Mesmo nas condições degradantes em que se encontra o serviço médico da área pública de saúde, com o sucateamento da estrutura física das unidades hospitalares e dos aparelhos básicos de todo o Sistema, como assim vem denunciando a grande mídia através de noticiários televisivos e de matérias jornalísticas que a todos nos indignam, diante do descaso e da forma desidiosa que o estado vem cumprindo esse múnus de primordial importância para as pessoas menos favorecidas da sociedade, e também porque aos profissionais da área médica não lhes são oferecidos os equipamentos e os insumos — medicamentos de primeiros socorros — necessários ao cumprimento de suas atividades laborais básicas, fomos favoráveis ao programa “Mais Médicos para o Brasil”, implantado pelo Governo Federal, como moderno ato de gestão administrativa “para diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de reduzir as desigualdades na área de saúde”, ex vi do inciso I, do artigo 1º, da Medida Provisória 621, de 08 de julho de 2013.
Esse foi o grande motivo ensejador desse programa. Portanto, sob o plano da gestão pública, nada poderia existir em desabono dessa urgente prática administrativa, com a vantagem ainda de abrandar, de logo, a degradação humana que hoje é vivenciada nos hospitais públicos, com a imprensa, inclusive, nos seus telejornais diários, nos transmitindo imagens com pacientes jogados nas macas de ambulância ou amontoados nos pisos dos corredores das precárias Unidades de Saúde e sem o devido atendimento profissional médico, como se aqui vivêssemos, mesmo a despeito da normalidade política interna e sem qualquer beligerância com os países vizinhos, uma verdadeira guerra em estilo medieval.
A análise das causas, razões e motivos para a ocorrência dessa desordem na saúde pública aqui não cabe, mesmo porque não somos especialistas da área e, por isso, correríamos o risco de leviandades ou de cometer equívocos que não gostaríamos.
Sabemos, por outro lado, que no passado essa situação calamitosa fora atribuída a um ”desmonte” proposital do governo neoliberal, para abrir as portas do serviço médico ao mercado privado dos “planos de saúde”.
O certo é que, depois do transcurso de quase uma década sobre a gestão de um governo que se propôs corrigi-las, as dificuldades continuam as mesmas e as imperfeições no sistema mais graves, que os partidos políticos hoje na oposição aludem a existência delas à incompetência administrativa do atual governo. Outros setores da sociedade, porém, à própria corrupção. Particularmente, preferimos ficar com ambos prognósticos, mas com respeito ao entendimento em contrário ou à avaliação individual outra de cada amigo leitor.
Porém, após o pronunciamento da vice primeira ministra de Cuba na solenidade de abertura desse programa, ao assentir que os médicos cubanos não são desempregados, pois os seus dependentes ficaram devidamente assistidos, social e financeiramente, no seu país de origem, visto que aqui se encontram apenas em cumprimento de suas obrigações empregatícias ali contratadas, revimos nosso entendimento de concordância ao referido programa. Pois, até então, considerávamos tratar-se, efetivamente, de um contrato individual de trabalho médico na área da saúde pública, com o proposito apenas de resolver uma dificuldade momentânea vivenciada pelo Governo Federal na contratação desses profissionais da medicina, que, por qualquer razão — salário inadequado, inexistência de estrutura mínima de atendimento, distancia territorial, etc. —, relutam em ingressar no serviço público.
E, para nossa maior surpresa, além da contratação individual de médico sob o regime especial ali instituído — prazo determinado —, ali também foi criada em favor dos médicos estrangeiros — cubanos — uma contratação diferenciada, como se fosse uma verdadeira terceirização de serviço sob a titulação de “intercambista”, com a quebra frontal ao princípio da isonomia em relação aos demais médicos estrangeiros ou brasileiros interessados nos seus engajamentos ao tal programa.
É que, mesmo se a relevância e a urgência dessa matéria tivessem o condão de justificar a ausência do concurso público, como assim previsto no artigo 37, II, da Constituição Federal, a igualdade de tratamento a todos interessados — brasileiros ou estrangeiros — não poderia ser, sob qualquer pretexto, ali olvidada, pois o valor da isonomia no nosso arcabouço político-jurídico encontra-se elevado à condição de direito fundamental (artigo 5º, caput, da CF).
Contudo, não foi essa igualdade que ali vimos, pois os médicos “intercambistas”, porque já empregados em seu país de origem, como acima já dito, ficaram “ressalvados da obrigatoriedade de que trata o caput do seu artigo 14”, da referida Medida Provisória, que diz enquadrar-se “como segurado obrigatório do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, na condição de contribuinte individual”, o “médico participante”, em verdadeira desigualdade jurídico-contratual em relação ao “médico intercambista”.
E mais: aos “médicos participantes” — brasileiros — exigência, na seleção, do “revalida”. Para o “intercambista”, “dispensada, para tal fim, a revalidação de seu diploma nos termos § 2º, do artigo 48, da Lei 9.393, de 20 de dezembro de 1996”.
Como visto, em relação aos médicos cubanos — “intercambistas” —, resultou criada uma prestação de serviço — terceirização —, sob a formalização de contratos que ali foram intitulados de “instrumentos de cooperação com organismos internacionais”, com afronta direta à Lei de Licitações (8.666/93), que impõe ao estado só contratar serviços de terceiros mediante prévio processo licitatório, com a garantia de “igualdade de condições a todos os concorrentes”.
É importante aqui lembramos que, no passado, a prestação de serviço terceirizado, mesmo a despeito da edição da Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho, que, embora considerando ilegal a contratação de trabalhadores por pessoa interposta, admitia essa prática apenas para os serviços da atividade meio do tomador, de vigilância e de conservação e limpeza, foi muito combatida pelo Movimento Sindical que deu origem ao Partido dos Trabalhadores que hoje se encontra no poder político do estado, com a oportunidade de consagrar agora todas as suas lutas desfraldadas em defesa da dignidade do trabalho individual humano.
Contudo, não foi que aqui vimos.
Porém, para nosso conforto, a certeza de que o Ministério Público Federal, no cumprimento de sua obrigação institucional, e as demais Instituições legitimadas, inclusive a OAB, como sentinela da legalidade — artigo 44, I, da Lei 8.906/94 —, saberão adotar as providencias judiciais devidas para adequar o “Mais Médicos para o Brasil” à sua normalidade jurídica, principalmente no que alude às inconstitucionalidades pontuais verificadas na referida Medida Provisória.
Por Valmir Macedo de Araujo