislador tenha-se afastado do mandamento proposto no texto por ele adotado e positivado. Pelo contrário, a clareza da norma dispensa e repudia interpretações alargadas e extravagantes.
Ao tratar dos pedidos de autoridade administrativa, o legislador utilizou a expressão solicitações propositadamente porque tais atos são desprovidos de força coercitiva, sendo da competência irrenunciável da autoridade fiscal examinar a sua legalidade para deferi-los ou não. Ausentes os pressupostos do inciso II do § 1º do artigo 198 do CTN e os requisitos de validade do ato administrativo — motivação e fundamentação —, a autoridade fiscal tem o dever-poder de indeferir a solicitação.
Ademais, as solicitações de que trata o inciso II, do § 1º do artigo 198 do CTN são atos administrativos capazes de resultar e quase sempre resultam em restrição de direitos. Assim, deverão trazer motivação e fundamentação fático-jurídica como impõe o artigo 50 da Lei 9.874/1999, para atos dessa natureza. E a motivação há ser explícita, clara e congruente como exige o § 1º do mesmo artigo 50.
No que diz respeito à quebra do sigilo fiscal, sem ordem judicial, de pessoa estranha ao processo disciplinar, seja física ou jurídica, trata-se de ato que traduz violação expressamente vedada pelo artigo 198, caput, do CTN. E também caracteriza a violação funcional tipificada no artigo 325 do Código Penal. Indiscutivelmente, o servidor público que solicita e obtém ilegalmente informação que só poderia ser acessada por meio de ordem judicial é coautor ou partícipe do crime de violação do sigilo funcional praticado pelo servidor do órgão fazendário.
Toda e qualquer informação fiscal sigilosa estranha ao sujeito passivoinvestigado somente poderá ser acessada por requisições judiciais (CTN, artigo 198, § 1º, I). E tais requisições obviamente deverão estar precedidas de decisão com sólida fundamentação como determina a Constituição da República, no artigo 93, IX, e o Código de Processo Civil, que repercutiu o mandamento constitucional no artigo 11, ao tratar da fundamentação da decisão judicial, seja interlocutória, sentença ou acórdão. Aliás, conforme o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que de tão sólido e perene faria jus ao título de ‘jurisprudência pétrea’, a decisão judicial há de ser sempre robustamente fundamentada sob pena de nulidade.
Digno de crítica também o fato de comissários, na posse de informações fiscais, obtidas legal ou ilegalmente, passarem a achacar pessoas do ciclo de relações pessoais, familiares e profissionais do investigado, absolutamente estranhas ao objeto do processo, exigindo, em ameaçadores papéis com o brasão da República, que adotem essa ou aquela providência, no lapso de tempo por eles determinado. Fazem, assim, uso indevido da imagem e da autoridade do Poder Público para intimidar o cidadão comum. Conduta que veste como luva o crime previsto no artigo 4º, h, da Lei 4.898/1964: abuso de autoridade.
Aproveitar-se da imagem institucional do Poder Público para coagir pessoas que, notoriamente, nada têm a ver com o objeto da investigação também constitui violação dos deveres de legalidade e de moralidade, caracterizadora da improbidade administrativa de que trata o artigo 11, caput, da Lei 8.429/1992.
Outro problema são os casos de comissões que atuam abrigadas em instalações das Corregedorias, de sorte que antes, durante e no curso dos procedimentos mantém uma relação promíscua de amizade e subordinação com as autoridades instauradoras. Óbvia e naturalmente não há como impedir consultas, bênçãos a procedimentos e medidas adotados, em situações absolutamente impróprias ao processo isento e imparcial.
A indicação de servidores para compor comissões disciplinares é outra questão problemática. Por se tratar de uma tarefa árdua e complexa, recomendável seria a escolha recair sobre servidores dotados de sólido conhecimento, honestidade, boa-fé, equilíbrio psicológico etc. Não obstante, os chefes normalmente não liberam seus melhores quadros e indicam aqueles cuja ausência do trabalho será menos sentida. Assim, a escolha recai sobre os quadros menos qualificados. Não é incomum identificar-se indivíduos com notórios transtornos de comportamento e de personalidade conduzindo processos disciplinares O recomendável seria que tais servidores fossem previamente submetidos a teste psicotécnicos.
Autor: Manoel Felipe Rêgo Brandão é procurador da Fazenda Nacional.